Antropologia e UX Design

Eduardo Freitas
Mergo
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12 min readDec 14, 2021

Como os antropólogos podem contribuir na experiência da pessoa usuária e vice-versa.

Introdução

A ideia para escrever este artigo surgiu a partir das trocas de conhecimentos no curso UX Weekend, da Mergo, em novembro de 2021. Graças à bolsa concedida pela PretUX, tive a oportunidade de realizar uma imersão de dois dias e pude compreender mais a respeito do processo de UX Design, especialmente o processo de Design Thinking.

O curso UX Weekend foi a minha primeira experiência imersiva nesse mundo de UX Design. Ele me possibilitou construir um projeto na prática e ter uma visão expressiva de estratégia de produtos. Além disso, pude estar em contato com pessoas maravilhosas de diferentes pontos de vista e distintas experiências individuais que enriqueceram todo o processo do design.

As aulas do curso além de me proporcionarem uma curva de aprendizado, sanar dúvidas e gerar muitas outras, me fizeram refletir bastante sobre a minha transição de carreira, do conjunto de habilidades que os antropólogos podem fornecer para uma pesquisa de experiência do usuário e como a área de UX Design também auxilia no processo de pesquisas antropológicas.

Espero que a leitura possa ajudar antropólogos/cientistas sociais em transição de carreira e que também apresente um pouquinho do mundo da Antropologia para os interessados nessa área.

Minha descoberta de UX Design

Nos últimos meses, a pandemia de COVID-19 provocou novos desafios para os pesquisadores qualitativos, entre eles, os antropólogos. Com mudanças significativas no âmbito profissional, grande parte dos pesquisadores tiveram que adaptar seus projetos e práticas de pesquisa — que até então eram conduzidas tradicionalmente em ambientes presenciais — a metodologias e ferramentas remotas para atender as condições do “novo normal”.

O meu projeto de mestrado fora um deles. Planejado em dias pré-pandemia, consistia em realizar pesquisas etnográficas sobre o consumo e a construção de identidades entre os muçulmanos negros do Rio de Janeiro e da Bahia. Etnografia presencial, contato extensivo com os pesquisados e observação participante… tudo isso foi impossibilitado pelas medidas restritivas de combate à pandemia.

Com o isolamento social, sem a experiência corporificada e o contato face a face, passei a refletir e problematizar da minha condição enquanto pesquisador. Acredito que esse tipo de questionamento faça parte da própria Antropologia e da experiência do usuário: compreendermos a nós mesmos, seres humanos, a partir da imprevisibilidade e de nossa capacidade adaptativa.

A partir de então, comecei a procurar plataformas digitais que pudessem organizar e atenuar a transição da pesquisa para o mundo digital. Esse foi o começo de uma grande jornada.

Durante a pandemia, o consumo de internet no Brasil cresceu exponencialmente, chegando na marca de 152 milhões de usuários. Esse número corresponde a 81% da população do país com 10 anos de idade ou mais. Segundo Alexandre Barbosa, gerente do Cetic.br|NIC.br, a crise sanitária provocou a migração de atividades essenciais para o ambiente digital.

Foi graças a resiliência da internet que as aulas, o trabalho, os shows, os eventos culturais e religiosos, os exercícios físicos, as aulas de ioga, os atendimentos médicos e psicológicos e entre outras atividades, puderam ser mantidas na rotina das pessoas.

Houve, portanto, uma transformação digital massiva, rápida e global em vários aspectos da vida, incluindo educação, trabalho, comércio e serviços públicos, aumentando sem precedentes a quantidade e a diversidade de pessoas, ou melhor, de usuários nas redes.

Nesse contexto, conheci sobre a experiência do usuário, sua gama de possibilidades e fiquei encantado com a incorporação de diversos campos disciplinares das ciências humanas. Venho, desde então, me aprofundando na área, me conectando com pessoas, consumindo cursos e literatura referentes a UX, participando de eventos, workshops e dentre outros conteúdos e iniciativas da comunidade.

UX Design e Antropologia: uma relação de loooonga data…

“Senta Que Lá Vem História” / TV Cultura

Antes de falarmos a respeito sobre os vínculos específicos entre as áreas de Antropologia e Design, saiba que a relação entre essas áreas não é de hoje. Então, senta que lá vem história

Podemos dizer que a perspectiva interdisciplinar entre Antropologia e Design se origina no campo da cultura material, que reúne também a Arqueologia, a História, a Sociologia e a Psicologia, no intuito de compreender a criação e o consumo de objetos, bem como os significados atribuídos a eles.

Na Antropologia, os estudos da cultura material são relevantes pois desempenham um papel na mediação das relações entre os seres humanos através do tempo e do espaço.

Antropólogos estão interessados na sociabilidade que cerca o objeto, nos comportamentos e rituais que os objetos criam ou dos quais participam. Uma vez que, o significado que as pessoas atribuem às coisas advém de motivações humanas, particularmente de como essas coisas são usadas e circulam.

Ao olhar para os objetos como se fossem vidas sociais, os pesquisadores de cultura material proporcionam uma nova maneira de entender como o valor é externalizado e procurado pelas pessoas [1]… ou usuários.

Na década de 1990, a empresa de design E-Lab trouxe a Antropologia para o seu ambiente de trabalho, promovendo um modelo de colaboração igualitária entre designers e antropólogos, tendo as abordagens etnográficas como o núcleo dos métodos de pesquisa da empresa [2]. Com a ajuda de antropólogos, a empresa procurou interpretar os testes de usabilidade levando em consideração as relações sociais e culturais das pessoas usuárias.

Isso foi um marco no campo da pesquisa pois, segundo Donald Norman [3], antes da etnografia, a psicologia cognitiva era o modelo de pesquisa em ciências sociais preferido do mercado. Porém, havia um problema: o modelo da psicologia explicava, principalmente, o que a pessoa usuária estava pensando e, muitas vezes, não conseguia entender os contextos institucionais e culturais mais amplos nos quais ela estava inserida [4].

Daí os antropólogos entraram em cena… Interessante, não?

Mas, então, o que é User Experience (UX)?

User experience ou experiência da pessoa usuária é um processo de interação com um tipo de produto ou serviço.

O UX Designer trabalha na construção de produtos ou serviços visando melhorar a usabilidade, a acessibilidade e o prazer proporcionado por essa interação.

É bom lembrarmos que as pesquisas são realizadas não apenas para auxiliar no desenvolvimento de um novo produto, mas para entender o que e onde aprimorar um produto ou serviço existente.

Portanto, ser UX Designer é pesquisar e entender os aspectos constitutivos da interação do usuário.

Dentro desse contexto, UX Designers utilizam métodos qualitativos e quantitativos para obter insights a respeito das pessoas usuárias a fim de descobrir as motivações, percepções, atitudes e dores.

Design Thinking

O curso apresentou um dos caminhos possíveis para as soluções inovadoras de design: o Design Thinking. Para chegar ao porquê de um público, muitos designers utilizam este método.

O Design Thinking não se trata de uma metodologia exclusiva da área de Design, podendo ser aplicada em outros campos. Ela fornece uma abordagem baseada em soluções para resolver problemas.

Um dos principais atributos dessa metodologia é o foco na pesquisa sobre as pessoas e seus contextos. Nesse caso, as abordagens do Design Thinking são similares e compartilham os mesmos espaços de problemas tratados pela área de UX.

As cinco fases do Design Thinking, de acordo com a Stanford d.school, são:

  • Empatia
  • Definição
  • Ideação
  • Protótipo
  • Teste

Bom, e se eu te falar que algumas etapas do Design Thinking apresentam semelhanças com a Antropologia? Vejamos…

Problema a solucionar

Antes de adentrarmos nas fases do Design Thinking, a turma foi dividida em grupos, induzida a escolher um problema que fosse comum aos integrantes e solucioná-lo por meio da criação de um produto digital.

O nosso grupo chamou a atenção para as dificuldades que pessoas com deficiências motoras possuem em encontrar lugares públicos com acessibilidade.

No Brasil, mais de 45,6 milhões de brasileiros declararam ter alguma deficiência, segundo dados do Censo Demográfico 2010. A deficiência motora aparece como a segunda mais relatada pela população: mais de 13,2 milhões de pessoas afirmaram ter algum grau do problema.

Problema para solucionar: Dificuldade de encontrar locais públicos com acessibilidade para pessoas com deficiências motoras

Empatia

O primeiro princípio do Design Thinking é a empatia. A empatia é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.

Para que esta etapa seja alcançada, pesquisas etnográficas, entrevistas em profundidade, grupos focais, questionários, observação e desk research são alguns dos métodos utilizados para nos aprofundarmos nas emoções, comportamentos e nos contextos dos usuários.

Todo estudante de Antropologia ou Ciências Sociais, no início da graduação, aprende que se você está disposto a entender verdadeiramente os pensamentos e sentimentos de uma pessoa ou de um grupo, é necessário participar de sua rotina. O objetivo é evitar um erro comum: basearmos em achismos. Chamamos isso de observação participante; o “tornar-se nativo”. Esse processo se alinha perfeitamente na fase de empatia.

É por meio da observação participante que obtemos a empatia.

Definição

Após os dados obtidos pela etapa anterior, esta etapa traz uma delimitação do problema enfrentado pelos usuários, o que precisa ser resolvido ou criado.

No curso, o método que fizemos uso foi a proto-persona. Uma persona é uma personagem de ficção. Essa é uma maneira de personificarmos e humanizarmos as pessoas usuárias, ampliando suas narrativas e, consequentemente, planejando estratégias de negócios baseadas no público-alvo.

Proto-persona

Além das personas, outros métodos podem ser utilizados na etapa de definição. São eles: mapa da jornada do usuário, mapa de empatia e blueprint.

Na Antropologia, a delimitação do problema é uma fase importante. Durante a pesquisa etnográfica, os antropólogos rabiscam observações em pequenos blocos de notas que chamamos de “notas de campo”. As notas de campo são essenciais para a definição de novos insights sobre um determinado público. É por meio dessas anotações detalhadas que alcançamos a definição do problema.

Ideação

Essa é a minha fase favorita. A etapa de brainstorm. É a fase do desenvolvimento de ideias. Aqui, as ideias fluem sem censura, amarras ou constrangimento. Não existe resposta única ou solução perfeita.

O método que utilizamos para esta fase foi o briefing de plano de ação. O briefing foi elaborado em cinco tópicos:

Briefing de plano de ação

Depois de preenchermos o briefing de plano de ação, elaboramos um fluxo de tarefas que seria realizada pelo usuário.

O task flow auxilia na identificação das ações necessárias que o usuário precisa para completar uma tarefa; no nosso caso, dentro do aplicativo sobre acessibilidade. O fluxo também ajuda a entender como a informação é transitada dentro de um sistema existente ou que está sendo desenhado.

Task flow

Além do briefing de plano de ação e do task flow, o inventário de interface, o crazy eights e storyboard são outros métodos que compõem a fase de ideação.

Na área da Antropologia, as notas de campo e a capacidade analítica de um antropólogo são capazes de desencadear diversos brainstorms que podem até mudar o curso de sua pesquisa etnográfica (e sabemos que sempre muda!). Quanto mais detalhes você tiver sobre um determinado grupo, maior será o seu alcance no processo de ideação.

Prototipação

Protótipo

Na fase de prototipação podemos gerar protótipos em diversos formatos.

O objetivo é testar de modo rápido e econômico nossa ideia antes de desenvolvê-la em um produto ou serviço completo. Dessa maneira, é possível percebermos desde já a visão das pessoas usuárias sobre um determinado produto ou serviço e validarmos nossas hipóteses de pesquisa.

Existem três tipos de prototipação, sendo eles: o protótipo de baixa fidelidade, de média fidelidade e de alta fidelidade.

Protótipos ​​de baixa e média fidelidade podem ser uma ótima forma para testar o seu produto digital sem distrair o usuário com muitos recursos visuais.

No curso, desenvolvemos um protótipo de média fidelidade por meio do Figma.

Uma dica preciosa sobre prototipagem é não gastar muuuito tempo construindo o seu protótipo; pois, quanto mais tempo você se dedica, mais apegado emocionalmente você fica à sua ideia.

Essa dica também vale para os antropólogos em seus processos de pesquisa: ficar apegado à uma ideia ou hipótese é prejudicial para o raciocínio analítico, podendo enviesar os rumos de nossas pesquisas. Quem fornece os insumos para o aperfeiçoamento de nosso produto, serviço ou pesquisa são as pessoas que estamos estudando.

Testes de usabilidade

Chegamos na fase de validação de ideias. É neste momento que as soluções apresentadas no protótipo são testadas e verificadas na prática com usuários reais.

A fase de teste fornece o feedback e um entendimento do que precisamos para iterar nosso protótipo e onde fazer melhorias. Após os testes, muitas das vezes é necessário remodelarmos os protótipos e testá-los novamente.

Juntos, a prototipação e os testes agregam um valor significativo para o processo de design e ao negócio. Quando testamos nossas ideias, desde o início, somos capazes de identificar falhas e problemas de usabilidade antes de lançarmos o produto no mercado. Isso traz bons benefícios para o usuário e a empresa.

Elaboração de um cenário para a aplicação do teste de usabilidade

Antropologia do design? Design antropológico?

Fusão / Dragon Ball Z

Tanto UX Designers quanto antropólogos buscam aprender e compreender profundamente sobre as motivações, pontos fracos, crenças, certas práticas e comportamentos das pessoas.

Entender o porquê as pessoas fazem o que fazem é a base da antropologia, e também é a base do design.

Em resumo:

  • O mundo de UX exige metodologias de pesquisa; a Antropologia traz um forte conhecimento de metodologias qualitativas (etnografia, observação participante, entrevistas em profundidade…);
  • A área de UX Design exige a empatia para as experiências do usuário; a Antropologia traz estratégias de etnografia e observação participante para compreender verdadeiramente os usuários nos contextos que estão inseridos;
  • O UX Design exige centralização no usuário; a Antropologia proporciona uma visão holística dos valores e da cultura das pessoas

Além disso, a Antropologia também pode se beneficiar do UX Design:

  • Em vez de longos prazos de pesquisa (meses e até anos), a pesquisa de UX se concentra em melhorias rápidas e iterativas conduzidas em prazos rápidos. O campo de experiência do usuário fornece uma mudança revigorante de ritmo para os antropólogos;
  • O UX Design aponta para práticas colaborativas e multidisciplinares que respondam aos desafios sociais contemporâneos;
  • O UX Design chama a atenção da Antropologia em considerar a criatividade e a experimentação das pessoas a partir de suas necessidades e desejos.

Viu como essas duas áreas se complementam e podem ser enriquecedoras do ponto de vista de pesquisa?

Conclusão

Para concluir, quero deixar claro que de modo algum defendo a sobreposição de um campo em detrimento do outro ou que UX Design e Antropologia são as mesmas coisas. Pelo contrário: acredito na interdisciplinaridade da vida e das coisas.

Designers fazem o uso de métodos etnográficos e antropólogos aplicam elementos de UX Design em suas práticas etnográficas. Ambos consideram que a experiência é individual, subjetiva e contextual e têm a consciência que trabalhar com suposições levará a erros em suas respectivas pesquisas.

O que eu quis mostrar é que antropólogos e UX designers vivem continuamente entre a pesquisa de campo, a análise e a síntese dos dados obtidos.

Já faz um tempinho que tanto antropólogos quanto designers observaram que suas relações são complementares e enriquecedoras:

“Nós moldamos objetos e os objetos moldam e transformam nossas práticas e também a nós” [5]

Referências

[1]. APPADURAI, Arjun. 1986. The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press.

[2]. Wasson, Christina, and Crysta Metcalf. 2013. “Bridging Disciplines and Sectors: An Industry-Academic Partnership in Design Anthropology.” In Design Anthropology: Theory and Practice, by Wendy Gunn, Ton Otto and Rachel Charlotte Smith. London: Bloomsbury Academic.

[3]. Norman, Donald A. 1988. The Psychology of Everyday Things. New York: Basic Books.

[4]. Robinson, Rick E. 1993. “What to do with a Human Factor: A Manifesto of Sorts.” American Center for Design Journal 7: 63–73.

[5]. Giaccardi, Elisa, Chris Speed, Nazli Cila, and Melissa L. Caldwell. 2016. “Things as Co-Ethnographers: Implications of a Thing Perspective for Design and Anthropology.” In Design Anthropological Futures, edited by Rachel Charlotte Smith, Kasper Tang Vangkilde, Mette Gislev Kjaersgaard, Ton Otto, Joachim Halse, and Thomas Binder, 235–48. New York: Bloomsbury Academic.

Agradeço novamente PretUX e a Mergo pelo direcionamento, mentoria e qualificação no mercado de UX! E também a você por ter lido até aqui!👋🏾

Este artigo é uma parceria com a comunidade PretUX, que é parceira da Mergo no fomento e inclusão do mercado de UX e Design.

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Eduardo Freitas
Mergo
Writer for

UX Researcher @ Localiza | Antropólogo, apaixonado por pesquisa, cultura e tecnologia.