O dia que o basquete do América enfrentou os Globetrotters

Museu da Memória Americana
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4 min readAug 26, 2020
A presença dos Globetrotters no Rio foi destaque na capa do Jornal dos Sports de 18 de maio de 1954 | Reprodução

Stéfano Salles

Talvez os mais jovens estranhem, mas houve um tempo em que a NBA não era o símbolo máximo da excelência do basquete dos EUA. Enquanto a liga profissional estadunidense dava seus primeiros passos, os embaixadores do país no esporte eram os Harlem Globetrotters. Um time de exibição, conhecido pelas jogadas cômicas e performáticas, que realizou diversas turnês pelo mundo, atraindo multidões aos ginásios. O público delirava mais do que no jogo de qualquer seleção. O América enfrentou essa equipe no dia 18 de maio de 1954, em pleno Maracanã. O estádio, mesmo, e não o ginásio. Um tablado foi montado no centro do campo para a realização da partida.

O ginásio Gilberto Cardoso, o Maracanãzinho, ainda não estava pronto: seria inaugurado quatro meses depois. Há poucos registros do confronto, e até mesmo os Globetrotters não guardam mais qualquer vestígio dele, mas a partida contra o América foi a primeira das três exibições feitas pela equipe no Rio. E também a que atraiu maior público: 14.721 torcedores, com 10.697 pagantes entre eles. Era a abertura da terceira turnê do time dos EUA no país. Cabe destacar que os rubros não eram uma das forças do basquete da Guanabara naquela época, dominado pelo Flamengo que, naqueles anos, tinha o valente Sírio e Libanês no seu encalço.

Àquela altura, não havia também Campeonato Brasileiro de Basquete. A primeira edição aconteceria apenas em 1965, com a Taça Brasil. Então, os Campeonatos Estaduais eram o melhor termômetro do esporte, embora ele já fosse mais desenvolvido em São Paulo que no Rio. Mesmo assim, o desempenho do América foi digno. Sem conseguir fazer frente aos astros, também não fez feio na derrota por 58 a 44. Um placar que até aqui era desconhecido da historiografia do esporte, recuperado pelo Memória Americana em publicações da época.

“Grau 10 aos Globetrotters”, exaltava encantado o Jornal dos Sports

O agora reeditado “Correio da Manhã” noticiou na ocasião o jogo assim: “Espetáculo soberbo ontem, no Maracanã”. E prosseguiu, no subtítulo, de uma maneira inimaginável para os padrões atuais: “Demonstrando insuperável classe, o Harlem Globetrotters abateu facilmente o América por 58 a 44 — Os negros deram um ‘show’ de malabarismo e comicidade — Na preliminar, o Hawaian Surfriders venceu o Fluminense por 51 a 40”.

O Correio da Manhã também fez

A matéria dizia ainda: “Confirmando a sua alta classe, o conjunto dos negros norte-americanos não teve dificuldades em sobrepujar o quadro metropolitano, só não se verificando um escore mais dilatado pelo fato de interessarem mais a êles a exibição do malabarismo”. O jogo também foi destaque na capa do “Jornal dos Sports”, com direito a uma foto.

Os dois periódicos destacaram a boa atuação de Bob Hall, que já encantara o público dois anos antes, em outra turnê. Desta vez, ele anotou 29 pontos. Isto, bem antes da adoção da linha dos três pontos, que só passou a vigorar na NBA na temporada 1979/1980, e após os Jogos Olímpicos de Los Angeles-1984 no basquete Fiba. Por parte do América, o destaque individual foi Valtinho, com 19 pontos.

Como era previsível, os veículos de comunicação destacaram, orgulhosamente, a presença do símbolo máximo do esporte na cidade, e não enfatizaram o modo como o América os enfrentou. Também não destacaram qualquer tentativa do basquete rubro de, diante tamanha disparidade de forças, tentar obter um placar digno, como o alcançado.

Mesmo na história do América, esse é um episódio até então condenado a um limbo histórico. Única publicação que trazia algum dado sobre ele, “Cronologia de uma Odisseia, 1904–2000”, de Orlando Cunha, obra e escritor indispensáveis para conhecer a história do América, dedicou apenas duas linhas ao episódio. E nada de placar: “A equipe de basquetebol do América enfrenta, no Maracanã, os “Globe-Trotters”. Desnecessário será dizer que teve de se adaptar ao estilo dos norte-americanos”.

Com o passar do tempo e a popularização da NBA, que se transformou em sucesso esportivo, de público e de faturamento, o Globetrotters perdeu força e prestígio. Depois de ter se apresentado em mais de 190 países, a equipe continua a fazer turnês pelo mundo e, ocasionalmente, é mobilizada para desempenhar papel diplomático defendendo os valores estadunidenses, desanuviando tensões políticas.

Nem sempre os adversários compreendiam bem a natureza dos Globetrotters, um time de exibição que valorizava mais o malabarismo e as firulas que a cesta. Como alguns jogos não terminaram bem por isto, seja por lesões provocadas por rivais inconformados ou por brigas ocorridas pelo mesmo motivo, partidas contra times reais, já estabelecidos, também foram se tornando mais raras. Os jogos se consolidaram contra o Washington Generals, o sparring oficial, que não se incomodava em fazer escada para o sucesso da franquia.

O jogo contra o Globetrotters, agora recuperado, é mais um episódio de orgulho na história do América, que tem outras páginas importantes no basquete. A primeira delas é justamente ter sido o primeiro clube carioca a adotar o esporte, em 1913. Mas esse é outro momento importante, que voltaremos aqui outro dia para contar.

* Stéfano Salles é jornalista, pesquisador de futebol e coordenador do Museu da Memória Americana

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