Herói improvável do Campeonato Carioca de 1960, o lateral Jorge completaria 80 anos

Museu da Memória Americana
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8 min readJul 21, 2019
O gol do título

Emmanuel do Valle*

Jorge tinha apenas 21 anos em 1960, quando um episódio moldaria definitivamente sua identidade com o América. O mais jovem titular do elenco daquele ano foi o herói de uma façanha improvável, que encerrou um longo jejum. O gol da vitória por 2 a 1 sobre o Fluminense, na decisão, tirou o Diabo de uma fila de 25 anos desde o seu último Campeonato Carioca e, mais do que isto, fez o clube reviver uma tradição de conquistas em datas históricas. O campeão do Centenário da Independência (1922) tornava-se também, a partir daquele momento, o primeiro campeão do estado da Guanabara. Responsável pelo feito, o ex-lateral completaria 80 anos neste fim de semana.

Carioca nascido no Largo do Estácio em 20 de julho de 1939, Jorge de Souza (seu nome de registro) era considerado pelos adversários um marcador bastante duro, mas leal, e que se destacava pelo apoio ao ataque. Num tempo em que laterais eram jogadores essencialmente defensivos, Jorge era muito rápido, forte fisicamente, valente e tinha ótimo chute, o que lhe permitia se lançar à frente sempre que possível e, vez por outra, balançar as redes.

A revelação de 1960

Promovido dos juvenis do America no segundo semestre de 1958 pelo técnico húngaro Gyula Mandi quando de sua passagem por Campos Salles, Jorge começou a despontar em meados do ano seguinte, quando a equipe — agora dirigida por Yustrich — realizou uma excursão pela Europa. Num jogo contra a seleção da Grécia em Atenas, o lateral abriu o placar na vitória por 2 a 0 ao acertar um chute de 30 metros. Quando voltou ao Brasil, o jovem de recém-completados 20 anos não demorou até se consolidar como dono da lateral-direita da equipe.

Na campanha do título carioca de 1960, Jorge atuou em todos os jogos menos um — os 2 a 0 sobre a Portuguesa em São Januário no primeiro turno — e balançou as redes duas vezes. O primeiro gol saiu na tranquila vitória por 4 a 1 diante do Olaria, também no estádio do Vasco, pela segunda rodada do returno, em 15 de outubro. Aproveitando que o ponta-esquerda bariri Jurandir atuava recuado, apenas ajudando o meio-campo, o lateral foi ao ataque e marcou um belo gol aos cinco minutos da etapa final, quando os rubros já venciam por 2 a 0.

O segundo seria o do título, aos 31 minutos do segundo tempo na vitória de virada por 2 a 1 sobre o Fluminense, na última rodada do torneio. E nasceu quando Pinheiro interrompeu um ataque americano com um toque de mão na intermediária. O ponta-esquerda Nilo bateu a falta com um chute forte, rasteiro, queimando grama. Castilho pulou, mas fez a defesa apenas parcial. A bola subiu e, antes que qualquer outro jogador tentasse chegar nela, Jorge já havia aparecido numa corrida fulminante para manda-la para as redes, do jeito que pôde.

Jorge Vieira e Jorge

Na avaliação individual dos jogadores da partida decisiva em sua coluna no Jornal dos Sports, o renomado cronista Geraldo Romualdo da Silva conferiu cinco estrelas (a cotação máxima) à atuação do lateral americano, sobre quem escreveu: “Ninguém atuou com mais espírito de campeão. Apareceu em todas as partes da cancha. Seu entusiasmo incendiou a equipe, levantando o espírito abalado dos mais fracos. Surgiu como um furacão na hora em que Castilho largou o ‘tiro livre’ cobrado por Nilo, lá do ‘meio da rua’”.

Além de quebrar o doloroso jejum de 25 anos, o título carioca de 1960 também levou o America a participar pela primeira vez de uma competição nacional, a Taça Brasil do ano seguinte. E Jorge participou de quase todos os jogos da campanha encerrada nas semifinais, diante do Santos de Pelé, mas não sem antes derrubar alguns pesos pesados do futebol brasileiro. Na primeira etapa, o time rubro não teve dificuldade para superar os niteroienses do Fonseca, campeão fluminense, empatando em 0 a 0 em Caio Martins e vencendo por 3 a 0 no Maracanã.

Na fase seguinte, foi a vez de eliminar o Cruzeiro, campeão mineiro: na primeira partida, uma vitória por 2 a 1 no Maracanã com dois gols de Fontoura — o segundo deles após falta cobrada na medida por Jorge. No jogo de volta, em Belo Horizonte, o lateral-direito foi desfalque pela única vez na competição, mas os rubros avançaram graças a um dramático empate em 1 a 1 obtido com gol de Nilo no último minuto de jogo, no extinto estádio da Alameda, pertencente ao América mineiro. O próximo passo era a decisão da Chave Sul/Sudeste.

O adversário era o poderoso esquadrão do Palmeiras, então o detentor do troféu e que contava com nomes como o goleiro Valdir de Moraes, Djalma Santos, Zequinha, Julinho Botelho, Vavá e Chinesinho. No Pacaembu, em 15 de outubro (um domingo), houve empate em 1 a 1, e o gol americano foi de Jorge, numa arrancada sensacional e um chute forte, de longe, enquanto a defesa palmeirense recuava. Três dias depois, no Maracanã, o America abriu 2 a 0, Vavá diminuiu no fim, mas a vaga nas semifinais do torneio ficou com o campeão da Guanabara.

O Santos de Pelé seria um adversário ainda mais forte e deixaria claro seu poderio ofensivo no primeiro jogo, em São Januário. Mas Jorge também brilhou, criando como se fosse um ponteiro as jogadas dos dois gols do America. O primeiro, abrindo a contagem logo aos cinco minutos, numa arrancada até à linha de fundo com cruzamento para Nilo escorar. Coutinho empatou ainda no primeiro tempo e Pelé colocou o Peixe em vantagem no início da etapa final, mas Jorge voltou a aparecer, cruzando da linha de fundo para João Carlos girar e empatar.

Revista do Esporte — 1961

Aos 28 minutos, porém, Pelé anotaria o terceiro gol santista, e daí em diante a porteira se abriu: Pepe marcou três vezes entre os 31 e os 40 minutos, e o Santos chegou a uma incrível goleada de 6 a 2. Mas o America não estava morto e provaria no jogo de volta, uma semana depois, dentro da Vila Belmiro: venceria por 1 a 0, gol de Fontoura, numa partida que teve Pelé expulso após ofender o árbitro Armando Marques. Porém, no terceiro jogo, dois dias depois no Pacaembu, o Santos voltou a golear, desta vez por 6 a 1, e avançou à final.

Seu alto nível de atuações pelo time rubro fez com que a imprensa esportiva o colocasse como um sério candidato a figurar na lista inicial de pré-convocados para a Copa do Mundo do Chile, em 1962. Quando a relação foi divulgada, em março daquele ano, sua ausência causou surpresa (dos rubros, apenas o zagueiro Djalma Dias e o lateral-esquerdo Ivan foram pré-relacionados, e ambos acabaram excluídos mais tarde da lista final). Restou ao lateral o consolo de conquistar pelo clube a prestigiosa International Soccer League, nos Estados Unidos.

Revista do Esporte - 1960

O torneio, que já havia sido conquistado pelo Bangu dois anos antes, havia sido criado por William “Bill” Cox, milionário norte-americano fanático por esportes, e reunia equipes dos principais países europeus e sul-americanos. Naquela edição de 1962, o America foi incluído num grupo de seis times, no qual enfrentaria os mexicanos do Chivas Guadalajara, os italianos do Palermo, os iugoslavos do Hajduk Split, os alemães-ocidentais do Reutlingen e os escoceses do Dundee FC. Primeiro colocado invicto nesta chave, o time rubro avançou à final.

Na final em dois jogos, ambos disputados no estádio de Randall’s Island, em Nova York, o America derrotou duas vezes os portugueses do Belenenses, fazendo 2 a 1 na primeira partida, no dia 1º de agosto, e 1 a 0 na segunda, quatro dias depois. Em ambos os jogos Jorge foi titular, ajudando a levantar o caneco que simbolizava um grande momento vivido pelo clube. E a convocação para a Seleção acabaria vindo enfim no ano seguinte para a disputa do Campeonato Sul-Americano (atual Copa América) disputado na Bolívia.

America — 1963

A equipe dirigida pelo mesmo Aimoré Moreira campeão do mundo em 1962 era na verdade uma seleção experimental, reunindo jovens talentos oriundos principalmente de outros centros (como o futebol mineiro e o do interior paulista), e que colheu resultados irregulares no torneio, jogado na altitude de La Paz e Cochabamba. Para Jorge, a competição terminou de forma ainda mais triste devido à fratura da tíbia da perna esquerda sofrida ao levar uma solada do atacante boliviano García logo aos dez minutos de jogo na última partida.

A lesão, que tirou Jorge de campo por mais de seis meses, também impediu futuras convocações que eram dadas como certas para a Copa Roca e para uma excursão à Europa, desta vez com a Seleção Brasileira principal. Foi um considerável abalo para sua carreira, aliado a uma complicada renovação contratual com o America bem no meio de sua reabilitação. Porém, mesmo que não tivesse voltado ao auge de sua forma após a fratura, Jorge continuou a atrair o interesse de outros clubes, com o America sempre endurecendo nas negociações.

Revista do Esporte — 1960

Em mais de uma ocasião o Santos, clube mais poderoso do país naquele momento, tentou trazer o lateral para reforçar seu elenco estelar. Em matéria de outubro de 1964, a Revista do Esporte comentou o assunto numa matéria sobre os jovens talentos cariocas cobiçados pelo time paulista (entre eles, os tricolores Carlos Alberto Torres e Altair, o vascaíno Brito e o banguense Paulo Borges). Antes disso, em junho, o Alvinegro Praiano chegou a oferecer 30 milhões de cruzeiros ao America pelo lateral, mas a negociação não saiu.

A partir do fim daquele ano, Jorge viveu dias turbulentos no America: incompatibilizado com a diretoria rubra, ficou vários meses sem atuar. Chegou a passar por testes no Corinthians, mas não permaneceu. Quase foi parar no Bonsucesso. Mas acabou renovando contrato e ficando mesmo no Andaraí. Não por muito tempo, no entanto. Em abril de 1966, o clube acertou sua troca pelo ponteiro Jorginho com o Fluminense. Nas Laranjeiras, porém, não vingaria por problemas físicos e pela afirmação do paraense Oliveira em sua posição.

Depois de pendurar as chuteiras, de retornar ao America como treinador das categorias de base e de ser homenageado pelo clube quando das comemorações do centenário americano em setembro de 2004, Jorge faleceria em 31 de dezembro de 2008, aos 69 anos, na cidade de Cabo Frio, Região dos Lagos do estado do Rio. Entretanto, o ex-lateral já estava eternizado na galeria de heróis americanos e no coração dos torcedores.

O gol do título de 1960 eternizado na Memória Americana

*Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador da história do futebol brasileiro e internacional.

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