O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma análise da persistência do não cumprimento das medidas de reparação
Victor Nascimento
https://doi.org/10.20889/M47e24001
Resumo
Este artigo questiona por que o Brasil persiste em não cumprir as medidas de reparação das sentenças da Corte Interamericana dos casos em que foi condenado? Através de uma revisão de literatura e de um estudo de caso, identificou-se fragilidades domésticas e dos mecanismos de observância do Sistema Interamericano, e concluiu-se que o descumprimento toca em desafios históricos e contemporâneos do país, como violência policial e violações durante o regime militar.
Abstract
This article asks why Brazil persists in not complying with the reparation measures of the Inter-American Court sentences in the cases in which it was convicted? Through a literature review and a case study, domestic weaknesses and compliance mechanisms of the Inter-American System were identified, and it was concluded that non-compliance touches on historical and contemporary challenges of the country, such as police violence and violations during the military regime.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Corte Interamericana; Brasil; Medidas de reparação.
Keywords: Human Rights; Inter-American Court; Brazil; Reparation Measures.
Submetido em 26/08/2022
Aceito em 30/05/2023
Introdução
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é referência na proteção dos direitos humanos nas Américas. O Brasil ratificou em 1992 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que deu origem ao Sistema em 1969. Assim como os outros países do continente que também são membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ratificaram o texto, o Brasil está sujeito ao que está previsto nela e também está sujeito ao regramento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte Interamericana, instâncias responsáveis por fiscalizar a proteção dos direitos humanos no continente, bem como eventuais violações (Piovesan 2013).
Entre 2004 e outubro de 2022, dezenove casos de violação de direitos humanos foram submetidos à Corte contra o Brasil. Até outubro de 2022, seis casos, submetidos entre 2020 e 2022, ainda não haviam sido julgados. De 2004 para cá, o país foi condenado dez vezes. Como será mostrado à frente, as sentenças estipulam medidas de reparação que devem ser cumpridas pelo Estado e, geralmente, envolvem investigações mais apuradas dos fatos, identificação de vítimas e responsáveis, reparações financeiras à vítimas e/ou familiares, elaboração e aplicação de políticas públicas e retratação em mídias de circulação nacional (CIDH 2022a). No entanto, quando se observa o status do cumprimento das medidas de reparação desses dez casos, a maior parte ainda está pendente de cumprimento e parcialmente cumprida.
Nesse sentido, questiona-se por que o Brasil persiste em não cumprir completamente as medidas de reparação estipuladas pelas sentenças proferidas pela Corte Interamericana dos casos em que foi condenado? A hipótese proposta considera que, apesar de o Brasil participar do SIDH, no que tange às sentenças da Corte, o país persiste em não cumprir completamente devido: (i) em âmbito doméstico, às dificuldades de processamento dos casos, como a identificação de vítimas e responsáveis e; (ii) em âmbito internacional, aos fracos mecanismos de observância do SIDH, mesmo com países que aceitaram a competência contenciosa da Corte, como o Brasil.
A metodologia deste artigo envolve revisão de literatura; pesquisa em sites oficiais do SIDH, do sistema judiciário brasileiro e do governo brasileiro; e um estudo de caso que irá envolver uma análise documental das sentenças e dos relatórios de atualização de cumprimento emitidos pelo SIDH. O estudo de caso conduzido nessa pesquisa optou por uma unidade de análise de múltiplos casos, ou seja, um estudo de caso coletivo estudados conjuntamente (Maffezzolli e Boehs 2008; Creswell 2013).
A importância das normas e dos tratados para a construção dos regimes internacionais
Regimes internacionais são “instituições sociais que consistem em acordos em princípios, normas, regras e procedimentos que governam as interações dos atores em determinadas áreas”[1] (Levy et al. 1995, 6, tradução nossa). Ao aderir a um regime, o Estado aceita certos valores determinados por esse regime e se submete aos seus mecanismos, o que pode impactar seu comportamento em âmbito internacional e doméstico. O regime internacional de direitos humanos, ou, como defendem muitos autores, os regimes internacionais de direitos humanos, são estabelecidos por uma série de instrumentos do Direito Internacional, como cartas, tratados e protocolos, que prescrevem normas, regras e comportamentos relativos à essa área. Muñoz (2017) defende a existência de ao menos quatro regimes: o universal, regido pela Organização das Nações Unidas (ONU); o interamericano, regido pela OEA; o europeu, regido pelo Conselho da Europa; e o africano, regido pela União Africana (UA).
Nos regimes, valores como normas e regras são fundamentais para a sua dinâmica interna, mas também na sua relação com a esfera doméstica dos Estados. Segundo os racionalistas, os atores vão aderir a uma norma, mesmo que não se beneficiem dela, por haver incentivos e ou custos, materiais ou não, como sanções, pressão social, reputação ou coerção. Já de acordo com os construtivistas, o comportamento dos atores, no sentido da adesão das normas, se dá porque elas influenciam na formação e na mudança das preferências e identidades dos atores (Muller 2013).
Friedrich Kratochwil (1989, 10, tradução nossa) entende que normas e regras são “dispositivos de orientação que são concebidos para simplificar as escolhas e conferir ‘racionalidade’ às situações, ao delinear os fatores que um tomador de decisão deve levar em consideração”[2]. De acordo com Wunderlich (2013), a dinâmica das normas se dá a partir do estabelecimento de uma nova norma, e depois seu desenvolvimento posterior. Esse desenvolvimento pode ocorrer em cinco direções: (i) a norma pode se tornar obsoleta, levando a sua abolição; (ii) ela pode ser substituída por uma nova norma; (iii) ela pode ser reformulada ou adaptada para atender a demandas diferentes; (iv) pode ser modificada para ganhar mais coerência e clareza; (v) ou pode apenas ser mantida como está.
Como as normas internacionais fazem parte de um conjunto amplo de normas nacionais altamente variadas, com as quais se encaixam mais ou menos bem, sempre haverá tensões e diferenças entre interpretações nacionais sobre quais as implicações de uma norma internacionalmente acordada. A tensão pode reverberar de volta para o nível internacional e perpetrar uma disputa sobre o significado da norma, considerando sua aplicação em casos gerais ou particulares. Com o tempo, isso pode levar a uma mudança do sentido compartilhado daquela norma (Muller 2013). Ou seja, a dinâmica doméstica tem um papel importante sobre a força de uma norma internacional, bem como sobre seu desenvolvimento.
Os atores vão se adaptando às normas em resposta a pressões externas, inicialmente por razões instrumentais. Os governos nacionais podem mudar gradualmente suas retóricas e aceitar a validade daquela norma de direito internacional. Quanto mais eles se engajam em um diálogo sobre a implementação das normas, mais propensos eles se tornam a incorporá-las nos procedimentos tradicionais de suas instituições domésticas. Nesse caso, o processo de internalização ocorre porque entende-se que é o “normal” a ser feito, não importando se os atores estão ou não convencidos da validade moral daquela norma (Risse e Sikkink 1999).
Os tratados internacionais, principal fonte de obrigação do Direito Internacional, só criam compromissos vinculantes para os Estados que neles consentiram e para isso, é fundamental que tenham sido fruto de um consenso, ou seja, tratados só podem criar obrigações legais conquanto os Estados soberanos que os aceitaram também se comprometam a respeitá-los (Piovesan 2013). Em se tratando do direito internacional nessa questão, um princípio básico é o do pacta sunt servanda, que significa que os Estados devem cumprir suas obrigações internacionais de boa-fé, não podendo deixar de cumprir sentenças ou um tratado internacional, por motivos de ordem interna. Isso está previsto, inclusive, na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Convenção… 1969).
Embora o Estado se comprometa juridicamente no âmbito internacional ao ratificar um tratado, persiste o livre exercício de sua soberania, logo, conta-se com o princípio da boa-fé para que o compromisso acordado seja cumprido. Caso um Estado possua reservas em relação à alguma cláusula do tratado, é prevista a possibilidade de que se faça uma declaração unilateral, seja na assinatura ou ratificação, para que se modifique ou exclua o efeito jurídico de uma determinada previsão, quando ela for aplicada naquele Estado (Piovesan 2013).
A assinatura não implica em efeitos jurídicos vinculantes ao Estado em questão, mas antes, significa que ele está de acordo com o seu conteúdo final e que aquele tratado é definitivo e autêntico. Via de regra, depois que o Poder Executivo do país assina o tratado, ele deve ser apreciado e aprovado pelo Poder Legislativo, e só depois ratificado pelo Executivo. Ratificação significa que o Estado está obrigado àquele tratado no plano internacional e no plano doméstico. Nesse sentido, a violação de um tratado significa uma violação de compromissos assumidos internacionalmente e implica, portanto, em responsabilização (Piovesan 2013).
Considerando os desafios mencionados da articulação e aplicação das normas, no caso do regime de direitos humanos, prevê-se um conjunto de mecanismos de observância. Observância se diferencia de eficácia na medida em que a primeira diz respeito “à implementação de decisões — decisões, recomendações — proferidas por instituições de direitos humanos internacionais, como Corte ou Comissão Interamericana de Direitos Humanos” (Engstrom 2017, 1255), enquanto a segunda versa sobre a “capacidade da atuação das instituições de direitos humanos internacionais de aumentarem o nível das condições de direitos humanos e diminuir a possibilidade de repetição de abusos, oferecendo, dessa forma, um recurso satisfatório às vítimas” (Engstrom 2017, 1255). Desse modo, a observância pode fazer parte do conjunto de elementos necessários para a eficácia do regime, mas não é suficiente. Para os fins desta pesquisa, os aspectos da observância que serão abordados mais à frente se mostram suficientes, uma vez que o objetivo não é verificar a eficácia do regime de direitos humanos, e sim analisar a relação de seus mecanismos com a persistência do descumprimento das sentenças da Corte Interamericana por parte do Estado brasileiro.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o Brasil
O SIDH é um sistema regional criado em 1969 a partir da Convenção Americana, seu instrumento mais importante. Esta Convenção, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, entrou em vigor em 1978 e estabeleceu a CIDH (Piovesan 2013). Somente os Estados-membros da OEA podem aderir à Convenção e, até setembro de 2022, o Pacto contava com 25 adesões (CIDH s/da). A Corte Interamericana é um órgão jurisdicional do sistema regional, composta por sete juízes nacionais dos Estados que fazem parte da OEA. De acordo com o seu Estatuto, possui duas competências: uma de natureza consultiva, que diz respeito à emissão de pareceres em relação à interpretação de disposições da Convenção ou de outros tratados relacionados à direitos humanos nos países do continente americano; e outra de natureza contenciosa, que determina o julgamento de casos e está limitada aos Estados-parte e que tenham reconhecido sua jurisdição nesse sentido (Piovesan 2013; CIDH 1979).
Os casos que são analisados pela Corte só podem ser submetidos pela Comissão e pelos Estados-parte. No entanto, desde 2001, uma revisão das Regras de Procedimento da Corte se destinou a garantir uma representação de vítimas mais efetiva perante a Corte. “Ainda que indivíduos e ONGs não tenham acesso direto à Corte, se a Comissão Interamericana submeter o caso perante a Corte, as vítimas, seus parentes ou representantes podem submeter de forma autônoma seus argumentos, arrazoados e provas perante a Corte” (Piovesan 2013, 353).
A CIDH só pode analisar uma denúncia depois que todos os recursos judiciais internos tenham sido esgotados em decisão de última instância. Caso uma denúncia entre em tramitação, a petição é enviada ao Estado para que apresente informações, e depois a CIDH decide se ela é admissível ou não. Sendo admissível, a Comissão pode tentar promover uma solução amistosa, sem a necessidade do processo litigioso, ou continuar com as análises e decidir se o Estado é, ou não, responsável. Constatando-se a responsabilidade do Estado, a Comissão envia um relatório sobre o mérito, que pode conter recomendações e um prazo estipulado para que sejam cumpridas. A depender da gravidade do caso, a CIDH pode fazer um acompanhamento periódico e, transcorridos três meses após o fim do prazo para o cumprimento das recomendações, caso verifique-se o não cumprimento, a Comissão pode submeter o caso à Corte Interamericana, que irá analisar o caso e emitir uma sentença fundamentada nas provas e no processo (Ministério… s/d).
As medidas de reparação existem para anular, dentro do possível, as consequências dos atos ilícitos cometidos e reestabelecer uma situação ao seu “normal”, ou seja, uma situação em que os atos não tivessem ocorrido. As reparações têm que ser proporcionais aos danos sofridos e a gravidade das situações, e cabe aos Estados definir os mecanismos do direito interno para que isso seja posto em prática. Medidas de reparação na proteção dos direitos humanos podem envolver, em geral, “restituição da situação jurídica infringida; indenização pecuniária; medidas de caráter não pecuniário; investigação dos acontecimentos e sanção dos envolvidos nos fatos; garantias de não repetição; e adequação da normativa interna do Estado” (Machado 2020, 25).
Para a Corte, da violação de uma obrigação pactuada, nasce uma obrigação jurídica nova, a obrigação de reparar. Conforme disposto no texto da Convenção, a Corte entende que reparação é um termo genérico, que engloba as muitas formas com que um Estado-parte pode se posicionar em relação a uma responsabilidade internacional (CIDH s/da). Entretanto, há que se atentar para o fato de que “a Corte entende que a reparação pode ter caráter de medidas de não repetição, porém salienta a impossibilidade da adoção de medidas de caráter sancionatório” (Machado 2020, 25).
Sobre a eficácia do Sistema, considerando que a Corte emite opiniões consultivas e sentenças, observa-se que seus efeitos têm influência sobre os ordenamentos jurídicos dos Estados-parte, mas também de Estados terceiros. É fundamental que juízes nacionais se atentem para as interpretações e decisões da Corte em relação aos tratados de direitos humanos que vigoram no continente (Mazzuoli 2019). Em relação às sentenças da Corte, Portela (2019) esclarece que elas dispensam homologação por parte do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Brasil, uma vez que a Corte é um tribunal internacional, e não uma corte estrangeira.
Mazzuoli (2011) destaca que o Sistema não possui um arranjo eficaz de execução de sentenças da Corte dentro do ordenamento jurídico interno dos Estados que foram condenados, ainda que a Convenção determine o cumprimento, e preveja que casos de descumprimento sejam levados à Assembleia Geral da OEA. O autor esclarece que o desafio em relação ao cumprimento integral das obrigações perante a Corte não está na parte indenizatória, e sim na dificuldade da investigação e punição dos responsáveis pelas violações. Caso o não cumprimento persista, no caso do Brasil, o Ministério Público Federal pode deflagrar ação judicial para avançar em tal questão.
A eficácia de uma sentença da Corte irá depender da observância de seu cumprimento por parte do Estado, gerando, portanto, efetividade domesticamente (Ribeiro e Netto 2019). Os mecanismos de observância do Sistema Interamericano são aqueles previstos nos mecanismos de supervisão e fiscalização do cumprimento das sentenças. Trata-se da prerrogativa da Corte de poder, periodicamente, realizar audiências, fazer visitas nos países e emitir pareceres e relatórios sobre os status dos cumprimentos das sentenças. Em seu site oficial, há uma aba chamada “Supervisão de Cumprimento de Sentença”[3], onde consta, para cada país e cada sentença de caso condenado, todas as medidas que já foram cumpridas ou estão pendentes, a relação dos prazos em aberto ou encerrados, e quais as especificidades que faltam para que sejam realizadas (CIDH 2022b).
Em sua pesquisa sobre a efetividade das decisões proferidas pela Corte em relação à conduta dos países, Franco (2014) afirma que a implementação no âmbito doméstico das sentenças é, comumente, o principal foco da análise de estudiosos, mas outros elementos mais abrangentes devem ser considerados, como o efeito que as decisões produzem nos demais Estados, em seus direitos internos e suas jurisprudências, bem como em outros sistemas regionais de proteção de direitos humanos.
Embora a Convenção seja de 1969, o Brasil só a ratificou em 7 de setembro de 1992, após o encerramento dos governos militares e do início do processo de redemocratização, que veio acompanhado da Constituição Federal de 1988 e de esforços do país para melhorar sua relação com a proteção dos direitos humanos. Foi na década de 1980 que o país também aderiu a uma série de tratados nessa área, como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção sobre os Direitos da Crianças (Gervasoni e Gervasoni 2020).
No ato da ratificação da Convenção por parte do Brasil há uma ressalva: a não inclusão do direito automático de investigações e visitas in loco[4] por parte da Comissão, que só acontecerão mediante a anuência expressa do Estado brasileiro. Já em relação à Corte, em 10 de dezembro de 1998, o país emitiu uma Declaração aceitando sua competência obrigatória, mas foi em 8 de novembro de 2002 que o Decreto Nº 4.463 promulgou a Declaração de reconhecimento dessa competência (Brasil 2002). Consta na Declaração que o país “reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos” (CIDH s/da, s/p).
Em relação à quantidade de casos já tramitados na Corte, ou seja, aqueles que foram enviados para ela após processo não solucionado na Comissão, o Brasil divide com o Chile a 6ª posição, cada país com 19 casos. Nas primeiras posições estão Peru (56 casos), Equador (38 casos), Guatemala e Argentina (36 casos, cada), Colômbia (31 casos) e Venezuela (30 casos). Destaca-se que o primeiro caso foi submetido em 1986 contra Honduras, e o caso mais recente foi apresentado em julho de 2022 contra a Venezuela (CIDH 2022a).
Como argumentam especialistas em direito internacional, a maneira mais eficaz de garantir o cumprimento das decisões da Corte é adequar o ordenamento jurídico interno do país (Ribeiro e Netto 2019). No caso do Brasil, mesmo antes de aceitar a competência contenciosa da Corte, na esteira da redemocratização, a Constituição Federal elevou a dignidade da pessoa humana ao status de valor central da ordem jurídica brasileira, devendo, assim, guiar as atividades estatais e jurisdicionais. Ou seja, desde então, os juízes passaram a interpretar normas jurídicas, como as normas processuais civis, sempre atentando para o princípio da dignidade da pessoa humana, visando garantir aos indivíduos máxima proteção (Resende 2013).
No caso brasileiro, há que se considerar também que,
caso o Brasil não cumpra integral e voluntariamente a sentença da Corte, é possível a propositura de ação de execução, com o fim de garantir o adimplemento forçado da sentença, uma vez que, repita-se, ela é título executivo judicial[5]. Nesses casos, a execução de sentenças da Corte, para efetivar prestações de fazer ou de não fazer dar-se-á segundo o rito estabelecido no art. 461 do Código de Processo Civil; para garantir a entrega de coisa, seguirá o disposto no art. 461-A; e em se tratando de prestação pecuniária[6], a execução o rito da execução contra a Fazenda Pública (Resende 2013, 235).
Ou seja, a Convenção, que é ato normativo vigente no ordenamento jurídico do Brasil, atribui eficácia executiva à parte pecuniária das sentenças proferidas pela Corte, e isso está respaldado também com o que está previsto no Código de Processo Civil. No entanto, a parte extra pecuniária também pode ser executada pelo Poder Judiciário Brasileiro, já que o país aderiu à competência contenciosa da Corte por meio de um Decreto Legislativo, e as sentenças em questão são voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos (Resende 2013).
Em seu informe mais recente sobre o país, que é referente ao ano de 2021, a Comissão destaca três grandes problemas: (1) tem havido o enfraquecimento de instituições e espaços de participação social em relação à políticas públicas relacionadas aos povos indígenas, afrodescendentes, à questões socioambientais, de saúde e de proteção social dos trabalhadores; (2) as estatísticas de 2021 mostram que 78,9% das vítimas de letalidade policial são afrodescendentes; e (3) os povos indígenas Munduruku, Guajajara, Yanomami, Ye’kwana e Awá têm sido afetados por invasões e violências em suas terras, e há projetos normativos em curso que representam um retrocesso nos direitos dos povos indígenas brasileiros (CIDH 2021).
Apesar destes problemas, em 10 de janeiro de 2022, o Estado brasileiro promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, formalizando a ratificação do documento que havia sido assinado em 5 de junho de 2013 e depositado junto à OEA em 28 de maio de 2021 (CIDH 2021; Brasil 2022). Outra iniciativa que passou a funcionar em 12 de janeiro de 2021 foi a Unidade de Monitoramento e Fiscalização de Decisões e Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF/CNJ), que é supervisionada pelo Conselho Nacional de Justiça, instituição atrelada ao Poder Judiciário brasileiro. Ressalta-se que, embora tenha passado a funcionar recentemente, a UMF funciona no âmbito do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), que por sua vez foi criado em 2 de dezembro de 2009, na esteira da promulgação da Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CNJ s/d; Brasil 2002; Brasil 2009).
Identificação da persistência do não cumprimento das sentenças pelo Estado brasileiro
A pesquisa documental das sentenças das dez condenações do Estado brasileiro seguiu os seguintes critérios: (i) identificação dos casos e das datas em que ocorreram, em que foram submetidos à Corte e em que as decisões foram proferidas; (ii) mapeamento dos status das medidas de reparação e; (iii) leitura focada na identificação de padrões e exceções entre as medidas. Esta seção analisa cada um dos casos levando em conta esses critérios, os contextualiza em relação à dinâmicas da política brasileira identificadas como relevantes, e os articula em relação à discussão teórica feita na primeira seção do texto, com o objetivo de responder a pergunta-problema e verificar a hipótese proposta.
O Quadro 1 apresenta uma lista com os casos em que o Brasil foi condenado na Corte e as datas de ocorrência, submissão e proferimento das sentenças. Como é possível observar, há dois casos que datam do período do Regime Militar, dois ocorridos a partir dos anos 2000, e os demais são da década de 1990.
Quadro 1 — Casos em que o Brasil foi condenado na Corte Interamericana
O Gráfico 1 apresenta o status recente do cumprimento das medidas de reparação de cada um dos casos. O eixo vertical apresenta os nomes dos casos, e o eixo horizontal a quantidade de medidas, de acordo com as quatro possibilidades. Tendo em vista que o Brasil foi condenado em dez casos, identificou-se um total de 73 medidas de reparação, sendo que uma foi descumprida, 18 foram cumpridas, 47 seguem pendentes de cumprimento e sete foram parcialmente cumpridas.
Gráfico 1 — Status do cumprimento das medidas de reparação das condenações do Estado brasileiro
Damião Ximenes Lopes vs. Brasil foi a primeira condenação do Brasil na Corte. Nesse caso, das quatro medidas de reparação que já foram cumpridas, três estipulavam indenizações em dinheiro aos parentes da vítima e uma previa a publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. Segue pendente de cumprimento o desenvolvimento de uma política pública vinculada à área da saúde mental. O Brasil descumpriu a determinação de investigar e sancionar os responsáveis, em prazo razoável (CIDH s/d; CNJ s/d).
Posteriormente, em 2009, a justiça estadual do Ceará condenou os seis responsáveis pelo crime a penas de seis anos de reclusão. Consta nos documentos de supervisão de sentença, que, também em 2009, ocorreram reuniões entre o Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Advocacia Geral da União (AGU), o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) para tratar do tema. Além disso, embora o país tenha continuado a obrigação de desenvolver políticas públicas na área da saúde mental, o problema reside na falta de envio das informações nos moldes exigidos pela Corte, para que se verifique se as medidas estão sendo cumpridas e atendendo à padrões internacionais (Corte… 2010b).
No caso Escher vs. Brasil, o Estado cumpriu as quatro medidas de reparação: duas de indenização, uma de investigação dos fatos e uma de publicação da parte resolutiva da sentença no Diário Oficial e em jornais de ampla circulação (CIDH s/d; CNJ s/d). Como será mostrado, diferentemente da maior parte dos casos em que o Brasil foi condenado, este não envolve crimes que ocasionaram mortes ou algum tipo de violência física, e sim uma instalação ilegal de grampos telefônicos e sua divulgação por parte da Polícia Militar do Paraná (Corte… 2009). Ainda que tenha sido levado à Corte, devido à negligência do Estado brasileiro em investigar e punir o caso nas vias domésticas, o cumprimento das medidas pode estar relacionado ao fato de ser um caso relativamente mais simples e que, após a condução da investigação, foi possível a identificação completa das vítimas e a realização da indenização.
No caso Garibaldi vs. Brasil, das quatro medidas de reparação previstas na sentença, o país cumpriu duas que determinavam a indenização de familiares da vítima e uma de publicar a parte resolutiva da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. Persiste parcialmente cumprida a condução de identificação, julgamento e eventual sanção dos autores da morte do senhor Garibaldi (CIDH s/d; CNJ s/d). Mesmo depois do arquivamento do inquérito policial em 2004, por parte do Ministério Público do Estado do Paraná, da condenação da Corte em 2009 e de recursos terem sido enviados ao Supremo Tribunal Judicial (STJ) em 2016, o órgão manteve o arquivamento do caso (Brasil 2016).
O caso Guerrilha do Araguaia vs. Brasil data da década de 1970 (1972–1975). Das onze medidas de reparação, duas foram cumpridas: uma que previa a apresentação de solicitações de indenização por parte dos familiares das vítimas, e outra que previa a publicação da sentença pelo Estado brasileiro. Três foram parcialmente cumpridas: a manutenção de iniciativas de buscas de vítimas na região do ocorrido, a realização de convocatórias de familiares de vítimas para que apresentassem provas que permitissem que o Estado as identificasse, e o pagamento de indenizações (CIDH s/d; CNJ s/d). Como se trata de um caso de violação de direitos humanos ocorrido durante o regime militar, não há clareza sobre a quantidade de vítimas envolvidas, o que dificulta a identificação e eventual punição e indenização.
Ainda sobre este caso, persistem seis medidas pendentes de cumprimento: a determinação do paradeiro de todas as vítimas; a investigação penal dos fatos, determinação de responsabilidades e aplicação de sanções; a adoção de medidas de tipificação do delito de desaparecimento forçado de pessoas; o oferecimento de tratamento médico e psicológico para as vítimas; a continuação da implementação de um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos em todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas; e a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação ao caso (CIDH s/d; CNJ s/d). Pode-se dizer que este é um dos casos mais complicados, tendo em vista que ocorreu há quase cinquenta anos e envolve a identificação de vítimas sem que se tenha uma clareza de sua quantidade exata. Ademais, do ponto de vista do cumprimento da sentença, dificilmente o governo brasileiro realizaria um ato público reconhecendo sua responsabilidade, como previsto na sentença, sem que todas as vítimas tenham sido identificadas.
No caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, o Brasil foi condenado pela Corte por ter violado o direito daqueles cidadãos de não serem submetidos à tais violações. Das cinco medidas de reparação, as duas que foram cumpridas dizem respeito ao pagamento de indenização e de publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. A medida que segue parcialmente cumprida diz respeito as indenizações por dano imaterial e reembolso de custos e gastos com o processo. As duas medidas que seguem pendentes de cumprimento tratam da realização de investigações e processos penais para punir os responsáveis e a adoção de medidas necessárias para garantir que não se aplique a prescrição ao delito de escravidão e suas formas análogas, no âmbito do Direito Internacional (CIDH s/d; CNJ s/d).
No caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, das 13 medidas de reparação estipuladas pela Corte, a única cumprida determinava a restituição da quantia gasta no decorrer do caso, ao Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas, da Corte Interamericana. Uma que foi parcialmente cumprida estipulava a publicação dos fatos provados da sentença em veículos nacionais. Já as onze que seguem pendentes de cumprimento tratam, de forma geral, de: permitir a participação das vítimas e dos familiares no processo; garantir que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da violência policial e da letalidade; garantir a investigação, identificação, processo e punição dos responsáveis; implementar políticas públicas voltadas ao atendimento de mulheres vítimas de estupro; indenizações por dano imaterial e reembolso de custos e gastos com o processo; publicação anual de um relatório com dados relativos às mortes ocasionadas por operações da polícia em todos os estados do país; e realização de ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional (CIDH s/d; CNJ s/d).
Note-se que o caso Favela Nova Brasília vs. Brasil toca em um dos três pontos mencionados pela Comissão em seu mais recente Informe sobre a situação dos direitos humanos no Brasil: a alta letalidade policial envolvendo afrodescendentes no país. O desdobramento mais recente do caso, ocorrido em 2017, foi a determinação, por parte da Corte, da reabertura das investigações e da averiguação, por parte da Procuradoria Geral da República (PGR), se era cabível que o incidente fosse federalizado (Corte… 2017). Até o momento não houve mais desdobramentos, mas é possível observar que ao verificar a possibilidade de federalização do caso, a Corte pode estar considerando o panorama que envolve a violência policial no Brasil de um modo geral.
No caso povo indígena Xucuru vs. Brasil, que data de 2003, das quatro medidas de reparação, a única cumprida determinava a publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. Já as três pendentes de cumprimento tratam de: indenizações por dano imaterial e reembolso de custos e gastos com o processo; conclusão do processo de desintrusão do território indígena Xucuru e garantia do domínio pleno de seu povo sobre o território; e garantir o direito à propriedade do povo Xucuru para que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano por parte de agentes do Estado, ou terceiros (CIDH s/d; CNJ s/d). Vale destacar que este caso também toca em um ponto que o Brasil é recorrentemente denunciado e que estava no Informe mais recente da Comissão: a violação dos direitos humanos de povos indígenas.
No caso Herzog vs. Brasil, foram sete as medidas de reparação. A única cumprida tratava do reembolso de custos e gastos com o processo por parte do Estado. Foi parcialmente cumprida a publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. Seguem pendentes de cumprimento: a indenização por danos materiais e imateriais; a restituição da quantia gasta no decorrer do caso, ao Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas, da Corte Interamericana; a adoção de medidas mais idôneas para o reconhecimento da imprescritibilidade de ações de crimes contra a humanidade e internacionais; a retomada da investigação e eventual punição dos responsáveis; e a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional por parte do Estado brasileiro (CIDH s/d; CNJ s/d).
Tal como o caso Guerrilha do Araguaia, que também envolve violações do Estado durante o regime militar ocorridas há quase cinquenta anos, este é um caso com muitos desafios para que se tenha todas as medidas cumpridas. Nele também não se aplica a Lei de Anistia, já que, como visto no caso Guerrilha do Araguaia, isso iria contra a Convenção Americana.
Os dois casos mais recentes, cujas sentenças foram proferidas em 2020 e 2021, respectivamente, seguem com todas as medidas de reparação pendentes de cumprimento. No caso empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus vs. Brasil, a sentença do caso estipulou onze medidas, que envolvem, de modo geral: a continuação do processo penal e da punição, caso pertinente, dos responsáveis; a apresentação de relatórios sobre a tramitação da adoção de políticas públicas relacionadas ao caso; o apoio médico e psicológico gratuito às vítimas; a publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação; e a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional por parte do Estado brasileiro (CIDH s/d; CNJ s/d).
Finalmente, o caso mais recente é o Barbosa de Souza vs. Brasil. Foram oito medidas de reparação, que envolvem, em linhas gerais: a implementação de políticas públicas voltadas para a prevenção de feminicídios e de violência contra a mulher; a restituição da quantia gasta no decorrer do caso, ao Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas, da Corte Interamericana; a publicação dos fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação; e a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional por parte do Estado brasileiro (CIDH s/d; CNJ s/d).
Análise das correlações entre os casos e do comportamento do Estado brasileiro
Considerando os oito primeiros casos, cujo tempo desde o proferimento das sentenças é mais longo, o que se observa é que: em todos eles, com exceção do povo indígena Xucuru vs. Brasil, o Estado brasileiro indenizou ou ressarciu as vítimas e/ou familiares; também em todos os casos, com exceção do Favela Nova Brasília vs. Brasil e do Herzog vs. Brasil, o Estado publicou os fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação e; nos casos em que a realização de atos públicos de reconhecimento de responsabilidade foi determinada, estas ações seguem pendentes. Já as outras medidas, que envolvem, em geral, a devida investigação dos casos e punição dos culpados, e a criação e implementação de políticas públicas, variam caso a caso, mas é nelas que residem os maiores desafios do Estado brasileiro.
Como visto, indenizações e ressarcimentos são a parte pecuniária das sentenças, ou seja, há previsões dentro do ordenamento jurídico interno para que estas medidas sejam cumpridas. Embora a falta de clareza, em alguns casos, sobre a quantidade de vítimas possa parecer um problema, as sentenças emitidas pela Corte já trazem consigo os valores, logo, cabe, de acordo com o que está previsto no ordenamento jurídico interno, à Presidência da República, expedir um decreto determinando as providências, que devem ser cumpridas pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (Ribeiro e Netto 2019). Como visto anteriormente, para a justiça brasileira, a parte pecuniária das sentenças se diferencia da não pecuniária, fazendo com que o pagamento de indenizações seja feito de modo praticamente automático, enquanto as medidas da parte não pecuniária se estendam por mais tempo.
O fato de o Estado brasileiro ter publicado no Diário Oficial, e em outro jornal de ampla circulação, os fatos provados das sentenças, como visto na maior parte dos casos, reflete a aceitação do país da legalidade daquela sentença e, consequentemente do processo que foi conduzido pela Corte e pelas estruturas normativas do SIDH. Quando o Brasil reverbera a sentença domesticamente, ele fortalece a norma que deu origem a esse processo, na linha do que afirmaram Wunderlich (2013) e Muller (2013) sobre a dinâmica das normas. Ademais, este ato reflete diretamente o impacto das sentenças no sistema jurídico brasileiro e no cotidiano da sociedade, que passa a ter conhecimento não só do caso, mas da responsabilidade do Brasil.
Em relação à criação e implementação de políticas públicas relacionadas aos casos, foi possível observar que se trata de um desafio para o Estado brasileiro. Exemplos disso são as políticas públicas pendentes voltadas para a redução da violência policial e, mais recentemente, no caso Barbosa de Souza vs. Brasil, aquelas voltadas para a prevenção de feminicídios e de violência contra a mulher. Um outro exemplo, o caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que é também a primeira condenação do Brasil, pode-se dizer que está de acordo com a perspectiva de Risse e Sikkink (1990), quando as autoras se referem ao processo de adaptação as normas, já que o Estado brasileiro começou a empreender medidas na área mas, até o momento, elas seguem insuficientes ou não atendendo à padrões internacionais estabelecidos pela Corte.
Ademais, como mencionado, alguns casos tocam diretamente nos desafios apresentados pelo Informe da Comissão. Em relação à violência policial, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a quantidade de mortes decorrentes de intervenções policiais no país saltou de 2.212 em 2013 para 6.145 em 2021, sendo que 99,2% das vítimas são do sexo masculino e 84,1% é negro(a). Além disso, o Rio de Janeiro é o 4º estado do país com a maior taxa de mortalidade por intervenções policiais militares e civis (Fórum… 2022b). Ou seja, estes dados vão na contramão do que prevê a sentença do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil — ocorrido na cidade de Rio de Janeiro, cuja decisão é de 2017 e cujas medidas voltadas para políticas públicas relacionadas à atuação policial seguem pendentes de cumprimento.
Em relação à situação do direito ao território dos povos indígenas, objeto do caso Povo Indígena Xucuru, cuja decisão é de 2018, embora 10,6% do território nacional esteja demarcado e homologado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), desde o início do governo de Jair Bolsonaro, em 2019, não houve mais demarcação. Ademais, entre 2019 e setembro de 2022, houve um aumento no número de invasões de terras indígenas, de violência contra comunidades tradicionais e de grilagem (Folha… 2022). Ou seja, também nessa área, além de haver medidas pendentes de cumprimento no caso, no panorama geral, a situação é negativa.
Outra situação que auxilia na compreensão desse quadro é a da violência contra a mulher e o feminicídio, objetos do caso Barbosa de Souza vs. Brasil, cuja decisão é de 2021. Entre 2016 e 2020, o número de feminicídios no Brasil saltou de 929 para 1.354. Já entre 2020 e 2021, houve uma queda de 3,8%. Apesar disso, estes números seguem em patamares altos, ocorrendo principalmente com mulheres entre 18 e 24 anos (Fórum… 2022a), faixa etária que, a propósito, era a da vítima Márcia Barbosa de Souza, que tinha 20 anos quando o crime ocorreu.
Conclusão
O Brasil é membro da Convenção Americana e está sujeito à competência contenciosa da Corte IDH. Entretanto, um olhar para o status do cumprimento das medidas de reparação estipuladas pelas sentenças mostra um país que segue sem cumprir a maior parte delas. A hipótese que orientou essa investigação considerava que, apesar de o Brasil participar do SIDH, no que tange às sentenças da Corte, o país persiste em não cumprir completamente devido à duas dinâmicas.
Acredita-se que a primeira tenha sido confirmada, uma vez que esta é a parte das sentenças que o país tem tido o pior desempenho, considerando que, em casos como o Guerrilha do Araguaia vs. Brasil, que data do regime militar, é difícil prever se o Estado conseguirá identificar o paradeiro de todas as vítimas e, por conseguinte, cumprir as outras medidas de reparação previstas. Além disso, esse caso é um bom exemplo também da persistência do país em não realizar atos públicos de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação ao caso, algo que só costuma ser feito uma vez que tudo esteja solucionado.
De todo modo, também domesticamente, na maior parte dos casos, observou-se que indenizações e ressarcimentos foram feitos, e que o país publicou os fatos provados da sentença no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação. Em relação às indenizações, o que se tem é uma normativa doméstica mais rigorosa que prevê o cumprimento da parte pecuniária das sentenças, e em relação à publicização dos fatos, pode-se dizer que o país o faz em sintonia com o compromisso acordado com a Convenção Americana, com a Corte Interamericana e com o principio da boa-fé que rege o direito internacional, considerando a importância da publicização dos fatos para a sua imagem internacional em relação à área dos direitos humanos.
Já a segunda parte da hipótese não se confirmou, uma vez que, como visto, há clareza sobre os mecanismos de observância adotados pela Corte e, como é possível ver em seu site oficial, há um acompanhamento e uma cobrança recorrentes para que as medidas de reparação sejam cumpridas. Como visto, os casos em que o Brasil foi condenado tocam em fragilidades históricas e contemporâneas do Brasil, como violência policial, trabalho análogo à escravidão, violência do Estado durante o Regime Militar e feminicídio e de violência contra a mulher. Ou seja, a permanência do país no SIDH, a manutenção do diálogo e o processamento as sentenças por parte do ordenamento jurídico interno, se mostram indispensáveis.
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Notas
[1] social institutions consisting of agreed upon principles, norms, rules, procedures and programs that govern the interactions of actors in specific issue-areas.
[2] guidance devices which are designed to simplify choices and impart “rationality” to situations by delineating the factors that a decision-maker has to take into account.
[3] Para mais informações, acessar corteidh.or.ch.
[4] In loco tem origem no latim e significa “no próprio local” ou no “lugar”. Para fins jurídicos, trata-se de uma investigação ou observação no local que estiver em questão (Significado… 2019).
[5] Um título executivo judicial é um documento que estabelece como uma obrigação deve ser cumprida, quem são os credores e devedores, e qual é o objeto da obrigação. Sentenças e decisões são exemplos de títulos executivos judiciais (Veloso et al. 2016).
[6] Uma obrigação pecuniária, em se tratando de uma sentença, diz respeito à obrigação de entregar o dinheiro conforme foi estipulado (Lambert 2018).
Sobre o autor
Victor Nascimento — Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Campus Poços de Caldas, Poços de Caldas — MG, Brasil (victormatosnasc@gmail.com) https://orcid.org/0000-0002-9767-0769
Como citar este artigo
Nascimento, Victor. 2023. “O Brasil E a Corte Interamericana De Direitos Humanos: Uma análise Da Persistência Do não Cumprimento Das Medidas De reparação”. Meridiano 47 — Journal of Global Studies, Volume 24. https://doi.org/10.20889/M47e24001.
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