A Regulação do Acesso aos Recursos Genéticos Marinhos e a Repartição de Benefícios: O Modelo Brasileiro como inspiração para o Tratado BBNJ

Henry Philippe Ibanez Novion & Ana Flávia Barros-Platiau

Meridiano 47
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21 min readMay 24, 2023

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https://doi.org/10.20889/M47e23004

Resumo

A agenda diplomática de regulação do acesso aos recursos genéticos marinhos e a repartição de benefícios deles advindos perpassa grandes arenas multilaterais desde 1992, entre elas a CDB, a BBNJ e a Antártica. Logo, constitui uma oportunidade ímpar para que o Brasil promova seu modelo e mobilize uma coalizão voltada a efetivar a partilha dos benefícios monetários, incluindo aqueles resultantes do uso de informações de sequências genéticas digitalizadas.

Abstract

Since 1992, the diplomatic agenda concerning access to genetic resources and benefit sharing runs through different multilateral arenas, such as the CBD, BBNJ and Antarctica. Therefore, it is a unique opportunity for Brazil to promote its national model and to mobilize a coalition of like-minded countries to implement the distribution of monetary benefits, including those from the use of digital information sequencing.

Palavras-chave: Lei da Biodiversidade; Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional — BBNJ; Acesso aos recursos genéticos e repartição de benefícios — ABS; Sequenciamento genético.

Keywords: Biodiversity Bill; Biodiversity Beyond National Jurisdiction — BBNJ; Access and benefit-sharing — ABS; Genetic sequencing.

Introdução

As atuais negociações diplomáticas relativas ao instrumento internacional juridicamente vinculante sobre biodiversidade além da jurisdição nacional (denominado Tratado BBNJ da sigla em inglês para biodiversity beyond national jurisdiction) precisam ser analisadas com uma abordagem mais ampla, tanto do ponto de vista do tema, quanto do tempo. Isto porque o tema da conservação e uso sustentável dos recursos vivos tem uma longa história de árduas negociações multilaterais, sob a égide da ONU (Le Prestre, 2011, 2017). Em outros termos, o processo entre o vazio jurídico no cenário internacional e a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) em 1992 exige uma leitura atenta, por ser o arcabouço internacional resultante de décadas de negociações, desde a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em 1972 (Le Prestre, 2017).

Em seguida, o período entre 1992 e as mais recentes Conferências das Partes (CoPs), não menos controverso, contribuiu diretamente para o formato das negociações sobre diversidade biológica em áreas além da jurisdição nacional (ABNJ), como o alto mar e a Antártica. Neste contexto, qual é o espaço para o Brasil, com a sua atual capacidade de interlocução sobre o tema da biodiversidade? A hipótese é que a diplomacia brasileira tem uma oportunidade ímpar de promover seus interesses e mobilizar uma coalização de Estados like-minded, em razão da potencial utilidade da Lei da Biodiversidade brasileira para a negociação de um dos quatro pilares do Tratado BBNJ.

No âmbito do regime da biodiversidade, baseado na CDB, os avanços foram lentos e limitados (Tomé Silva, 2020). Após anos de negociações, o “Protocolo de Nagoia sobre acesso a recursos genéticos e repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização” à Convenção sobre Diversidade Biológica” foi adotado, entrando em vigor em 2014 (Le Prestre, 2017; Dias et al, 2021). Curiosamente, foi regulado o acesso a recursos genéticos sob jurisdição nacional, porém todos aqueles compartilhados pela comunidade internacional, como propriedade de todos (res communis) ou propriedade sem dono (res nullius) permanecem objeto de regulação frágil e lacunária. Entre a CDB e o seu Protocolo de Nagoia foram vinte e dois anos de construção institucional no âmbito multilateral, concomitante aos arcabouços normativos domésticos, para cobrir apenas uma parte da biodiversidade. Ou seja, houve um processo de co-evolução das regras nacionais e internacionais, na linha do que Varella (2012) chamou de “internacionalização do direito”.

De acordo com este regime inovador da CBD foram criadas as instituições e obrigações, como o mecanismo de clearing house, as conferências das Pares (CoP), as Metas de Aichi, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). Todos eles deveriam contribuir para os objetivos da CDB, de forma a atender os interesses de três grandes grupos de países: 1) os detentores de recursos biológicos, também conhecidos como fornecedores tradicionais, e mais especificamente o grupo dos países megadiversos; 2) aqueles interessados no acesso aos recursos vivos, também tratados de forma mais apropriada como recursos genéticos; 3) aqueles excluídos da centralidade da agenda, porém podendo pesar em processos decisórios multilaterais, pelo princípio da ONU de “um país um voto”.

Desde 1992, foi instaurado um regime baseado na soberania (Dias et al, 2021), como uma vitória diplomática dos Estados em desenvolvimento, correspondentes principalmente ao primeiro grupo. De acordo com as regras do regime, o Estado deveria regular o acesso aos recursos genéticos no seu território e a repartição de benefícios dele advindo. Os resultados desta negociação diplomática foram mitigados (Hermitte, 2004), notadamente pela demora na adoção do Protocolo de Nagoia. Por um lado, houve o reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados ricos em diversidade biológica, vencendo a pressão para que a biodiversidade fosse considerada um “bem comum” e aprofundando a lógica de apropriação pelas potências atuais, em detrimento dos Estados em desenvolvimento e mais vulneráveis. Foi também um freio à lógica da liberdade dos mares, segundo a qual quem chega primeiro fica com o recurso (first arrived, first served).

Por outro lado, nem todos os Estados em desenvolvimento tiveram condições de criar arranjos institucionais efetivos, para controlar o acesso, e muito menos para assegurar a repartição de benefícios. Ademais, se o controle de atividades em território nacional é difícil, no mar é muito mais desafiador. Exemplo emblemático são os casos de pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INN), que muitos Estados não conseguem combater, inclusive o Brasil. Como será analisado abaixo, o Brasil é um caso sui generis, que merece atenção (CNI, 2017), tanto pelo seu status de global player no tema, como país megadiverso (Dias et al, 2021), como pela agenda diplomática nos últimos trinta anos.

O presente artigo trata mais especificamente do futuro Tratado BBNJ, concernente ao caso da biodiversidade no alto mar. Entretanto, ele não é totalmente desconectado do caso da Antártica, haja vista que o regime atualmente em vigor[1] ainda carece de regulação adequada para o tema de acesso aos recursos genéticos e repartição de benefícios (ABS, da sigla em inglês access and benefit sharing).

Na sua primeira parte, o presente artigo destaca a questão da diversidade biológica como um longo processo, a partir das negociações para a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (1992), na Cúpula das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92). A segunda parte tem início com o chamado “modelo Brasileiro”, que corresponde à provisões da Legislação brasileira que foram efetivamente incorporadas à posição diplomática brasileira no âmbito das negociações das Conferências Intergovernamentais (IGC), principalmente na 3ª IGC, haja vista que a 4a IGC foi postergada em razão da pandemia[2].

I — Da Negociação para a CDB para o Futuro Tratado BBNJ

Os dilemas relativos ao acesso a recursos vivos e não-vivos podem ser facilmente retraçados desde a época da colonização do Brasil. O que mais interessa não é a história nacional, mas sim a lógica de apropriação de recursos por potências, principalmente europeias. Nos últimos 500 anos, as potências militares e tecnológicas empenharam-se em “conquistar” territórios sobre os quais não reconheciam soberania e deles extrair recursos naturais (Kiss, 2004). Por isso que o princípio da soberania tornou-se central para o direito internacional em geral, e para o ambiental em particular. Ademais, cabe ressaltar que o regime de biodiversidade deveria ser global, considerando diversos níveis políticos, do local ao regional (Inoue, 2007).

Neste contexto, o reconhecimento, pelo direito internacional público, de que os Estados soberanos regulariam o acesso aos recursos genéticos sob sua jurisdição, criou um cenário extremamente fragmentado e assimétrico. A maior parte dos Estados criou normas, porém cada uma com suas características específicas, engendrando, em vários casos, uma burocracia imensa para pesquisadores e empresas internacionais. O fato mais importante talvez seja o aprendizado institucional de que o acesso é extremamente difícil de ser regulado. Mesmo Estados com instituições consolidadas, como o Brasil, não conseguiram evitar a biopirataria e assim coibir práticas que violavam as leis nacionais. A constatação da dificuldade de regulação do tema ABS levou o Brasil a buscar outra solução, baseada em novo arranjo institucional. O resultado foi a “nova” Lei da Biodiversidade, discutida na segunda parte.

Além disso, o tema ABS insere-se no arcabouço teórico de complexo de regimes, haja vista que o tema interessa a diversos stakeholders, de diferentes setores de atividade. Morin et al (2016) identificaram cinco regimes sobrepostos: ambiental, comercial, cultural, agrícola e de desenvolvimento, conforme a Figura 1 abaixo.

Figura 1 — O Complexo de Regimes de Biodiversidade

Haja vista que a Convenção sobre Diversidade Biológica é central no arranjo diplomático representado na Figura 1, o que for decidido no seu âmbito contribuirá para os debates nas outras arenas multilaterais, mas não necessariamente de forma direta e previsível pois o escopo da CDB é limitado pelo princípio da soberania. Outrossim, pode-se afirmar que o grande complexo de regimes da biodiversidade afeta também, mesmo que seja indiretamente, os recursos genéticos do Planeta todo.

Contudo, além da questão da circulação das regras obrigatórias entre diferentes regimes, há também a questão do acesso aos dados científicos obtidos, ou seja, do sequenciamento genético. Neste caso, pode-se afirmar que o atual regime de ABS (bilateral, tratado no caso a caso, baseado em autorizações prévias e morosas negociações para se aceder ao valor potencial da biodiversidade) não atenderá aos novos desafios da regulação do acesso a recursos sob jurisdição nacional e além. O regime atual permanece inadequado, particularmente para o desafio da regulação do acesso e uso das informações de sequências genéticas disponíveis em base digitais. Conforme o estudo comissionado pela CDB indica, as informações de sequências genéticas digitalizadas (Digital Sequence Information -DSI) são empregadas nos cinco acima mencionados regimes sobrepostos (Laird;Wynberg, 2018), armazenadas em base de dados públicas e empregadas em pesquisa e desenvolvimento sem qualquer restrição ou condição, seja da parte do País usuário ou da base de dados, como o Genebank (Combined Study on DSI, requested by CBD Parties).[3]

Em outros termos, quando um regime, que seja a CDB, BBNJ ou ATS estabelecer regras de ABS para as informações de sequências genéticas digitalizadas (DSI da sigla em inglês), os demais regimes poderão ou não defender as mesmas regras para outras agendas de negociação. Por conta de seu uso descontrolado, marginal ao sistema internacional de ABS, as DSI também são objeto de negociação em âmbito internacional, com especial liderança da CDB nesse processo[4], e diferentemente implementado em âmbito doméstico (Bagley et al. 2020). O tema das DSIs, ou recursos genéticos in silico, já perpassa outros fóruns internacionais, inclusive o BBNJ, e a construção de novos regimes, em bases anacrônicas incrementará a complexidade da regulação do tema, com consequentes “altos custos de transação e administrativos, acesso reduzido a recursos genéticos, colaboração internacional reduzida e impactos negativos na pesquisa científica e na saúde pública” (Brink; van Hintum, 2020). Nesse sentido, o arcabouço instrumental corrente de Nagoia/CDB (autorização prévia ao acesso — PIC[5]; e negociação caso a caso de contratos de repartição de benefícios — MAT[6]) não deve ser repetido para o tratado BBNJ e nem no futuro, para o caso da Antártica.

No que concerne à CDB, a atual incerteza jurídica e o custo regulatório trazem riscos financeiros e reputacionais a pesquisadores e agentes econômicos, bem como para as numerosas instituições de pesquisa em ciência e tecnologia que desenvolvem produtos e processos a partir do acesso ao recurso genético, independentemente da jurisdição de ocorrência do referido recurso. Por causa desses riscos e custos, diversos atores evitam incorporar produtos da biodiversidade em suas linhas de pesquisa e em suas atividades produtivas. Consequentemente, extratos e substâncias da biodiversidade são comumente substituídos por substâncias sintéticas, o que também desestimula cadeias produtivas sustentáveis, que obtêm e produzem extratos e ingredientes naturais.

É fundamental estabelecer medidas administrativas e legislativas que incentivem a pesquisa, e o desenvolvimento tecnológico a partir dos recursos genéticos da biodiversidade para que novos conhecimentos, produtos e processos, passíveis de proteção intelectual ou não, possam ser gerados e os benefícios, monetários ou não, repartidos. Ao mesmo tempo, os Estados devem criar mecanismos de controle e rastreabilidade que foquem nos resultados e não em expectativas.

A utilidade do modelo “Open access under terms and conditions”[7] para o acesso aos recursos genéticos da Biodiversidade Marinha de áreas além da Jurisdição Nacional (BBNJ)

Diversos fóruns internacionais têm negociado decisões referentes ao acesso, uso e repartição de benefícios dos recursos genéticos (ABS). Indistintamente, embora com olhares focados em pletora de setores (propriedade intelectual; comércio; saúde; agricultura e alimentação; meio ambiente ou desenvolvimento sustentável). Como mencionado acima, o regime da Diversidade Biológica (CDB) aborda unicamente a exploração dos recursos da biodiversidade que estão em território nacional, ou seja, sob a soberania dos Estados. Logo, os acessos aos recursos que estão fora de jurisdição nacional, como no caso da Antártica e do alto mar, ainda não estão devidamente regulados.

Modelos de regulação pautados no “open access under terms and contidions”, como o modelo brasileiro atual, permitem novas bases para a construção de confiança internacional na regulação da pesquisa, do desenvolvimento, da exploração econômica e a conservação dos recursos genéticos da BBNJ. A proposta combina a adoção de regras facilitadas de acesso e uso (o “open”), condicionadas a garantias de repartição efetiva dos benefícios (o “under terms and contitions”).

O equilíbrio entre as sobreditas medidas deve ser hoje princípio norteador do processo Intergovernamental no âmbito da Conferência criada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução 72/249 (IGC-BBNJ). Ela negocia o “Instrumento Juridicamente Vinculante para a Conservação e o Uso Sustentável da Biodiversidade Marinha de áreas além da Jurisdição Nacional” (ILBI-BBNJ da sigla em inglês).

O documento em negociação (DRAFT de novembro de 2019) conta ainda com várias opções de texto sem consenso, em inúmeros dispositivos. Reflete os polos, as expectativas e as antagônicas visões sobre o tema, o que demandará enérgico esforço negociador e de concertação das delegações envolvidas (Cremers et al, 2010; Barros-Platiau e Oliveira, 2020).

Ao longo do ano de 2020, as Partes negociadoras continuaram dialogando em formatos regionais, minilaterais, e bilaterais. Destaque para o fato da atuação ativa dos Grupos, como o Africano e o GRULAC, neste processo diplomático de concertação para eventual alinhamento para a 4ª IGC.

II — O Modelo Brasileiro para ABS no Futuro Tratado BBNJ

Especificamente sobre o tema de acesso aos recursos genéticos e repartição de benefícios resultante da sua exploração econômica, os negociadores Brasileiros já contam com base legislativa nacional sobre ABS sob sua jurisdição, a Lei n.13.123/2015[8], para fundamentar o racional a ser defendido nas negociações multilaterais da IGC-BBNJ.

Embora a discussão do supracitado Instrumento Internacional verse sobre áreas além da jurisdição nacional, várias das tecnologias regulatórias para o tema de ABS desenvolvidas na lei servem à atuação brasileira na IGC-BBNJ e já está nela refletida, como se demonstrará abaixo.

O Interesse Brasileiro é de ter um regime internacional de ABS que corresponda ao seu perfil de país megadiverso, beneficiário do uso dos recursos genéticos em conformidade e transparente (que indique procedência e não eroda a soberania), por um lado, mas expressivo usuário de recursos genéticos e portanto, potencial beneficiário de sistemas abertos de ABS, com potencial para facilitar a pesquisa e o desenvolvimento. Não menos importante é a garantia do acesso às informações oriundas do acesso e uso dos recursos genéticos, estejam disponíveis em bases digitais, como as DSIs, sejam relevantes para a saúde, para a conservação da biodiversidade ou para atender à demanda do setor do agronegócio. Importa ao Brasil que o Marco BBNJ seja harmônico à Lei de ABS. Para tanto, é imperativo que o Brasil atue de forma protagonista nas próximas sessões, incidindo para evitar a adoção de posições que possam erodir a soberania nacional e se contrapor a seus interesses específicos.

Da Lei Brasileira de ABS depreendem-se princípios que poderiam nortear a diplomacia brasileira em distintos fóruns que negociam o tema de ABS, e que deveriam nortear as discussões aqui em comento.

Princípio Norteador “open access under terms and conditions[9]”: Acesso livre aos recursos genéticos BBNJ desde que haja garantia de repartição de benefícios pela exploração econômica de produtos finais acabados que tenham sido originados de Recursos Genéticos de BBNJ.

A presente proposta representa uma posição intermediária entre, de um lado, países ricos usuários de recursos genéticos — RG (que priorizam regras facilitadoras do acesso sem tanta preocupação com a Repartição de Benefícios) e, de outro, de países provedores que advogam o estabelecimento de regras de consentimento prévio ao acesso (PIC) e uso do RG que praticamente inviabilizam a pesquisa, a inovação e o desenvolvimento de produtos e processos a partir do uso do RG.

Essa abordagem brasileira é essencial para equilibrar as antagônicas visões em nível internacional que questionam a factibilidade de um sistema de acesso que não burocratize a pesquisa e o uso ao mesmo tempo em que viabiliza a repartição de benefícios.

Observe-se que a pesquisa científica, ainda que tenha objetivo comercial, bem como a obtenção e o licenciamento de direitos de propriedade intelectual (patentes e cultivares) não é objeto de repartição de benefícios na presente proposta. Apenas o produto acabado, pronto para a comercialização, que passa por checkpoints oficiais (vigilância sanitária, conformidade fiscal, técnica entre outros), recolheria porcentagem da receita à título de repartição de benefícios.

O valor da repartição deveria ser negociado no âmbito do Acordo (ABBNJ), ou nas Conferências das Partes da Convenção a ser criada (o Tratado sobre Biodiversidade Marinha de áreas além da Jurisdição Nacional — TBBNJ), para não obstaculizar a adoção do instrumento. Ou seja, o quanto, a forma de cálculo e o cumprimento dessas regras deveriam ser detalhadas e negociadas em um segundo momento, na primeira Conferência das Partes (COP) por exemplo. O acordo deve prever esse detalhamento “ex post”, delegar à Conferências das Partes, de modo a não bloquear a negociação do acordo com debates nesse nível de detalhamento.

O escopo do Acordo não deve sobrepor ou descobrir o escopo da Lei nº 13.123 de 2015, que trata do tema em nível nacional, para tanto:

1 — O uso de RG inclui o uso de informação de origem genética: o entendimento de acesso à recursos genéticos, seus componentes, produtos ou derivados deve abranger o acesso às informações de origem genética ainda que obtidas de bancos de dados in silico, de armazenagem algorítmica-quântica ou bancos que empreguem moléculas de DNA para armazenamento de dados (Patel, 2016), o que ademais da conservação in situ, ex situ, on farm e in silico, oportunizará que a informação contendo o valor potencial da biodiversidade seja, em um futuro cenário, armazenada in genetico materiale[10]. Em suma, informações oriundas de amostras de recursos genéticos, mas hoje disponíveis em banco de dados digitais na internet ou desmaterializados de alguma forma.

No caso do Brasil, a Lei nº 13.123, de 2015, define patrimônio genético como a informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos (Artigo 2º, I). O Decreto nº 8.772, de 2016, ao dispor sobre o cadastro no formulário eletrônico do SisGen, exige que seja informada a procedência do patrimônio genético ainda que tenham sido obtidas em fontes ex situ ou in silico.

Portanto, a Lei e o Decreto que regulamentam o acesso e repartição de benefícios no Brasil já admitiram o acesso ao recurso genético desmaterializado, sem a necessidade do acesso à amostra física per se. Assim, a regulamentação da Lei nº 13.123/2015 prevê que a pesquisa in silico seja livremente realizada, e que apenas no momento da publicação dos resultados ou solicitação de pedido de patente é exigida a realização do cadastro.

2 — Utilização e Uso Sustentável devem ser definidos e, caso necessário, um termo distinto poderia ser adotado para definir exploração econômica objeto de repartição de benefícios. Isto é, deve-se buscar separar a definição de “utilização”, como pesquisa e desenvolvimento, livre da obrigação de repartição de benefícios monetária, e o termo “exploração econômica sujeita a repartição de benefícios”, que também exclua a exploração de recursos como commodities da obrigação da repartição de benefícios monetária.

3 — Além das sobreditas, outras soluções encontradas pela Lei nº 13.123/2015 poderiam ser consideradas em âmbito internacional para a implementação do uso de informações genéticas:

· Mecanismos facilitados para o acesso ao patrimônio genético, provocando deslocamento no foco da regulação, anteriormente concentrado no controle do acesso, para o controle de resultados;

· Considerações especiais para a pesquisa científica (com ou sem fins comerciais);

· Tratamento adequado às atividades relacionadas à alimentação e agricultura;

· Incidência única da repartição de benefício no elo de maior valor agregado (produto final acabado oriundo de RG da BBNJ) e a exploração econômica de fato como o momento de incidência da repartição de benefícios monetária; e

O estabelecimento de um Fundo de repartição de benefícios destinados a canalizar os recursos para a conservação e a pesquisa com RG da BBNJ, e, dessa forma, financiar as atividades do Tratado sobre BBNJ.

Direitos de Propriedade Intelectual

Os direitos de propriedade intelectual, embora possam gerar benefícios monetários a partir de seu licenciamento ou transferência, na maioria das vezes, não se materializa em processos produtivos e/ou exploração econômica do objeto da proteção. As patentes que geram recursos de seu licenciamento normalmente correspondem a invenções com apelo comercial e mercado (Dutfield, 2004), ou seja, invenções que serão produzidas e comercializadas, gerando benefícios monetários a partir de sua exploração econômica como produto e não como patente.

Em outros casos, os valores pagos pelo licenciamento são porcentagens/royalties oriundos dos valores de venda do produto protegido, o que inevitavelmente leva à conclusão que o maior volume dos benefícios monetários obtidos a partir de uma invenção oriunda de recurso genético são resultantes da exploração comercial do produto, mais do que da exploração da patente.

O acordo BBNJ deveria reconhecer que haverá benefícios econômicos gerados a partir dos direitos de propriedade intelectual, derivados do licenciamento e transferência, mas expressamente optar por eximir tais atividades econômicas da repartição de benefícios monetária, e exclusivamente da monetária, em favor da cobrança sobre a exploração dos produtos e processos que serão comercializados e que são protegidas pelo DPI. Opta-se por desonerar a cadeia de inovação da repartição de benefícios monetária como política de incentivo ao uso dos recursos genéticos para a geração de conhecimento, produtos e processos.

Importa recordar ainda que a patente expira após um prazo, enquanto a exploração comercial do produto outrora protegido não só segue após a expiração da patente, como passa ser produzida por outras empresas. Quanto mais usuários explorarem o produto agora em domínio público, maior a base de arrecadação da repartição de benefícios monetária sobre o produto. Exemplo disso é o medicamento para hipertensão comumente conhecido como Captopril, derivado de recurso genético, hoje em domínio publico e campeão de vendas globalmente.

O racional por traz de a “proposta de renúncia” objetiva estimular e ampliar a inovação a partir de recursos genéticos, com o entendimento de que este estímulo materializará novos produtos e processos e, estes sim, repartirão benefícios monetários.

Mecanismo de Financiamento da Convenção e Fundo BBNJ de Repartição de Benefícios.

O acordo sobre BBNJ poderia explorar a ideia de criar um fundo internacional voltado a canalizar recursos para a conservação da BBNJ. Todo produto final acabado oriundo da BBNJ deveria recolher, após o primeiro ano de exploração econômica, uma porcentagem (a ser definida na primeira reunião do TBBNJ) da receita das vendas junto a um Fundo ou mecanismo equivalente, criado e gerido pelas partes do TBBNJ.

A ideia seria a de se criar um mecanismo de financiamento das ações aprovadas no âmbito do TBBNJ, inclusive emprego desses recursos na própria organização, e implementação da estrutura de governança que o TBBNJ demandará. (Vogel, et al. 2018)

A criação do fundo permitirá que tais recursos econômicos estejam disponíveis para custear ações de conservação, pesquisa e desenvolvimento no âmbito do tratado BBNJ, com uma vantagem, sob a gestão das Partes do acordo, o que gera transparência e, consequentemente, confiança. Mais do que isso, permitirá mais justiça azul, ou seja, justiça a partir do uso sustentável dos recursos marinhos[11].

III — Conclusão

A biodiversidade é um tema complexo e demanda uma abordagem científica, sistêmica e planetária. Entretanto, as negociações multilaterais abordam a exploração dos recursos da biodiversidade que restam sob a soberania dos Estados de forma separada daqueles que estão fora ou além de jurisdição nacional. Entretanto, isto não significa que os regimes em vias de negociação sejam livres dos efeitos gerados pelos demais regimes. Em outros termos, CDB, BBNJ e ATS podem criar regras que os afetarão mutuamente. Logo, distintos fóruns intergovernamentais têm negociado decisões referentes ao acesso, uso e repartição de benefícios dos recursos genéticos com olhares focados em pletora de setores e agendas: propriedade intelectual; comércio; saúde; agricultura e alimentação; meio ambiente ou desenvolvimento sustentável.

Ao mesmo tempo, a legislação brasileira, desde 2000, regula o acesso a recursos genéticos, ainda que desmaterializado e sem acesso à amostra física, e a diplomacia brasileira vem defendendo-o em fóruns multilaterais, notadamente no âmbito da BBNJ. O atual marco legal, a Lei no.13.123/2015 estabeleceu inovações que poderiam inspirar os negociadores no IGC-BBNJ a criar um sistema desburocratizado, que promova a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, ao mesmo tempo em que garanta a repartição de benefícios para a conservação.

Modelos de regulação pautados no “open access under terms and contidions”, como o modelo brasileiro atual, permitem novas bases para a construção de confiança internacional na regulação da pesquisa, do desenvolvimento, da exploração econômica e a conservação dos recursos genéticos da BBNJ. A proposta combina a adoção de regras facilitadas de acesso e uso (o “open”), condicionadas a garantia de repartição efetiva dos benefícios (o “under terms and contitions”).

Modelos como esse facilitam a pesquisa e inovação para academia, indústria e demais setores, o que é fundamental. Ela permite o maior desenvolvimento científico e tecnológico a partir de insumos naturais, a geração de negócios com base na biodiversidade e, posteriormente, a efetiva repartição de benefícios. Benefícios esses que devem ser canalizados para a conservação da mesma biodiversidade que oportunizou a geração do referido benefício, seja esse um benefício científico (uma pesquisa publicada), seja um benefício tecnológico (uma inovação patenteada) seja um benefício monetário (da venda de produtos comerciais).

Independentemente da escala do modelo de ABS que se esteja a implementar, regimes de acesso aberto que garantam a repartição de benefícios contribuirão sobremaneira para alavancar o desenvolvimento sustentável, permitindo que o uso racional dos componentes da biodiversidade mobilize os recursos (científicos, tecnológicos e financeiros) necessários para a conservação da mesma biodiversidade, independentemente da jurisdição de sua ocorrência.

Finalmente, o Brasil tem uma oportunidade ímpar de atuar como protagonista nas negociações BBNJ em 2021 e promover uma coalizão de Estados em desenvolvimento para defender o acesso amplo aos recursos genéticos marinhos, à condição que seja adotado um mecanismo de repartição de benefícios que garanta, efetivamente, que os benefícios gerados são canalizados para a conservação da biodiversidade, sejam estes benefícios monetários, tecnológicos ou científicos, como as DSI que devem seguir públicas e disponibilizadas para todos, em nome do interesse geral da humanidade e do avanço da ciência.

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Notes

[1] O regime inclui: o Tratado da Antártica (1959), a Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos Antárticos (CCAMLR) e o Protocolo de Madri (1991).

[2] Seventy-fourth session Agenda item 74 (a) Oceans and the law of the sea: oceans and the law of the sea. <https://www.un.org/bbnj/sites/www.un.org.bbnj/files/bbnj-letter-from-president-of-the-bbnj-conference.pdf. Acesso em 30 de maio de 2021.

[3] Combined study on DSI in public and private databases and DSI traceability. As requested by decision 14/20 (paragraph 11 © to (d)) from the fourteenth Conference of the Parties to the Convention on Biological Diversity

Link: https://www.cbd.int/abs/DSI-peer/Study-Traceability-databases.pdf

[4] CBD Webinar Series on Digital Sequence Information on Genetic Resources

https://www.cbd.int/article/dsi-webinar-series-2020

[5] Previous Informed Consent

[6] Mutually Agreed Terms

[7] Acesso aberto sob termos e condições preestabelecidos.

[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13123.htm

[9] Acesso aberto sob termos e condições preestabelecidos.

[10] Conservação in genetico materiale é a conservação de informação biológica em material genético sintetizado a partir de informações de sequências genéticas obtidas de bases digitais (DSI).

[11] < http://toobigtoignore.net/blue-justice-for-ssf/>. Acesso em 31 de maio de 2021.

Sobre os autores

Henry Philippe Ibanez Novion — Ministério do Meio-Ambiente, Brasília — DF, Brasil (novionh@gmail.com) — https://orcid.org/0000-0002-6475-2725

Ana Flávia Barros-Platiau — Universidade de Brasília, Instituto de Relações Internacionais, Brasília — DF, Brasil (anabarros@unb.br) — https://orcid.org/0000-0002-8804-0378

Como citar este artigo

Novion, Henry, e Ana Flávia Barros-Platiau. 2023. “A regulação Do Acesso Aos Recursos Genéticos Marinhos E a Repartição De Benefícios: O Modelo Brasileiro Como inspiração Para O Tratado BBNJ”. Meridiano 47 — Journal of Global Studies, Volume 23. https://doi.org/10.20889/M47e23004.

Submetido em 04/06/2021

Aceito em 20/11/2021

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