A violência de gênero e a resistência das mulheres na luta nacional pela Palestina

Anna Carletti & Ayat Yaser Said Abdallah

Meridiano 47
Meridiano 47
31 min readMay 30, 2023

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https://doi.org/10.20889/M47e23009

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Resumo

Nesse artigo, objetiva-se analisar pela lente de gênero de que forma as mulheres participam na luta pelo fim da ocupação do território palestino. Por meio dessa análise, aplicada ao caso do conflito Israel-Palestina, será possível perceber que as mulheres palestinas continuam buscando e criando estratégias apesar de obter recursos mínimos disponíveis, indo além da esfera privada para a organização coletiva.

Abstract

In this article, the aim is to analyze through the lens of gender how women participate in the struggle to end the occupation of the Palestinian territory. Through this analysis, applied to the case of the Israel-Palestine conflict, it will be possible to perceive that Palestinian women continue to seek and create strategies despite obtaining minimal resources available, going beyond the private sphere to collective organization.

Palavras-chave: Mulheres; Israel; Palestina; Gênero; Conflito.

Keywords: Women; Israel; Palestine; Gender; Conflict.

Introdução

O conflito entre Israel e Palestina foi o primeiro embate pós-Segunda Guerra Mundial. Iniciado em 1948 com a decisão unilateral da criação do Estado de Israel numa região onde a maioria da população era palestina, o conflito israelo-palestino continua até os dias de hoje sem previsão para seu término. Contudo, quando se estudam as causas, a evolução e as consequências dessa guerra que envolve nos seus meandros não apenas os dois países, mas também seus aliados regionais e extrarregionais, quase nunca se menciona o papel das mulheres nesse conflito. No famoso livro de Svetlana Aleksiévitch, “A guerra não tem rosto de mulher”, a escritora traz à tona nas primeiras páginas uma questão de fundamental importância.

Já aconteceram milhares de guerras — pequenas e grandes, famosas e desconhecidas. E o que se escreveu sobre elas é ainda mais numeroso. Mas… Foi escrito por homens e sobre homens, isso ficou claro na hora. Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra. Das palavras “masculinas”. Já as mulheres estão caladas. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 12)

O livro faz referência à participação das mulheres na Segunda Guerra Mundial, no entanto, podemos afirmar que na maioria dos conflitos a voz das mulheres foi silenciada e um dos motivos é que a história até o século passado foi prevalentemente escrita por homens cujas narrativas visavam evidenciar seu ponto de vista acerca dos fatos históricos. De acordo com Lerner (2021, p. 28) “o registro gravado e interpretado do passado da espécie humana é apenas um registro parcial, uma vez que se omite o passado de metade dos seres humanos, sendo, portanto, distorcido, além de contar a história apenas do ponto de vista da metade masculina da humanidade”.

Com o surgimento das reivindicações feministas por igualdade de direito no final do século XVIII e início do século XIX, as falas femininas conquistaram espaços para que sua visão de mundo e interpretação da história pudesse se tornar visível.

Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação do século XIX que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento (PERROT, 2005, p. 9)

O conflito entre Israel e Palestina parece não ser uma exceção no que diz respeito à tradição de esquecimento da presença das mulheres tanto como vítimas de violência de gênero quanto como agentes de resistência ao lado dos combatentes homens.

Nesse artigo, objetiva-se analisar pela lente de gênero de que forma as mulheres participam na luta pelo fim da ocupação do território palestino. Para realizar tal objetivo escolheram-se as abordagens feministas de três autoras, a norte-americana Cyntia Enloe, autora do livro de 1989, Banana Beaches and Bases, considerada uma obra emblemática na vertente do feminismo liberal, pois foi uma das primeiras autoras a se perguntar onde estavam as mulheres nos estudos de segurança, evidenciando como a esfera privada onde as mulheres tinham sido relegadas ao longo da história devia ser parte integrante dos estudos de segurança; em seguida foram utilizados conceitos do feminismo pós-colonial da indiana Chandra Talpade Mohanty que coloca em evidencia a peculiaridade das mulheres do Terceiro Mundo na luta contra o sistema patriarcal, defendendo o pensamento de que as mulheres não representam um grupo nem universal nem um grupo monolítico. Por fim, será utilizada a abordagem da teórica feminista de origem palestiniana, Wadi Shahd, autora de pesquisas sobre o feminismo de corpos ocupados; dando especial atenção às mulheres palestinianas na luta pela libertação de seu território. O artigo está estruturado em duas partes. Na primeira será feito um histórico das mulheres dentro da resistência palestina, evidenciando a participação e a contribuição feminina nos diversos acontecimentos que marcaram a história palestina. Na segunda parte, serão analisadas as formas de violência sofridas pelas mulheres palestinas e como seus corpos se tornaram ao mesmo tempo objeto dessa violência e sujeitos de resistência contra a ocupação. Os conceitos das diferentes vertentes de pensamento sobre gênero foram utilizados como ferramenta para compreender as relações de gênero que permeiam o cenário de ocupação. Com efeito, sem esse instrumento teórico tão valioso, corre-se o risco de continuar a imaginar as mulheres como seres dependentes, telespectadoras e vítimas sem voz que habitam o âmbito doméstico de forma confinada. Como retratado por Mohanty (1984), as mulheres são consideradas como colaboradoras e não como bases na vida política e internacional, carregando a categoria de oprimida visando um foco na diferenciação de gênero.

Por meio dessa análise, aplicada ao caso do conflito Israel-Palestina, será possível perceber que as mulheres palestinas continuam buscando e criando estratégias apesar de obter recursos mínimos disponíveis, indo além da esfera privada para a organização coletiva. Como destaca Enloe (2013) através dessas análises podemos identificar que as mulheres podem subestimar as estratégias de poder que buscam influenciar o comportamento feminino.

Nas relações internacionais, o impacto dos estudos de gênero foi muito tardio e ocorreu muito mais tarde que em todas as demais ciências. Foi só a partir da década de 90 que a disciplina passou a lidar com questões de gênero devido ao estupro de mulheres que acabou se tornando uma arma para a limpeza étnica, onde as mulheres se tornaram alvo por serem o que são (NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Dessa forma, a teoria de gênero nos permitirá compreender a história também por meio das hierarquias sociais e das relações.

O ativismo histórico

Ao analisarmos historicamente a participação das mulheres na luta nacional pela Palestina, percebemos que as mulheres palestinas estão presentes na resistência palestina desde meados do século XIX. De acordo com Alsaafin (2014), é possível verificar o papel das mulheres desde o século XIX através da atividade política feminina praticada na cidade de Afula, em 1893, quando as mulheres manifestaram contra a construção de um assentamento judaico.

Desde o princípio, as mulheres palestinas estão na linha de frente não apenas amamentando vítimas de violência, mas agindo em movimentos de resistência popular, sendo essenciais na conversação política. Como sustentado por Muñumer (2016), essas atividades podem ser observadas desde o século XIX, tornando-se mais evidentes na era do Mandato Britânico e evoluindo até os dias de hoje na luta contra a ocupação israelense.

Durante a era do Mandato Britânico (1920–1948), de acordo com Alsaafin (2014), obteve-se um grande estabelecimento de organizações de caridade, um aumento do trabalho social e, principalmente, um aumento da participação das mulheres na política e em manifestações. Conforme Holt (2018), as mulheres protestaram lado a lado com os homens contra o controle britânico, formando organizações de caridade e expressando-se politicamente. Alsaafin (2014), ao mencionar os eventos narrados pelo historiador Subhi Biyadseh em um de seus livros sobre a aldeia Al-Baqa ‘Al Garbiyyeh, evidencia a importância do papel das mulheres diante da prisão dos homens palestino quando do bombardeamento do país pelos ingleses, “the women descending upon the military barracks at night with their children, armed only with rocks, demanding the army’s release of their men, which they succeeded in achieving” (ALSAAFIN, 2014, s/p)

Além disso, outra forma pela qual podemos perceber o ativismo histórico das mulheres palestinas é na implementação e luta pela educação. Devido aos diversos problemas decorrentes durante a era do Mandato Britânico, tornou-se visível a urgência e importância da educação, pois, em relação ao ensino primário e secundário haviam apenas duas escolas públicas para meninas, o que dificultava o acesso ao ensino para as palestinas (MUÑUMER, 2016).

Sendo assim, obteve-se o estabelecimento de colégios privados para meninas e colégios que os próprios palestinos criaram, como exemplo, a escola Birzeit fundada em 1924. Em 1976, transformou-se na Escola Universitária de Birzeit e, atualmente, é uma das universidades de maior referência na Palestina. Fundada por uma mulher palestina, Nabiha Nasser, Birzeit é apenas um exemplo claro do papel da mulher na história palestina pelo âmbito da educação, primordial em nossas vidas e na história de qualquer povo (MUÑUMER, 2016).

Segundo Fleischmann (1995), através da educação novos caminhos foram abertos para as mulheres palestinas atuarem no mercado de trabalho, ganhando destaque na vida política, econômica e cultural. Portanto, muitas mulheres começaram a trabalhar como professoras, outras foram empregadas em cargos governamentais, departamentos de saúde, serviços sociais, telégrafo ou no serviço postal (FLEISCHMANN, 1995).

Diante das oportunidades educacionais que estavam surgindo, muitas mulheres palestinas realizaram projetos para melhorar as condições de vida, criando cursos e treinamentos, como também, oferecendo oportunidades de trabalho através de oficinas de costura (WILKE,1994).

Com as explosões de violência em 1920–21, 1929–30, 1936–39 devido ao aumento do desconforto frente ao sionismo e ao Mandato Britânico, a atividade feminina nas organizações obteve ainda mais impulso. Dessa forma, as diversas tragédias e a violência provocada durante esses anos foram o fermento para que as mulheres se organizassem frente a uma revolta, a greve geral de 1936, que estendeu-se por mais três anos culminando em uma revolta popular (MUÑUMER, 2016).

Graças ao engajamento das mulheres palestinas foram criadas diversas organizaçoes femininas. Dentre elas, pode-se mencionar a Sociedade de Mulheres Árabes Tahdhib Al-Fatat, a Associação de Renascimento das Mulheres e a Casa de Socorro das Mulheres para o Cuidado da Criança e a maternidade de Nablus. Com o estabelecimento dessas organizações, as mulheres passaram a atuar no campo de cuidados infantis e saúde, bem como nos âmbitos econômicos, sociais, culturais e nacionais planejando manifestações e cartas para líderes.

Além das organizações já mencionadas, surgiu a organização de mulheres armadas Zahrat Al-Uqhawan (Flores de Crisântemo). Originalmente estabelecida como organização social em 1933, na cidade de Yaffa, pelas irmãs Moheeba e Arabiya Khursheed, a organização sofreu uma transformação após Moheeba presenciar um atirador de elite do Mandato Britânico acertar um menino palestino na cabeça enquanto este estava deitado nos braços de sua mãe (PETEET,1991).

Após o ocorrido, a organização passou a envolver-se no combate a gangues armadas sionistas atuando até 1948, ano em que Yaffa foi ocupada. A partir do momento em que parte da população palestina da cidade de Yaffa sofreu limpeza étnica, a organização interrompeu suas atividades e Moheeba passou o resto de sua vida vivendo como refugiada na Jordânia (PETEET,1991).

O envolvimento feminino na resistência armada também pode ser percebido de forma direta ou indireta desde o princípio da ocupação na Palestina. De acordo com Sayigh (2000), muitas mulheres tinham grande responsabilidade em sustentar a resistência armada de forma indireta, negociando suas jóias para fornecer alimentos, armas e informações aos combatentes, onde, as camponesas da Galiléia eram famosas por praticar essas atividades. Já as mulheres de Haifa, eram responsáveis por fazer vigílias noturnas para monitorar a entrada ilegal de imigrantes judeus (SAYIGH, 2000).

O ativismo feminino continuou em 1947, quando as mulheres da UAPM reuniram-se em todo o território palestino com o objetivo de preparar um congresso, realizado no dia 17 de julho de 1947 em Jerusalém. Além desse congresso, outras três conferências foram realizadas para tratar da situação de emergência nacional que sofria a Palestina. Com a realização do Congresso idealizado pelas mulheres, as resoluções centraram-se especialmente em duas questões prioritárias, sendo elas: salvar a terra e apoiar o boicote de produtos estrangeiros (FLEISCHMANN, 1996).

No entanto, com a criação do Estado de Israel em 1948, a maioria da população palestina foi forçada a fugir para o exílio, desenraizada e dispersada. Foi nesse contexto que as mulheres passaram a atuar de diferentes maneiras devido a fragmentação das condições básicas de sustentabilidade, expandindo suas estruturas para poder promover auxílio e serviços sociais para famílias carentes (HOLT, 2018).

No contexto da ocupação sionista na Palestina, e o estabelecimento do Estado de Israel, surgiram várias “heroínas palestinas”. Dentre elas: Hayat Balbissi, Jamilah Ahmad Salah, Zibah ‘Atiyyeh, Helwa, Juliet Nayef Zaka, ‘Adalah Fatayri, Yusrah Tuqan e Fatimeh Abu Al-Hamda. Muitas dessas mulheres mencionadas, eram jovens de 19 anos mortas enquanto atuavam no resgate e proteção de feridos, como também, em confronto direto aos sionistas (MUÑUMER, 2016).

Diante disso, como estratégia sionista, “las mujeres se convirtieron en un objetivo táctico de la violencia sionista, en un objetivo calve de la campaña para vaciar a la Palestina histórica de sus habitantes originales, de sus habitantes no judíos” (MUÑUMER, 2016, p. 172).

Foi justamente por meio da participação em organizações e partidos políticos, que foram postas as bases do ativismo político, da reorganização e da consolidação do movimento das mulheres palestinas após a catástrofe de 1948.

Para Khalidi (2010), os métodos, a estrutura e a organização coletiva durante esse período ocorreu em um maior grau de sofisticação política enquanto a população palestina buscava se reerguer. Posteriormente, nos anos 60, com a criação da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) em 1964, reforçou-se a ideia de criar uma estrutura unificada para as mulheres. A reunião, abrigou o maior número de políticos desde 1948 e as representantes das organizações de mulheres da Cisjordânia e Gaza compareceram, onde, dos 422 participantes, 66 eram mulheres. Já nessa primeira sessão, aprovou-se uma resolução pedindo a participação das mulheres palestinas em todos os aspectos do trabalho organizacional em igualdade com os homens, tendo os mesmos direitos e deveres para libertar a Palestina (MUÑUMER, 2016).

A partir disso, foram dados os primeiros passos para criar uma estrutura unificada, que incluiria todas as organizações de mulheres palestinas, onde as mesmas poderiam se organizar, promover o desenvolvimento feminino e apoiar a causa nacional. Em 1965, durante uma reunião realizada no escritório da UAPM, na qual compareceram mulheres de Jerusalém, Nablus, Belém, Al-Bireh, Tulkarem e Jeninfoi criado um comitê preparatório com o objetivo de formar uma federação que pudesse incluir representantes dos grupos de mulheres palestinas no mundo árabe. O comitê delegadas da Jordânia, Síria, Egito, Gaza e Kuwait que escolheram Zulayja Al-Shihabi como presidente e Samirah Abu Ghazaleh como secretária. O congresso realizado em Jerusalém poucos meses depois da criação do comitê, logrou o nascimento de uma federação de mulheres palestinas, a UGPM — União Geral das Mulheres Palestina abrangendo as organizações de mulheres existentes no país. (MUÑUMER, 2016).

O congresso contou com a presença do Departamento de Organizações Populares, responsável por organizações populares afiliadas à OLP. O centro do debate no Congresso de 1965 se deu acerca de organizações sociais e caridade que deveriam estar interessadas nas questões políticas, o que significava participar de forma organizada na luta pela libertação nacional. Assim, a criação da UGMP como órgão representante e unificador das organizações de mulheres proporcionou uma estrutura apropriada para a participação das mulheres na política nacional (MUÑUMER, 2016).

No entanto, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, onde Israel veio a ocupar as regiões da Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental, Colinas de Golã e Sinai, teve como consequência, o fechamento de todos os escritórios e filiais da UGMP nos territórios ocupados. Devido à decorrência de guerra em seus territórios, a maioria das mulheres palestinas publicamente ativas juntou-se aos grupos de resistência palestina. Envolvendo-se em trabalhos políticos, a participação nacional das mulheres continuou, seja na resistência armada, no trabalho social ou no trabalho secreto de organização na Cisjordânia e Faixa de Gaza (ALSAAFIN, 2014).

Como apontado por Muñumer (2016), com a derrota de 1967, a luta armada passou a ser considerada como única alternativa para libertar à Palestina segundo os movimentos de resistência palestina. Assim, após 1967, a UGMP estabeleceu como principal objetivo a mobilização de mulheres para a revolução.

Cabe destacar que, em pouco tempo, a UGMP passou a ser a segunda organização mais popular dentro da estrutura da OLP, ação que fez com que a direção, composição e o desenvolvimento do movimento de mulheres estivessem diretamente ligados ao desenvolvimento do movimento nacional. Dessa forma, as mulheres passaram a atuar não apenas como representantes palestinas, mas como representantes dos setores femininos dos movimentos de resistência palestinarepresentados na OLP, sendo eles: Fatah[1], FPLP[2], FDLP[3], Frente de Libertação Árabe e alguns independentes (MUÑUMER, 2016).

Diversas mulheres palestinas ficaram conhecidas por suas atuações nesse contexto, como por exemplo: Shadia Abu Ghazalah, membro FPLP e exemplo da participação feminina na luta armada; Leila Khaled, também membro da FPLP e ícone da resistência palestina, tornando-se mundialmente conhecida ao sequestrar um avião comercial em 1969 e um jato israelense em 1970 atraindo assim o olhar do mundo sobre a ocupação. (ALSAAFIN, 2014).

Para fim explicativo, torna-se válido destacar que os nomes citados são apenas alguns exemplos de mulheres palestinas ativas, levando-se em conta a quantidade de mulheres que merecem tal prestígio.

Pode-se perceber então, o engajamento feminino de diversas mulheres, jovens em sua maioria, unidas aos homens em uma nova forma de resistência objetivando um bem comum: criar um movimento popular revolucionário de união dos palestinos para libertar os territórios ocupados. Isso caracterizou um novo ponto de virada na vida da população palestina, no qual, uma mudança na forma de liderar abarcou um impacto direto no movimento das mulheres (MUÑUMER, 2016).

Esse engajamento continuou nos anos seguintes, podendo mencionar o período entre 1976 e 1981, como um momento em que o povo palestino vive uma maior popularização do movimento nacional. Naqueles anos, milhares de jovens, mulheres e homens, se juntaram as fileiras da resistência e organizações populares criadas. Entre os anos de 1967 e 1979, mais de 2.000 mulheres e meninas foram presas denotando uma intensificação na perseguição as mulheres pelo ativismo na luta nacional palestina (MUÑUMER, 2016).

Com o estabelecimento da primeira Intifada[4] (1987–1993) inaugurou-se uma resistência popular contra a violência imposta pela ocupação israelense. Pode-se dizer que a primeira Intifada foi a mobilização mais animada do povo palestino em sua luta pela liberdade, empreendendo uma greve geral. Tal ação acarretou um ato simbólico para mobilizar as massas dentro do movimento tático de pressionar Israel a acabar com a ocupação, na qual, parte do movimento grevista greve estava boicotando certos bens israelenses e os comitês femininos ofereciam alternativas caseiras para substituir os produtos israelenses (HOLT, 2018).

Além desses esforços, houve também tentativas de diálogo entre mulheres palestinas e israelenses. Porém, “embora nenhuma resolução tenha surgido desta ou de outras chamadas semelhantes, as iniciativas envolvendo mulheres dos dois lados foram consideradas as mais promissoras” (HOLT, 2018, s/p, tradução nossa).

Tais atividades, terminaram com o início da segunda Intifada em 2000. Após a segunda Intifada, as mulheres passaram a sofrer ainda mais com os níveis crescentes de violência, diminuindo também a segurança dos civis. Desde então, todos os anos as mulheres palestinas sofrem níveis cada vez maiores de discriminação, marginalização e violência, mas ainda exibem força e coragem sendo admiradas globalmente pela militância em busca de uma Palestina livre em todos os sentidos (HOLT, 2018).

A título de informação, mais de 10 mil mulheres palestinas já passaram pela prisão israelense. Como mostra Misleh (2017)

Nos últimos 45 anos, foram 10 mil presas políticas. Em 2011, houve troca de prisioneiros e passaram a nove. A partir de outubro de 2015, com o prenúncio de nova intifada, 106 foram detidas — um incremento de 70% em relação a 2013 — e hoje permanecem nos cárceres israelenses 55 delas, as quais têm se somado às constantes greves de fome contra as más condições a que são submetidas, assim como os 7 mil palestinos detidos ilegalmente pelas forças de ocupação (MISLEH, 2017, s/p).

Em relação as mulheres presas, muitas são detidas menores de idade. Como exemplo, pode-se mencionar Ahed Tamimi, símbolo atual da resistência palestina presa em 2017 quando tinha apenas 16 anos. Condenada à oito meses de prisão, a jovem foi detida por dar um tapa em um soldado israelense que invadiu sua casa (BAEZA, 2018). Após cumprir a pena de oitos meses como prisioneira política, a jovem ativista continua sua luta de resistência denunciando as violências perpetradas contra as mulheres palestinas. Com efeito, além da maioria das mulheres palestinas serem submetidas a tortura psicológica e maus-tratos dentro do cenário do conflito, o mesmo ocorre nas prisões. Sofrendo espancamentos, abuso verbal, assédio sexual e vivendo em condições perigosas, as mulheres são expostas à pressão e degradação devido ao uso de técnicas patriarcais estratégicas dentro da política de ocupação (FLEISCHMANN, 1996).

Em 2019, surgiu o mais recente movimento feminista de mulheres palestinas, o Tal’at, que em árabe significa sair. De acordo com Misleh (2020, s/p),

Suas vozes ecoaram às ruas da Palestina ocupada e na diáspora, em uníssono, desafiando a fragmentação de sua sociedade há 72 anos (desde a Nabka, a catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 1949 mediante limpeza étnica planejada) e inspirando a luta das mulheres em todo o mundo. Sem poderem se encontrar em sua própria terra, diante do apartheid israelense, extrapolaram as fronteiras coloniais, a partir do chamado: “palestina livre, mulheres livres” e “Não há honra no assassinato”.

Tal ação que se tornou internacional, teve como motivação específica a revolta contra o assassinato de uma jovem mulher palestina de 21 anos, Israa Ghrayeb, espancada pelos familiares no mês de agosto de 2019. A família justificou seu ato alegando que Israa estava possuída e que tinha problemas de saúde mental. Conforme Marshood (2020) uma das organizadoras do movimento Tal’at, Israa foi uma das 34 mulheres palestinas mortas em 2019. Já no início de 2020, outras duas mulheres palestinas foram mortas por feminicídio. As lutas do Tal’at que reuniu milhares de mulheres palestinas nas ruas de 12 vilarejos, vilas e cidades da Palestina duas semanas após o assassino de Israa têm como bandeiras o combate ao femínicidio, à violência doméstica, sexismo e exploração assim como a emancipação de cada palestino, incluindo mulheres submetidas a uma dupla opressão, a opressão patriarcal doméstica, e a opressão colonial.

Logo, embora a participação feminina na luta nacional tenha sido percebida como condição necessária, onde as mulheres não deixam de defender sua causa constituindo um núcleo de referência no momento de mobilizar as massas, elas ainda são os alvos principais da colonização. Portanto, expressa-se por meio das mulheres a crença na luta pela independência nacional, como também, na luta pela libertação feminina como condição relativa e sem paradoxo.

As teorias de gênero como ferramenta teórica para o entendimento do papel feminino dentro do conflito

Conforme tratado no tópico anterior, o papel das mulheres dentro do cenário de ocupação é algo que ao ser analisado nos proporciona informações relevantes sobre a atuação feminina. Para tal, esse tópico visa dar continuidade ao que já foi tratado estabelecendo uma análise de gênero para entender o contexto feminino sobre a política étnica no domínio colonial. Inicialmente, podemos perceber que as mulheres palestinas compartilham uma história única e prolongada dentro do cenário conflitual de ocupação, onde os efeitos de violência militar impactam diretamente em suas vidas.

A questão de gênero se faz presente no cenário internacional, porém, não é levada em consideração por governos e delegados que preocupam-se mais com a transformação econômica, política e internacional da guerra. Desse modo, ao estabelecermos uma análise de gênero para entender o efeito colonizador em crises econômicas, revoluções, guerras e pós-guerras percebemos a masculinidade imposta no sistema (MOHANTY,1984).

Como retratado por Mohanty (1984), a masculinidade impregnada no sistema permite-nos perceber o domínio do patriarcado e sua normalidade no sistema. Desde as práticas e os discursos que caracterizam o gênero, a diferença sexual e a subordinação feminina é visível ao fato de que os homens exploram e as mulheres são exploradas.

Assim, como expõe Wadi (2010) em relação ao conflito israelense-palestino: “No discurso israelita, a relação entre os dois lados do conflito é representada de forma metafórica como uma relação de homem/mulher. Palestina é a mulher e Israel é o homem: o colonizador é o patriarca” (WADI, 2010, p.82). Diante dessa breve constatação, podemos perceber que raramente a masculinidade é deixada de lado política e analiticamente dentro do cenário de guerra ou pós-guerra.

Além disso, a invisibilidade feminina pode claramente ser percebida durante os discursos internacionais ao destacarem-se prestígios à combatentes. Levando em conta que a palavra combatente significa para muitas pessoas um tipo de pessoa militarizada (geralmente homens) agindo com armas, cria-se uma maneira de esquecer as mulheres e meninas que a estes se juntaram ou foram sequestradas, violentadas e mortas (ENLOE, 2004).

De acordo com Enloe (2004), delimita-se no sistema a imagem das mulheres como empregadas, cozinheiras, carregadoras e esposas de combatentes homens. Por essa razão, em contextos de guerra é difícil serem levadas a sério realidades de gênero, pois estas são esquecidas.

Diante disso, se faz necessária a análise de gênero em zonas de conflito para denotar que a violência contra as mulheres aumenta nas zonas de guerra e nos pós-guerras e para destacar que as mulheres subestimam as estratégias de poder que buscam influenciar o comportamento feminino, seja por governos, funcionários de Estado, milícias, bancos executivos, durante e após as crises (ENLOE, 2013).

Conforme Mohanty (1984), as mulheres do Terceiro Mundo são caracterizadas em todos os lugares como mulheres totalmente dependentes, sendo um grupo apolítico sem status. No entanto, a luta política contra classe, raça e gênero pode instituir mulheres do Terceiro Mundo como um grupo estratégico dentro do âmbito histórico. Devido à isso, muitas analistas enfocam temas em relação as mulheres do Terceiro Mundo explicitando a militância feminina e o envolvimento político das mulheres na Palestina e na Índia, por exemplo (MOHANTY, 1984).

Ao tratarmos sobre as mulheres na Palestina podemos identificar que as mulheres apresentam um envolvimento dentro dos movimentos de libertação Palestina desde o início de sua criação. As mulheres palestinas, como sustenta Kuttab (2009), diante de um genuíno movimento democrático fizeram emergir em suas estruturas atividades para responder às necessidades da luta nacional e, ao mesmo tempo, promover a consciência das mulheres em torno de questões de gênero.

Como abordado, pode-se perceber de forma notável que as mulheres palestinas estão ativas desde o princípio na luta pela libertação nacional da Palestina. Todavia, podemos identificar também que as mulheres têm sido um dos alvos mais atingidos, sendo vítimas constantes de uma política colonial que ataca as mulheres por considerá-las alvos fáceis.

Esses ataques às mulheres podem ser explicados pelo simples fato de que a resistência coletiva feminina pode contribuir a realinhar um sistema de poder local ou internacional expondo quem tem o poder de sustentar o status quo de gênero. Por isso, atacar principalmente as mulheres é uma manobra dos detentores usada para não perder força frente a uma resistência bem-sucedida das mulheres (ENLOE, 1990).

Sabendo que todo movimento de luta feminina por igualdade de direitos em todos os países causou um alarme político intenso, atacar as mulheres torna-se regra dentro do conflito israelense-palestino. Em convergência à isso, acredita-se ser válido relatar o senso com o qual é designada a violência as mulheres palestinas pelo poder sionista.

Inicialmente, podemos mencionar as t-shirts — camisetas que tem a forma de um T — utilizadas pelos soldados israelenses que denotam a violência às mulheres palestinas estando elas sozinhas, grávidas ou no papel de mães, chorando por seus filhos mortos. Conforme exposto pelo jornal Haaretz (2009):

Dead babies, mothers weeping on their children’s graves, a gun aimed at a child and bombed-out mosques — these are a few examples of the images Israel Defense Forces soldiers design these days to print on shirts they order to mark the end of training, or of field duty. The slogans accompanying the drawings are not exactly anemic either: A T-shirt for infantry snipers bears the inscription “Better use Durex,” next to a picture of a dead Palestinian baby, with his weeping mother and a teddy bear beside him. A sharpshooter’s T-shirt from the Givati Brigade’s Shaked battalion shows a pregnant Palestinian woman with a bull’s-eye superimposed on her belly, with the slogan, in English, “1 shot, 2 kills.” A “graduation” shirt for those who have completed another snipers course depicts a Palestinian baby, who grows into a combative boy and then an armed adult, with the inscription, “No matter how it begins, we’ll put an end to it.” (BLAU, 2009, s/p).

Ainda segundo o jornal Haaretz dentre as t-shirts mais utilizadas e procuradas pelos soldados da unidade de atiradores, encontra-se a da mulher palestina grávida, com véu, no centro do alvo de um atirador com o famoso slogan: “1 tiro, 2 mortos”. Essa atitude, demonstra como a política de gênero molda o cenário conturbado que as mulheres palestinas enfrentam até hoje e resistem em derrubar.

Como salientado por Misleh (2019), em uma análise recente para o dia da mulher:

As mulheres são as que mais sofrem em situações de emergência humanitária, conflitos armados e frente à ocupação da Palestina e limpeza étnica. Mas não se intimidam. Representando quase metade da população total de 3,9 milhões nos territórios palestinos ocupados militarmente em 1967 (1,8 milhão), estão reunidas em diversas organizações, por educação, saúde, trabalho, contra a ocupação e o sexismo. Ali, assim como nos campos de refugiados, em que são milhares, na diáspora ou onde hoje é Israel, desafiam o projeto sionista (MISLEH, 2019, s/p).

A posição de Misleh (2019) reforça quando evidenciado por Jacoby (1996):

Palestinian women have been both active mobilizers and central victims of struggles over citizenship; often their own bodies are central sites upon which cultural and national battles are waged. One of the most substantial effects of feminist consciousness has been the increased politicization of gender inequality and gender-related violence. (JACOBY, 1996, p.2).

Mediante essas constatações, podemos utilizar os corpos femininos como um dos critérios para explicar o porque das mulheres serem a mira do alvo. Segundo Wadi (2010), os corpos das mulheres palestinas tornam-se socialmente, culturalmente e politicamente armas de resistência, como também, armas do inimigo para controlar o povo inteiro. Por conseguinte, o perigo da mulher palestina para Israel é o cordão umbilical que liga a arma ao seu útero, o qual vem a ser o centro do conflito (WADI, 2010).

Frente à alta taxa de natalidade palestina, a maternidade e o crescimento da população palestina passa a ser um perigo para Israel que incentiva e encobre com seu seguro médico todos os métodos de fertilidade para as mulheres israelenses, existindo também, uma lei especial favorável ao recurso da barriga de aluguel. Visto que se encontra um seguro médico especial para a questão da reprodução feminina, em relação aos contraceptivos, o seguro médico israelense não cobre estes métodos e o aborto só é permitindo perante autorização de uma comissão especial (WADI, 2010).

Portanto, as mulheres e sua arma de reprodução tornam-se ameaças e estratégias pois, como conclui Wadi (2010), de ambos os lados se encoraja as mulheres a terem mais filhos. De outra forma, ainda em relação aos corpos femininos, mesmo que os corpos femininos e masculinos sofram, a descodificação social, a tortura e as cicatrizes expõem os corpos femininos a uma posição distinta. Levando em conta que o sistema é regido por prevalecer a honra, “por su parte, las fuerzas de ocupación israelíes no han dudado en utilizar la sexualidad y el honor como arma política. Muchas mujeres han sufrido acoso sexual e intentos sino casos de violación en el trabajo” (MUÑUMER, 2016, p.419).

Diante desses abusos, entende-se que a prática de apropriação sexual dos corpos das mulheres palestinas por parte de uma política abusiva tem por intuito desmantelar a resistência feminina, oprimindo as mulheres de forma tripla como mulheres, trabalhadoras e palestinas. Outrossim, as mulheres também são as que mais sofrem com a privação de condições sanitárias, mesmo que toda população seja atingida com isso.

De acordo com Barghouti e Deibes (1993), ao tratar especificamente das condições sanitárias para as mulheres, o nível de serviços especializados em mulheres é muito baixo, onde somente 27% das clínicas detêm serviços de ginecologia e obstetrícia. A escassez de equipamentos hospitalares como camas e salas de parto sofrem constantes cortes orçamentários que levam ao fechamento desses serviços, como também, dificulta a construção de novos centros hospitalares pelo fato de não haver licença para tal (BARGHOUTI; DEIBES, 1993).

Não obstante isso, com base em dados da Anistia internacional, as mulheres que precisam de tratamento específico contam apenas com o tratamento proveniente de Israel ou de outros países da região. Obter permissão para acessar os serviços de saúde israelenses é algo praticamente impossível pelo fato de as mulheres serem palestinas (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2005).

Outro empecilho imposto às mulheres é a obtenção da permissão para serem tratadas em países vizinhos, sendo este, um risco para as mulheres que não tem o direito ao retorno uma vez que saem do país. Consequentemente, como exemplo dessa inviabilidade humanitária, na Faixa de Gaza, os serviços médicos disponíveis não permitem o diagnóstico e o tratamento adequado as pacientes com câncer de mama. Como consequência dessas ações, a porcentagem de mulheres que sobrevivem ao câncer de mama na Palestina é de apenas 30–40% em comparação com as 70–75% que sobrevivem em Israel (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2005).

Além de tudo, ainda conforme exposto pelo relatório da Anistia Internacional, várias mulheres foram forçadas a dar à luz nos postos de controle, em meio as estradas, onde muitas delas perderam seus bebês pelo fato de que os soldados israelenses impediram suas passagens. Devido a uma série de relatos de mulheres palestinas impedidas de passar pelos postos de controle, seja em trabalho de parto ou para realização de tratamentos denota-se um tratamento cruel, desumano e degradante imposto às mulheres (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2005).

São diversos os modos com o qual realizam-se as práticas de violência às mulheres. Uma outra forma, abordada em uma matéria da Revista Fórum em 2014 é a violência e a situação das mulheres dentro das prisões.

Entre os abusos relatados pelas palestinas em suas denúncias e depoimentos, são recorrentes queixas de negligência aos cuidados básicos de higiene — incluindo o não fornecimento de absorventes menstruais –, interrogatórios de mais de 20 horas em condições exaustivas e humilhantes, ameaças a familiares, agressões com teor sexual, revistas vexatórias em situação degradante e estupros. Muitas das prisioneiras nem mesmo são revistadas por oficiais do sexo feminino, além de relatos de exposição pública (ARRAES, 2014, s/p).

Demostra-se clara a violência imposta aos corpos femininos. Todavia, carrega-se o questionamento relativo aos corpos femininos, sustentando-se os seguintes pressupostos: o colonizador e patriarca consegue silenciar os corpos femininos ou o corpo feminino, sendo alvo do poder, pode ser utilizado pelas mulheres como arma própria de resistência?

Em resposta à isso, detecta-se que as mulheres palestinas tornam seus corpos uma forma de resistência, onde a narrativa ao redor do corpo reverteu-se em um modo de luta. Dentre essas formas de resistir através do corpo, pode-se mencionar os depoimentos das mulheres que tornaram públicos os casos de violações nas prisões fazendo com que outras mulheres também relatassem os abusos sofridos, convertendo a cultura da honra em um objeto de resistência (WADI, 2010).

Outro exemplo do corpo sendo utilizado como forma de resistência feminina a política colonialista é a resistência na utilização do véu pelas palestinas. “O véu foi considerado ainda um símbolo de resistência cultural contra o ocupante e uma forma de confirmação da identidade nacional” (WADI, 2010, p.87). Esse símbolo de resistência, pode ser explicado por meio de diversas maneiras das mulheres em resistir a tirar o véu quando obrigadas pelos soldados israelenses, seja durante revistas nos postos de controle, dentro das prisões ou em locais públicos.

A despeito dessas condições, pode-se enfatizar que a ocupação colonial possui marcas claras de violência de gênero que são desmerecidas internacionalmente mesmo sendo armas centrais dentro do conflito. Como exposto, apesar das mulheres palestinas terem um histórico ativo na luta pela libertação palestina, elas ainda lutam pela libertação como mulher dentro de um regime colonial que carrega vários fardos e aspirações diante de práticas segregacionistas e masculinizadas que objetivam o extermínio de um povo atacando de modo mais severo às mulheres em seus diversos papéis.

Afinal, como consequência disso, encontramos atualmente um movimento de mulheres palestinas que não deve ser desconsiderado. Como assegura Misleh (2019):

As prisões e o sangue das mulheres palestinas explicitam ao mundo que elas não estão alheias às lutas anticoloniais. Não são submissas por natureza, uma massa absolutamente uniforme escondida atrás de véus que lhe são impostos, como geralmente a mídia hegemônica as apresenta — e parte do movimento feminista no “Ocidente” corrobora, ao fundar-se em estereótipos (MISLEH, 2019, s/p).

Considerando isso, ao se impor a ideia de que as mulheres precisam ser salvas de sua própria sociedade e cultura esse discurso acaba servindo como arma para o domínio colonial. Logo:

Contra tal caricatura, na Palestina e no mundo árabe como um todo, insurge-se o chamado “feminismo anticolonial”, que trava a luta contra a opressão machista e a colonização simultaneamente. Considera a emancipação de gênero inseparável da libertação da Palestina. Critica e desconstrói as representações orientalistas, reducionistas e generalistas, e preenche o vácuo de um movimento que desvia o olhar para as relações de poder que são fundantes à opressão de gênero. Parte da desconstrução proposta pelo feminismo anticolonial — que se coaduna com vertentes como os feminismos antirracista e islâmico — é resgatar o protagonismo das mulheres árabes e muçulmanas na História (MISLEH, 2019, s/p).

Conclusões

Por meio desse estudo, buscou-se analisar pelo prisma das teorias de gênero o papel das mulheres palestinas na luta pelo fim da ocupação do território. Julgou-se necessário o enfoque à questões de gênero dentro do conflito, questões essenciais na identificação de rastros e características importantes. Acredita-se que, essas características auxiliam na compreensão da política de gênero dentro do âmbito de dominação colonial e nos mostram manobras e estratégias que as mulheres encontram para resistir. Visto que o poder masculinizado detém os corpos femininos como alvos, ao analisarmos essa questão podemos identificar que as mulheres ao resistirem fazem de seus corpos suas próprias armas e, na maioria das vezes, a única arma possível para lutar. Em razão disso, pode-se destacar que as mulheres palestinas constantemente vivem à luz da opressão colonial, mas mesmo assim, criam estratégias de sobrevivência sem deixar de defender seus ideais.

Desde o século XIX demonstra-se a existência de um ativismo e militância feminina contra a ocupação de territórios palestinos. Gradativamente, na época do Mandato Britânico sobre a Palestina, que facilitou a entrada em peso de sionistas no território palestino, o ativismo feminino foi tornando-se cada vez maior. As mulheres foram responsáveis por estabelecer diversas organizações de caridade, agindo diretamente nos trabalhos sociais e promovendo manifestações. No âmbito da educação, o papel feminino desde a era do Mandato Britânico até os dias de hoje sob ocupação sionista foi e continua sendo essencial para o desenvolvimento educacional palestino. Graças à atuação feminina, houve o estabelecimento de escolas e faculdades que hoje são consideradas instituições de grande importância na Palestina.

Posteriormente, com o aumento das tensões e violência dentro do território palestino, o ativismo feminino durante os anos 30 ganhou nova face. Durante esses anos, as mulheres passaram a ser atrizes centrais na greve geral que culminou em uma revolta popular. Visando um engajamento muito maior, durante esses anos foram estabelecidas também organizações femininas que atuaram nas áreas sociais, culturais, econômicas, políticas e de saúde.

Em contrapartida, com o estabelecimento do Estado de Israel, as mulheres passaram a sofrer os impactos da ocupação. No entanto, o ativismo feminino continuou de forma que fizeram-se surgir novas organizações de cunho social e humanitário para suprir as necessidades da população palestina. Essa ação, perdurou de forma significativa fazendo com que fossem criados hospitais de emergência nas cidades palestinas pelas mulheres. Desde então, as mulheres também foram se integrando a diversos movimentos, participando das manifestações estudantis e, posteriormente, compondo o segundo grupo mais popular dentro da OLP.

Com a Guerra dos Seis Dias, a população palestina foi novamente fragmentada e as mulheres juntaram-se aos movimentos de resistência armada, atuando de forma direta dentro do conflito armado. Entendendo que a única forma de libertar a Palestina seria através do conflito armado, várias mulheres ficaram conhecidas por essa participação e, aliadas aos homens em uma nova forma de resistência, o objetivo das organizações femininas como a UGMP foi estabelecer um movimento popular revolucionário para libertar os territórios palestinos ocupados.

Devido à isso, as mulheres também passaram a ser ainda mais perseguidas pelas forças sionistas que visam bloquear de qualquer modo o ativismo nacional feminino que ganha força a cada ano. Como tática sionista, as mulheres constantemente passaram a ser atacadas, presas e abusadas. Após a Intifada, essas ações foram aumentando a cada vez mais, onde, até hoje a maioria das mulheres presas sofre abusos psicológicos e sexuais denotando-se a violação de gênero como uma das táticas sionistas utilizadas para atacar a população palestina.

Cientes disso, ao estabelecermos uma análise através das contribuições da teoria de gênero identificamos como a violação dos corpos femininos são parte de uma política de gênero que molda o cenário opressor enfrentado pelas palestinas. Visa-se atacar as mulheres pelo perigo que seus corpos representam as forças sionistas, onde o útero das palestinas pode ser considerado como arma central. Sem embargo, os corpos femininos são utilizados como alvos através da apropriação sexual abusiva. Muitas palestinas são forçadas a dar à luz nos postos de controle devido ao impedimento de passar mesmo estando em trabalho de parto. Nas prisões, as mesmas são expostas a condições degradantes, sendo abusadas sexualmente e privadas do fornecimento de cuidados básicos de higiene.

Todavia, apesar dessas ações, as mulheres utilizam seus corpos que são alvos para os sionistas, como arma de resistência e luta. Tornando público os casos de violações sexuais, resistindo em usar o véu mesmo quando obrigadas a tirá-lo, as mulheres acabam criando estratégias que as fazem resistir, sendo figuras centrais no ativismo contra a ocupação. Além disso, através da análise de gênero identificou-se que a imagem imposta as mulheres do Terceiro Mundo como mulheres que não possuem voz ativa na sociedade, precisando ser salvas de sua própria sociedade e cultura, serve como massa de manobra para a promoção da dominação sionista.

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Notes

[1] Sigla para o Movimento nacional pela Libertação da Palestina Harakat Al-Tahrir Al-Watani Al-Filistini fundada por Yasser Arafat em 1959 que via como única forma de libertar a Palestina o vies da luta armada (MUÑUMER, 2016).

[2] Movimento nacional palestino, criado em 1967, cuja a aspiração máxima é a libertação da Palestina e a criação de um Estado independente e democrático em todo o território da

Palestina histórica (MUÑUMER, 2016).

[3] Frente Democrática para a Libertação da Palestina, criada em 1969, — uma fuga da FPLP — sustenta o uso de forças armadas, destacando também a necessidade de transformação social da sociedade árabe em geral e da Palestina em particular, como pré-requisitos para a libertação da Palestina (MUÑUMER, 2016).

[4] Termo que representa o levante popular do povo palestino contra os abusos promovido pelo Estado de Israel (HOLT, 2018).

Sobre os autores

Anna Carletti — Universidade Federal do Pampa, Curso de Relações Internacionais, Santana do Livramento — RS, Brasil (annacarletti@unipampa.edu.br) — https://orcid.org/0000-0002-7998-4457

Ayat Yaser Said Abdallah — Universidade Federal do Pampa, Curso de Relações Internacionais, Santana do Livramento — RS, Brasil (ibtihal-yaser@hotmail.com) — https://orcid.org/0009-0002-5759-982X

Como citar este artigo

Carletti, Anna, e Ayat Yaser Said Abdallah. 2023. “A Violência De Gênero E a Resistência Das Mulheres Na Luta Nacional Pela Palestina”. Meridiano 47 — Journal of Global Studies 23 (maio). https://doi.org/10.20889/M47e23009.

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