Carolina Maria de Jesus, resistência que a miséria não calou

A catadora de papel que conseguiu, com o lixo que recolhia, escrever histórias que a tiraram da pobreza

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“Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes” (Maria de Jesus, 13 de maio de 1958, p. 30). Foto: Editora Malê

Mulher, preta, pobre, mãe, favelada, catadora de lixo e escritora. Está provavelmente é a principal definição de quem foi Carolina Maria de Jesus. Na luta contra a fome, sempre refugiou-se na literatura. Mesmo tendo estudado apenas até o segundo ano fundamental, se apaixonou pela leitura e pela escrita e, falando da realidade que viveu na favela, saiu da pobreza e possibilitou a seus três filhos um futuro melhor.

Carolina nasceu em 14 de março de 1914 na cidade de Sacramento, Minas Gerais, a 450 quilômetros de Belo Horizonte, capital do estado e a 500km dos arredores da Marginal Tietê, em São Paulo, onde era localizada a favela do Canindé, morada da escritora por anos. Carolina frequentou a escola por pressão de sua mãe. Mesmo que não quisesse, foi obrigada e cursou até o segundo ano do ensino fundamenta, saindo do colégio semialfabetizada.

Carolina e seus três filhos. Foto: Autor Desconhecido.

Neta de escravos e filha de uma lavadeira, foi mãe três vezes: João José, o mais velho, nasceu em 1948, filho de um marinheiro português; José Carlos, o do meio, em 1949, filho de um comerciante espanhol; e Vera Eunice, a caçula, em 1953, filha de um empresário brasileiro.

Em entrevista ao canal TVT, Vera Eunice contou que sua mãe e sua avó foram acusadas de roubar alguns contos de réis do frei da cidade onde moravam. As duas foram presas e agredidas até que o dinheiro foi encontrado e ambas liberadas. Carolina decidiu que jamais passaria por isso novamente, largou tudo e se mudou sozinha para São Paulo a pé. Outros textos biográficos apontam que a autora, ainda jovem, se mudou com sua mãe e seus sete irmãos para zonas rurais de São Paulo, onde viveram até a morte da matriarca. Logo depois Carolina migrou para a capital.

Na terra da Garoa começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de Euriclydes Zerbini, um dos médicos precursores das cirurgias de coração no Brasil. Em sua estadia lá, aproveitava as folgas em que poderia sair para ficar na biblioteca lendo. Após engravidar de seu primeiro filho, devido aos preconceito da época, perdeu o emprego e se mudou para a favela do Canindé onde viveu entre os anos 1947 e o início dos anos 1960. Hoje a comunidade existe apenas na memória, já que pouco após a saída da escritora os moradores foram retirados e realocados.

Maria lia tudo que podia: livros, revistas, papeis amassados, sujos e sempre que a fome permitia, escrevia para passar o tempo. Era sua diversão, seu hobbie e o que a fazia acreditar que um dia deixaria a favela. Carolina transcrevia seu dia a dia, seu trabalho como catadora, suas manhãs lavando roupa e toda a vida da favela. Seus textos foram “descobertos” pelo jornalista Audálio Dantas, que também é o escritor do prefácio do livro “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada” (1960).

“Repórter, fui encarregado de escrever uma matéria sobre uma favela que se expandia na beira do rio Tietê, no bairro do Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem. A história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história — a visão de dentro da favela” (Dantas, 1993, p. 6)

Carolina e Audálio na Favela do Canindé em 1961. Foto: Acervo de Ruth de Souza.

Carolina tinha noção da sua posição social e principalmente da sua cor, como ela relata diversas vezes em seus livros. Na época, sem que o tema fosse assunto recorrente para a sociedade ou luta de militâncias e minorias, a escritora defendeu sempre que pôde sua raça.

Maria não via problema, defeito ou desvantagem em ser negra, porém, isso era algo que nunca impediu ela de sofrer com insultos raciais e nem de responde-los a altura. Carolina tinha pouco estudo mas muita sabedoria e e personalidade, nunca descendo do salto na hora de responder quem a diminuísse pelo que era.

“Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.” (Maria de Jesus, 16 de junho de 1958, p. 64)

“(…)Olhou as crianças ao meu redor e perguntou:
— Estes são seus filhos?
Olhei as crianças. Meu, era apenas dois. Mas como todos eram da mesma cor, afirmei que sim.” (Maria de Jesus, 21 de julho de 1955, p. 23). Foto: Arquivo do Instituto Moreira Salles

O que mais doía na escritora era a fome que, como ela mesma comenta, era preta tal qual sua vida e sua pele. Em trechos de seus livros Carolina ressalta que a falta do que comer era a escravatura da época e que sua vida era dura assim como a cama em que dormia e o pão que comia. Esse sofrimento, relatado inúmeras pela autora, em uma passagem específica de seu diário, é representado pelas empresas, principalmente do ramo alimentício que preferem jogar fora e destruir as sobras a dá-las aos mais pobres.

Essa desigualdade social foi o que originou o nome de seu primeiro livro. Na sua percepção, São Paulo era como uma grande casa de alvenaria, iluminada, limpa, bela, onde as pessoas não andavam sujas ou com fome, enquanto a favela era o porão, o canto escuro da casa onde jogam tudo que não tem mais uso, o quarto de despejo da sociedade.

“Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó.” (Maria de Jesus, 16 de julho de 1959, p. 175)

Quando não sofria pela fome, Carolina escrevia para que um dia pudesse se mudar da favela. Seu livro, assim como a escritora previa quando o mesmo ainda era só um diário, tirou-a da favela. No dia 10 de junho de 1958 os textos do dia a dia da favelada foram publicados no jornal “O Cruzeiro”, tendo seus primeiro exemplares literários publicados dois anos depois. Hoje, “Quarto de Despejo” já alcançou inúmeros países traduzido para ao menos 13 línguas diferentes. Maria de Jesus acreditava que cataria tudo, menos a felicidade. Por sorte, foi a felicidade quem bateu em sua porta.

“Posso ser uma grande escritora, mas você é a única que conta a realidade”. A frase foi dita por Clarice Lispector ao encontrar com Carolina Maria de Jesus. Ambas as escritoras faleceram no mesmo ano, 1977. Foto: Editora Rocco

Após a publicação de “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada” em formato de livro em 1960, Carolina ganhou dinheiro, deixou o Canindé, mas nunca parou de escrever. Sua obra seguinte foi nomeada de “Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada” e começou a ser vendida em 1961. Em sequência vieram “Pedaços da Fome” e “Provérbios” em 1963. Após sua morte, ainda foram publicados “Diário de Bitita” (1986), “Meu Estranho Diário” (1996) e “Antologia Pessoal” (1996), além de diversos textos e livros que contam com escritos dela e de outros autores.

Carolina, como afirmou Audálio Dantas em entrevista ao jornal “O Globo”, foi consumida pela alta sociedade, que se aproveitou do seu momento de grandeza para embarcar na moda, mas não se preocupavam verdadeiramente com a autora. Seus dois últimos livros são prova disso, tendo sua publicação completamente custeada pela própria autora.

A morte, como ela mesma citava, diferente da vida, poderia vir de muitas maneiras. No caso dela, se apresentou por meio da asma em 1977, aos 62 anos. Maria morreu pobre assim como viverá a maior parte de sua vida, o que não era um problema, afinal, Carolina acreditava que na morte todos eram igualmente pobres. O mais importante é que, sozinha, realizou o sonho de sair e tirar seus filhos do quarto de despejo da sociedade.

Existem dois curta metragens que falam sobre vida, obra, personalidade e principalmente relevância da escritora. “Carolina” (2003), é estrelado por Zezé Motta no papel da autora e repassa trechos de seus livros, contrastando entre atuação e imagens reais da vida de Maria de Jesus. Já “O Papel e o Mar” (2010) apresenta um encontro fictício entre a catadora e o marinheiro João Cândido, líder da revolta da Chibata, conhecido como almirante negro. Além disso, Carolina ainda lançou um disco homônimo a seu livro com musicas compostas por ela.

Ruth de Souza (a frente) interpretou Carolina Maria de Jesus na Tv, no Teatro e no Cinema. Foto: Arquivo de Ruth de Souza.

“O papel e o mar” também dá nome ao enredo da Renascer de Jacarepaguá em 2017, rendendo a escola o décimo lugar da Série A. O carnavalesco Leandro Vieira, que assina a quatro anos os desfiles da Mangueira, era um dos comentaristas da Rede Globo durante o desfile. Para ele “além de ser um enredo muito bonito é um enredo informativo. A ideia de apresentar Carolina Maria de Jesus e João Cândido para o grande público é algo que tem que ser louvado e elogiado da forma correta. Isso é o carnaval cumprindo seu papel”.

— Nessa avenida que é palco de ilusões, você iria imaginar um encontro desses? Uma catadora de lixo sendo homenageada no maior palco (…) Vou confessar aqui, eis um enredo que eu gostaria de ter feito — completou.

Abre-alas Renascer 2017. Créditos na imagem

“Almirante João
Sou Carolina de Jesus
Carrego papelão, você navega sua cruz
Na correnteza a sua voz foi mergulhar
Eu fiz dos versos a fortaleza pra morar

Sou a filha da miséria
Você nasceu pra guerrear
Nós somos a liberdade
Eu sou papel, você é o mar”
Renascer, 2017

Esta não foi a única aparição de Carolina no carnaval. Fã da folia, ainda viria a ser homenageada muitas vezes. Somente nos últimos três anos passou pelo sambódromo carioca em ao menos três oportunidades. Em 2018, por exemplo a última alegoria do Salgueiro retratava a obra “Pietá”, de Michelangelo, vestida com textos da escritora.

Foto: Reprodução/Tv Globo

Pelo desfile campeão da Mangueira de2019, foi parte do desenvolvimento do enredo, citada no samba no verso “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês” e retratada em bandeira que veia junto a última ala, ao lado de outros heróis do país. Já em 2020 a obra da escritora foi parte do desenvolvimento da narrativa apresentada na avenida pela União da Ilha, além de fazer parte do elemento cenográfico da comissão de frente.

Em 2021 a mulher, negra e favelada será novamente tema para um desfile do maior espetáculo da Terra, dessa vez bibliográfico e focado exclusivamente na autora. “Carolina, a Cinderela Negra do Canindé” será o enredo da Colorado do Brás, do Grupo Especial do carnaval de São Paulo.

Parte traseira do elemento alegórico da comissão de frente da União da Ilha — Foto: Alexandre Durão/G1

Carolina foi e sempre será referência de mulher, preta, pobre, mãe, favelada, catadora e escritora. Resistência não foi uma escolha para ela, mas hoje é sua marca registrada e quase um sobrenome. Sozinha, cumpriu com o que prometeu a si mesma e deu a seus filhos a educação e vida que não teve. Hoje, quem fala em seu nome, além da sua obra, é sua filha Vera Eunice a quem Maria pediu apenas duas coisas: que se tornasse professora e que não deixasse seu legado morrer. Ambas são cumpridas ainda hoje com obediência.

Foto: Autor Desconhecido.

“EXTRA! A Negra enriqueceu
Sou eu… A mãe preta resistência
Bordando em meu quarto sentimentos
Mazelas que refletem a consciência
Nas folhas de cadernos a verdade se traduz
Em seu sobrenome uma prece… Jesus
Ser a Cinderela… Do meu Canindé
A flor mais bela… Quem é que não quer?!
Vencer o preconceito…Lutar é nosso direito
Não duvide da bravura da mulher”
Colorado do Brás, 2021

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27