A etnografia e o design da experiência do usuário

Como utilizei a etnografia durante a concepção de um portal Web corporativo, visitando as operações piloto do projeto para entender a realidade dos usuários.

Patricia Mourthe
Mergo
6 min readAug 28, 2015

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Eu mantenho seis honestos servidores (eles me ensinaram tudo o que sei). Seus nomes são: O “O que”, o “Por quê”, o “Quando”, o “Como”, o “Onde”, e o “Quem” (Rudyard Kipling — Autor e poeta Britânico, Nobel de Literatura de 1907.)

Em Outubro 2015, São Paulo sediará pela primeira vez a conferência internacional EPIC, cuja proposta é o de refletir sobre as práticas atuais e futuras da aplicação da etnografia e design no mundo dos negócios. Para nós, profissionais de UX, este evento representa uma oportunidade única para aprendermos a usar a etnografia nos processos de desenvolvimento de produtos digitais.

Neste artigo, compartilho COMO utilizei a etnografia durante a fase de concepção de um portal Web corporativo. A versão detalhada desta experiência foi apresentada como Caso de Mercado em Novembro de 2013 no Interaction South America / ISA 13, em Recife, PE, Brasil.

A história

Em Julho de 2012, a Oi Internet (empresa do grupo Oi) passou por uma reestruturação geral. O departamento de Desenvolvimento e Soluções foi criado e nova equipe de profissionais contratada, dentre eles, arquitetos de informação, designers visuais, programadores front-end e back-end. Adotou-se uma metodologia híbrida de trabalho combinando o desenvolvimento ágil com o Kanban.

Os primeiros projetos encaminhados para nós arquitetos da informação (AIs), demonstrou que nossa função na equipe era vista de modo “engessado”, ou seja, esperavam apenas que entregássemos mapas de site, fluxogramas e wireframes interativos com boa usabilidade.

A oportunidade para a etnografia

Em Novembro de 2012 iniciamos o primeiro grande projeto da equipe, um portal Web de indicadores e de comunicação interna. A entrada da Arquitetura de Informação no projeto ocorreu durante a revisão do Sprint 0 (zero) e o planejamento do Sprint 1. Estávamos pegando o bonde andando.

A documentação do produto, ainda incipiente por se tratar de projeto de inovação com escopo aberto, listava 16 tipos de usuários do portal, indo de operadores de campo a diretores. Os casos de usuários (user cases) estavam escritos em linguajar técnico (“o usuário poderá incluir, alterar, consultar e excluir dados…”) e listavam tantas funcionalidades que me fez concluir que o escopo estaria 100% definido.

Identificamos a necessidade de melhor conhecer os usuários do portal Web. Se teríamos tantos usuários, quais seriam as experiências e contextos de uso diferenciados do produto para cada um deles? E quais seriam os problemas de negócio que o portal deveria atender?

Inicialmente aplicamos um questionário online visando entender o perfil e necessidades do usuário primário do portal (ou a persona primária). Os respondentes eram um público maduro, de nível educacional alto, e confortável no uso de tecnologias e da Web. Nas respostas recebidas identificamos as tarefas mais críticas para este grupo e suas expectativas sobre como o portal poderia auxiliá-los na gestão diária de seus negócios com a Oi. Concluímos que os casos de usuário previamente definidos estavam desalinhados com as prioridades do usuário/persona primário. Isso nos motivou a visitar uma das operações piloto do projeto, localizada no interior do Estado da Bahia.

A viagem durou três dias úteis. Eu e o gerente do projeto (GP) saímos de São Paulo para Salvador e de lá viajamos mais 3 horas de carro para o interior da Bahia, onde o “dono do produto”(ou PO, “product owner”), se juntou a nós vindo do Rio de Janeiro.

Ao todo foram dois dias inteiros de contato com o cliente, que incluiu:

  • Conversas formais (entrevista com roteiro);
  • Conversas informais (almoços e jantares);
  • Design participativo com a equipe de gestores da operação local, visando fechar o escopo e mapa do site do portal;
  • Observação contextual da equipe técnica atuando no local de trabalho, resolvendo problemas reais;
  • Documentação etnográfica: fotografias capturando o ambiente físico e humano de trabalho da operação.

Apesar de rápida, a visita nos proporcionou um aprendizado muito rico sobre a realidade da operação e da persona/usuário primário do portal. Ela subverteu nossos pressupostos iniciais sobre qual seria o funcionamento da operação e gerou subsídios para entendermos o contexto de trabalho e a necessidades imediatas dos usuários.

De volta a São Paulo, montamos uma apresentação da visita posicionando o design centrado no usuário/persona como a estratégia adequada para a priorização dos requisitos do projeto. A apresentação causou um grande impacto na equipe da Oi Internet (diretor, gerentes, desenvolvedores e designers), fazendo com que o projeto saísse do âmbito da abstração (uma coleção de funcionalidades) para o âmbito da realidade e empatia para com os usuários do produto.

A consequência imediata para o projeto foi a redefinição de seu escopo e para nós, arquitetos da informação, nos posicionar como estrategistas e planejadores do produto. No entanto, talvez o impacto mais crítico deste projeto para a Oi Internet foi a de “oferecer inteligência e estratégia aos projetos de inovação” para a Oi, deixando de ser vista como mera fábrica de software.

O kit pesquisa e a coleta de dados

Na preparação para a visita, desenvolvemos um “kit pesquisa” consistindo de:

  • Objetivos com perguntas a serem validados;
  • Roteiro da pesquisa contextual;
  • Roteiro da entrevista com o dono do negócio;
  • Checklist da documentação a ser coletada;
  • Checklist para o workshop de design participativo.

As condições para a coleta de dados e condução das atividades de pesquisa foram muito desafiadoras pois lidamos com limitações de tempo e equipamento. Em alguns momentos as atividades ocorreram de modo planejado e em outros, espontâneo. O acaso e imprevisto nos ajudou, quando por exemplo, consegui fotografar operadores de rede e vendedores de rua antes de saírem a campo. Nosso tempo foi escasso e nossos equipamentos para a pesquisa, precários:

  • Câmera fotográfica semi-profissional;
  • Gravador do iPhone + um outro semi-profissional;
  • Acesso lento á Internet (estávamos no interior da Bahia).

Lições aprendidas

Os gestores da operação estavam sempre muito atarefados já que a operação tinha apenas 3 meses de idade e poucos funcionários. Tendo isso como pano de fundo, a sinopse de nossa interação com a operação ocorreu assim:

  • Conseguir entrevistar o dono da empresa (persona primária) por 30 min foi uma vitória;
  • Seguir o roteiro planejado para a pesquisa contextual, observando e entrevistando vários grupos de funcionários, foi impossível. Meu colega GP se prontificou a me ajudar e o orientei a o que observar e anotar;
  • Realizar a atividade de design participativo foi desafiante. A atenção e concentração dos três principais gestores operacionais e do dono da empresa eram disputadas entre nossa atividade e as demandas da gestão diária do negócio, sendo interrompidos continuamente para assinar notas fiscais, atender telefonemas urgentes, encontrar soluções para problemas técnicos que somente eles poderiam solucionar;
  • Documentar a viagem e fotografar as pessoas e premissas da operação só foi possível com a ajuda de meus colegas da Oi. Ambos revezaram comigo a condução da atividade de design participativo com os gestores executivos da operação.

Outras lições aprendidas:

  • Ter um roteiro planejado para a pesquisa é crítico, mas precisamos ser flexíveis pois constantemente nos deparamos com imprevistos não antecipados;
  • Ter uma equipe de pesquisa sintonizada e cooperativa pode implicar na qualidade final da pesquisa realizada; mesmo não treinados para a função, colegas podem ser orientados e nos auxiliar na coleta de dados e observação;
  • Diferenciar o dado/informação críticos do não crítico vem com a tempo e a experiência acumulada do profissional/designer.

Finalmente, na avaliação da visita pela operação da Oi na Bahia, recebemos um feedback muito positivo da equipe entrevistada. Relataram que participar do design colaborativo os ajudou a explicitar suas visões de gerência e negócio pela primeira vez. Devido ao trabalho intenso da operação, ainda não haviam tido oportunidades para a troca rica que ocorreu durante nossa visita. Durante a atividade de design participativo, os gestores de tornaram co-criadores da operação, se sentiram ouvidos e foram ouvidos pelos colegas e pela Oi, e assim, se tornaram também, os donos do projeto.

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Patricia Mourthe
Mergo

User researcher and designer, painter, poet, relentlessly curious