Porque Se Tem Um Blog? (Uma Taxonomia)

Menino de Sua Mãe
Menino De Sua Mãe
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9 min readMar 6, 2018

Há muitos, muitos anos, os blogs foram uma das primeiras formas daquilo a que hoje chamamos social media. Hoje ter um blog é uma opção minoritária, mas na época era não só a opção mais popular como frequentemente a única para chegar a audiências, ter feedback e leitores.

Actualmente, os blogs chegam a menos gente que as redes sociais da moda, chegam-lhes mais dificilmente, e têm um maior custo e esforço de manutenção. A opção por ter um blog em vez de uma página de Facebook ou uma conta de Instagram justifica-se, ainda assim, em alguns casos: 1. quando queremos ter controlo independente sobre os nossos próprios conteúdos: publicar o que quisermos quando quisermos, sem vir um administrador qualquer de uma qualquer plataforma dizer que não podemos estar mais de um mês sem publicar, ou não podemos dizer isto ou falar daquilo ou mostrar esta imagem ou defender esta ideia. 2. quando queremos ter um controlo independente sobre a forma como os nossos conteúdos são apresentados e 3. quando queremos ter a capacidade de criar audiências próprias, sem relação com redes sociais ou canais de distribuição existentes.

O mais importante não é saber se se tem um blog ou outra plataforma de publicação qualquer — um Instagram, uma página de Facebook, ou um canal de YouTube. É saber porque é que se tem uma coisa dessas. Porque é que se publica, porque é que se escreve, porque é que se fazem vídeos, porque é que se partilham fotos?

E não são só as pipocas, os pipocos, os wuants e os ruins da nossa praça: porque publicam os Manueis e os Joaquins, a Luísa da contabilidade, a prima Miquelina lá da terra?

Motivação 1: Dinheiro

Uma das principais razões que faz alguém ter um blog ou ser activo numa rede social é ganhar dinheiro. Estatisticamente, não será a mais frequente — há muito mais gente a querer ganhar dinheiro online do que a fazê-lo, mas se contarmos com os wannabes, a categoria já tem alguma expressão. Inclui-se aqui quem tem uma presença social para:

  • vender coisas
  • ganhar dinheiro com publicidade
  • promover uma actividade ou um negócio

Motivação 2: Chatear e Dizer Mal

Se existem motivações maiores que o dinheiro, a inata natureza humana de dizer mal de coisas é uma delas. Mais aguda ainda, a vontade intensa de dizer mal de alguém. Interessa pouco se têm ou não razão — na sua cabeça têm sempre — ou se o que fazem tem algum efeito, ou é sequer visto ou lido pelo alvo da sua crítica. Basta o apoio de alguém na maledicência para nos sentirmos realizados. Uma das regras não escritas da espécie humana é que se for possível encontrar dez pessoas para ser a favor de qualquer coisa, é mais fácil encontrar cem para ser contra. Gostamos de ser contra as coisas porque é mais fácil, basta encontrar um motivo e insistir nele, não precisamos de ouvir nem de raciocinar. E se não houver motivo, inventamos um, que é praticamente a mesma coisa.

Motivação 3: Partilha, Troca de Experiências e Sentido de Comunidade

Em 1980 era difícil ser punk no Vimieiro. Era tudo a jogar contra. É difícil sentirmo-nos cool quando 100% das pessoas nos acham só estúpido. E isso é tão válido para punks como para fãs do Dragonball. É que bastava haver mais um… o apoio mútuo dá aquela ideia de “nós contra o mundo”, permite viver um ideal rebelde. Mas num meio pequeno é fácil ser sozinho. A internet não fez com que haja mais de nós, simplesmente fez a escala jogar a favor das minorias. Seres um num milhão agora significa que só em Portugal há dez como tu. E o google tornou mais fácil encontrarem-se, criarem um espaço só para fãs de caldeirada de cabrito sem picante.

Motivação 4: Companhia

É igual à número 3 mas em mais triste. Há quem partilhe coisas numa rede porque não tem mais ninguém com quem falar, por uma razão qualquer. E se há aí casos bons e meritórios — entrevados, cuidadores, exilados, exploradores na antártida — também há quem não tenha amigos por razões mais simples, e ache mais fácil fazê-los online, onde é mais fácil ser-se quem se quer, não quem se é.

Motivação 5: Engatar Gente

Uma importantíssima finalidade do social media é tentar engatar gente. Há blogs inteiros construídos para engatar gente, perfis inteiros dedicados a transmitir uma imagem motivadora, apelativa, pelo menos na óptica do autor. O corolário da motivação 4 é que há sempre na net gente engatável, para uma coisa ou para outra. O nível de qualidade varia muito, e o sucesso depende essencialmente da sorte, ou da flexibilidade dos critérios. Mas há muito boa gente — mais do que se imagina — que se safa assim.

Motivação 6: Promover uma Causa

Já dissemos que, seja qual for o tema, é mais fácil arranjar quem seja contra do que quem seja a favor. Mas a lei dos números faz com que seja possível, na internet, galvanizar gente em torno de ideias, de causas, de projectos. Isto é especialmente verdade se os apoiantes não tiverem de se mexer, se bastar esticar o dedo e fazer like e share em coisas. Ainda assim, a internet e as redes sociais são dos melhores canais para arranjar voluntários para coisas, especialmente nos blogs. Parece que as pessoas que sabem ler — e as que efectivamente lêem mais do que dez palavras seguidas — são mais dadas a entender e a apoiar coisas de mérito do que as que só fazem like a bonecos.

Motivação 7: Ajudar, Ensinar, Apoiar, Divulgar

Podem ser uma mistura do 3 com o 6, mas podem ser uma coisa bem diferente. Há gente que obtém genuíno prazer a ensinar os outros, mesmo sem ter uma causa ou um movimento, mesmo sem querer com isso criar um movimento, mesmo sem ganhar nada com isso. São a versão moderna da Tia Alice que ensinava toda a gente a bordar, do Mestre Xico que ensinava quem lhe pedisse a enxertar pereiras em macieiras, a abrir um poço ou a consertar o carro. São gente de um outro tempo, e felizmente também do nosso, e os blogs e as redes tiveram, se outro não houvesse, o mérito de nos mostrar que esta gente ainda existe, e que são mais, muito mais do que pensávamos, mesmo que agora grande parte deles ensine é a programar, a crackar jogos, a sacar filmes, a usar a net do vizinho, ou a impedir o vizinho de usar a nossa e de nos roubar os nudes.

Motivação 8: Família, Amigos da Escola, Ex-Colegas

Há quem mantenha uma presença social para divulgar fotos e novidades por grupos fechados de interesse, seja a própria família, a turma do 5ºB de 1985 ou os colegas da Fábrica de Tintas A Invencível Barreirense (falida em 1981). É, de alguma forma, uma variante do 3, com duas diferenças importantes: não andam a angariar mais ninguém, mas ainda assim chateiam toda a gente com spam sobre um assunto que não lhes diz nem interessa nada. Felizmente muitos têm migrado, progressivamente, para grupos de Facebook onde podem partilhar coisas só entre quem esteja interessado. Lamentavelmente muitos dos participantes não percebem grande coisa do funcionamento destes grupos e insistem em partilhar coisas em nome próprio.

Motivação 9: Inspirar Pena

As três motivações seguintes são das mais profundas que a natureza humana tem, e podiam resumir-se numa: obter atenção. Numa sociedade cada vez mais acelerada, cada vez mais fechada, onde não sabemos o nome dos vizinhos, cada vez damos menos atenção uns aos outros, mas ao mesmo tempo a atenção é uma necessidade básica do ser humano. Precisamos que nos liguem, que nos falem, que reparem em nós. E se a vida lá fora é inclemente e insípida, é nas redes que tantos a vão buscar. De várias formas, é certo. Uma delas é a pena, forma cruel de dizer “apoio”, “solidariedade”, mas há que tratar as coisas pelos nomes. Apoio e solidariedade são outra coisa, o que muita gente quer é só atenção, e procura-a inspirando cuidado, preocupação, pena. O exemplo lapidar são os posts crípticos no Facebook, no tumblr ou no instagram, os blog posts esotéricos, os “se eu soubesse o que sei hoje não tinha feito o que fiz”, aos quais invariavelmente alguém pergunta “o que se passa, miga?” e a resposta, sem excepção, é “nada, deixa estar”. É pena ninguém dar notas de 50 por cada post destes que todos já vimos. E, no entanto, continuam — porque há um fornecimento ilimitado de teenagers a entrar na idade disto, porque há quem já tenha deixado de ser adolescente mas ninguém os tenha avisado, porque há gente que é mesmo assim, não tem nada para dizer, nem tem nada que queira dizer, só quer mesmo é atenção, mesmo que seja pena.

Motivação 10: Fazer Inveja ou Dar-se Ares

Tal como a anterior, ancora-se no desejo de atenção, somando-lhe a vontade de que nos achem melhores, mais bonitos, superiores. Consiste em exibir uma fachada, mais ou menos distante da realidade, que os mostra belos, cosmopolitas, ricos, felizes — ou inteligentes, cultos, pensantes, preocupados. É comum pensar que quem se pavoneia nas redes e nos blogs o faz sempre com festas, vestidos, casas deslumbrantes, carros de alta cilindrada, relógios caros e gente bonita, que nos querem fazer pensar que a sua vida são brunches e cocktails e estreias e menus de degustação e sunsets em rooftops. Também acontece pensar-se, não sem uma fina dor no cotovelo, que “só mostram as partes boas” ou que “o resto da semana passam fome” ou mesmo que “aposto que aquilo não é a casa dele”. O que é menos usual, mas bem verdade, é que há quem não exiba festas mas pavoneie uma certa pose intelectual, cite Derrida, tenha sempre lido qualquer coisa do último dos prémios Nobel (mas ache sempre que devia ter ganho outro escritor qualquer), aponte como banda favorita os Kasveti Kutlama ou os Belgrado, porque tirando esses só ouve música clássica.

Motivação 11: Ego, Prestígio, Influência, “Poder”, Auto-Estima

É a terceira das motivações centradas na atenção. Aqui nem se procura inspirar pena nem se visa exibir glamour. A atitude é intelectualmente mais honesta, se bem que o tecido emocional se possa ancorar no mesmo. É típica de quem não precisa de mendigar atenção nem de se pôr em bicos dos pés, mas ainda assim sente que lhe falta, no dia a dia, um complemento que vem obter aqui. Pode ocorrer em variadas escalas, desde quem partilha fotos no Facebook só para os amigos até aos que exploram blogs de sucesso — por vezes anónimos — sem ganhar nada com isso, excepto uma imagem reforçada de si mesmos, e um clube de fãs que os contempla a maior ou menor distância. O objectivo, para alguns, considera-se cumprido quando os fãs deixam de caber todos num Fiat Punto.

Motivaçáo 12: Fetiches

Uma sociedade moderna tem de encarar o facto de que há pessoas com fetiches, e tem de o aceitar, especialmente se essas pessoas forem bonitas. Mesmo que sejam feias, o direito à expressão fetichista é tão válido como outro qualquer, e uma das motivações para ter um blog ou ser activo numa rede social pode passar pela divulgação de imagens ou de textos por motivos puramente ligados ao prazer erótico da partilha. E, se feito sem ofender direitos, liberdades e garantias, é uma razão mais válida que muitas. Citando um pensador da nossa praça: “mandem nudes!”

Motivação 13: Supremacia Moral

Há quem publique coisas porque é dono da verdade, ou acha que é dono da verdade, e que tem o direito, quando não o dever moral, de impingir esse ponto de vista aos outros.

Motivação 14: Política, Clubes, e Similares

Podia encaixar-se algures entre o 1, o 2, o 3, o 6, e às vezes o 12, mas é suficientemente relevante e frequente para merecer uma categoria independente.

Motivação 15: Parvoice

Por último, há blogs e, sobretudo, contas das redes sociais que só existem por parvoíce. Não cumprem qualquer finalidade útil, nem sequer para o seu autor, e são só parvas. Correspondem a mais de 30% das contas existentes. Existem porque a natureza tem horror ao vácuo, ou qualquer coisa assim parecida.

Motivação 16: Diversão

Não sei se existe realmente. Imagino que quem o faça por pura diversão tenha sempre, algures, mesmo que subliminarmente, uma das outras 15 razões. Admitir que “ah, só faço isto para me divertir’ é uma desculpa válida é abrir caminho para a desresponsabilização e para que não se encare nem se admita a verdadeira razão de andar nisto.

Todos nos conseguiremos, imagino, rever numa categoria ou duas. E saberemos, certamente, encaixar por categorias a maior parte dos blogs, vlogs, podcasts, youtubes, instagrams, twitters e facebooks desta vida. Não é que precisemos disso para os consumir, nem que nos saibam melhor ou pior por isso. Mas entender o que as coisas são é como ter na comida as tabelinhas com a informação nutricional — ninguém pensa nisso, mas não pode dizer que anda enganado.

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