Combate Múltiplo no DW — Parte 3

Alisson Vitório
Mestre das Antigas
Published in
7 min readJan 31, 2017

Nesta terceira e última parte da série Combate Múltiplo, apresentarei uma abordagem onde inimigos em enxame ou horda passam a ser tratados como parte de um ambiente perigoso.

Lembram da cena clássica do Hobbit?

Os aventureiros percorrem pontes suspensas por cordas deterioradas, golpeando dezenas de goblins que vertem por todos os lados. Provavelmente o grupo estava cercado por milhares deles!

Numa situação dessas percebe-se que os inimigos e desafios naturais são elementos integrantes de um perigo maior, são o amálgama da própria Masmorra!

Dungeon World é um jogo particularmente especial nesse quesito, pois ele traz em sua essência, a filosofia que tudo que acontece na ficção faz parte de um fluxo dinâmico e o jogo oferece ferramentas adequadas para darmos vida à Masmorra.

OBS: Este artigo também pode ser lido na Dungeon World Magazine!

Nos artigos Combate Múltiplo Parte I e Parte II, vimos abordagens para o rótulo Horda, e a criação de um rótulo Enxame, para representar adversários que poderiam, de uma certa forma, confrontados pelos PJs. Entretanto, o que aconteceria se a própria Masmorra fosse encarada como um monstro ou entidade?

Retomemos o exemplo do Enxame de goblins, porém dessa vez não teremos apenas uma dezena ou centena deles, e sim uma população inteira que habita sua toca. A Toca dos Goblins é impiedosa para todos aqueles que ousem invadi-la, possuindo movimentos de monstro próprios, além dos customizados. Nela, é irrisório cortar cabeças goblinóines, pois, como uma verdadeira quimera, sempre nascerão outras mais.

A Toca dos Goblins (Masmorra, Perigosa, Mesquinha)

Uma confusão de túneis, lixo trazido da superfície, cheiro de carne podre e ruídos incessantes que permeiam o ar. Ainda sou atormentado por pesadelos quando lembro que tive que abandonar meus amigos naquele lugar desprezível e infernal.

— O Ladrão Atormentado

Movimentos da Masmorra

  • Soterrar alguém em túneis estreitos;
  • Causar náuseas com odores terríveis;
  • Trucidar e capturar usando o enxame goblin;
  • Provocar quedas em armadilhas naturais;

Além dos movimentos da masmorra, que podem ser utilizados pelo MJ para lançar perigos do cenário na direção dos PJs, existem outros recursos oferecidos pelo DW para lidar com situações específicas.

Nos artigos anteriores, o enxame de goblins foi mensurável e passível de ser vencido (mesmo no exemplo mais heroico, onde o guerreiro enfrentou 100 inimigos), entretanto, nesse post tratamos da masmorra e o enxame como um só. O movimento de aventura a seguir, expressa de modo único aquele momento interessante onde os PJs precisam confrontar o povoado goblin em um ambiente extremamente hostil:

MOVIMENTO DE AVENTURA: O ENXAME GOBLINÓIDE

Quando forçar o caminho, realizar manobras de fuga ou encontrar atalhos inteligentes para passar por um enxame de incontáveis criaturas, role:

…+DES, se você passar através do enxame usando manobras e acrobacias. Com 10+, você chega onde deseja sem impedimentos. Com um 7–9, também chega lá, mas algumas criaturas se agarram ou empilham sobre você, aumentando sua Carga em +2. Com uma falha, elas aumentam sua Carga em +4.

…+FOR, se você abrir o caminho pelo enxame à Força. Com 10+, Escolha 3. Com um 7–9, Escolha 1:

  • Você esmaga quem estiver em seu caminho e um aliado próximo recebe +1 adiante para Escapar de um enxame;
  • Você não recebe dano causado pelo enxame;
  • Você não aumenta sua Carga em +50% do seu limite;
  • Você chega ao seu destino;

…+INT ou +SAB, se você passar pelo enxame utilizando atalhos inteligentes ou perspicazes. Com 10+, seu estratagema dá certo e quem o seguir recebe +1 adiante para Escapar de um enxame. Com 7–9, você chega ao seu destino, mas atrai a atenção do(s) membro mais perigoso(s) do enxame para si.

Note que o movimento retorna para ficção repercussões magníficas, oferecendo aos PJs diversas escolhas difíceis e complicações.

A seguir, o último exemplo de jogo desta série. O que aconteceu com o Ladrão? Boa leitura!

EXEMPLO DE JOGO FINAL (baseado em rolagens reais)

“Onde estaria o ladrão?”…

O pensamento nublado do guerreiro atingiu o larápio como um punhal na boca do estômago, fazendo com que ele despertasse desorientado. Seus olhos estavam se acostumando com a escuridão e ele percebia vozes esganiçadas ao seu redor, presumira pelo odor característico e nauseante, que os goblins o tinham amordaçado, amarrado e agora o levavam por uma espécie de túnel estreito e escorregadio.

O gatuno ainda sentia o gosto acre do veneno entorpecente, mas não conseguia se recordar do momento de sua captura. Ele não era um traidor, não com aqueles que se arriscaram tantas vezes para salvá-lo de encrencas em que se metia, tinha certeza que não tinha abandonado seu grupo em sã consciência.

Nada disso importava agora, pois há alguns segundos, o ladrão tinha certeza que escutara palavras soltas de “jogá esse vermi na vala”, “carne ruim”, compreendidas em um goblinóide tosco — aprendidas em sua curta convivência com um comparsa dessa espécie (O MJ faz um de seus movimentos — Revelar uma verdade indesejada).

“Preciso sair daqui…” — pensou o ladrão enquanto puxava uma adaga oculta em uma de suas botas e cortava os cipós que o envolviam (engatilhando Desafiar o Perigo +DES [resultado 8]). Por sorte, conseguiu se libertar no exato instante em que fora arremessado ladeira abaixo. Ele tinha pouco tempo até atingir chegar ao fim da ribanceira, cheia de estacas cobertas de sangue, tripas e fezes (MJ faz um movimento suave: Usar um movimento de monstro, perigo ou local).

O ladrão tentava reduzir a velocidade de queda, cravando a adaga na lama podre que escorria da encosta (nota do autor: isso poderia ter engatilhado um Desafiar o Perigo +CON, mas o MJ viu que era uma boa oportunidade para ser fã do PJ). Sua visão ainda estava turva pelo veneno que corria em seu sangue, mas era possível enxergar os cordames amarrados às roldanas improvisadas que pendiam do centro do poço. Calculou o momentum e saltou (Engatilhando Desafiar o Perigo +DES [8], de novo…).

“Não dá pra confiar na engenharia goblin”. Tal conclusão passou rapidamente pela cabeça do ladrão — quando a estrutura dos cordames e roldanas começou a ruir após o solavanco provocado pelo salto (Movimento da Masmorra executado pelo MJ: Provocar quedas em armadilhas naturais).

Pelos instantes seguintes que pareceram uma eternidade, o ladino sumiu na escuridão do fosso. Durante a queda livre lembrara do “presentinho” que havia surripiado da mansão do Mago pouco antes de saírem em uma nova empreitada — uma invenção simples, mas que o salvara inúmeras vezes.

Catou os dois ganchos acoplados em cordões elásticos, os quais apelidara carinhosamente de “gatíneos” e os arremessou. Por sorte se prenderam em alguma superfície firme, lançando o larápio como uma bola de canhão (engatilhando Desafiar o Perigo +DES [5]). Enquanto sentia a vertigem do lançamento vertical, se lamentava por deixar seus gatíneos para trás, era uma ferramenta tão útil! (O MJ faz um movimento pesado: Gastar os recursos dos personagens).

O ladrão pousou com suavidade em um parapeito natural da formação rochosa, acima do emaranhado de pontes de cordas, roldanas e elevadores sucateados. Sua visão era ampla, e ele observava as inúmeras tochas que balançavam sob o ronco estrondoso do Rei Goblin.

“Não vejo os outros… Nenhum sinal deles, deve haver alguma saída desse inferno” — pensou o ladrão enquanto perscrutava a caverna. (Engatilhando um Discernir Realidades +SAB [10]: O que aconteceu aqui recentemente?, O que eu deveria procurar por aqui?, O que eu considero útil ou valioso aqui?).

— Isso deveria estar lotado daquelas pestes, os goblins saíram às pressas, pois ainda deixaram a mistura fedida borbulhando — o ladrão pensava alto durante suas maquinações. Devem ter ido atrás do Guerreiro, ou do Mago, se lutaram contra o brutamontes, foi preciso um exército para vencê-lo, e olhe lá…

O ladino puxou uma das plumas de corvo lazúli que adornavam seu capuz, deixando-a ser carregada por alguma eventual brisa. A pluma dançou até ser sugada por um dos milhares de túneis.

— A saída…

O gatuno começou a escalada rumo à liberdade quando notou o brilho encantador de uma coroa enorme cravejada de jóias cintilantes, que pendia do trono do Rei Goblin. Ele não tinha dúvidas, era a coroa de Mephisto, lendária pelo poder que carregava. Deveria valer a fortuna de uma dezena de vidas nesse mundo-cão. A caverna estava vazia, o enorme Rei Goblin dormia em sono profundo, não tinha como dar errado…

Ele reuniu corda suficiente, amarrou firmemente em uma viga e desceu…

(engatilhando um Truques de Ofícios +DES, com um bônus de +1 devido a estar agindo de acordo com suas descobertas do Discernir Realidades, consideremos aqui que ele está “batendo uma carteira”. Ofereça uma oportunidade adequada para uso das habilidades de uma classe!. O resultado da jogada foi um 7.)

O suor escorria do rosto do ladrão quanto mais ele se aproximava da coroa. Segurou-a com cuidado enquanto a erguia do trono coberto por peças de ouro, prata, cobre, ossos e couro de gente e animais. Sua respiração parou ao ver uma única moeda do seu bolso que escorregara, viajando até encontrar uma bandeja de metal. A moeda tintilou e girou, cada ruído ecoando na caverna silenciosa.

O Rei Goblin despertou.

Não dava pra saber como eles chegaram tão rápido, eram incontáveis, um verdadeiro Enxame Goblinóide!

O ladrão fez aquilo em que era melhor, fugir! Os goblins amontoavam-se perseguindo-no enquanto ele girava balançando-se nos cordames em direção ao túnel de saída. Era sua única chance de sair vivo dali… (Engatilhando o Movimento de Aventura: Enxame Goblinóide [4])

Após alcançar o túnel, o ladino escorregou alguns metros. Ele soube o que era o terror quando a onda goblin se aglomerou acima e abaixo, como um pilão (Carga aumentada em +4 devido ao resultado da jogada anterior). Sua garganta soluçava enquanto ele estendia para a saída cada vez mais distante, o ladrão era esguio, talvez se ele conseguisse escorregar por entre as criaturas… (Engatilhando o Movimento de Aventura: Enxame Goblinóide [10]).

— Sim! Consegui! Arf! Arf! Consegui! — Berrava o ladrão enquanto desferia chutes e percorria os túneis cheios de estrume e lama até a superfície.

O larápio saiu da Toca do Rei Goblin como uma cria expulsa das entranhas do demônio, e se arrastou sentindo espasmos provocados pelo medo e cansaço. Se jogou no chão de terra vermelha e craquelada, virou-se olhando para o céu iluminado por um sol causticante, ouviu passos se aproximando, mas sem forças, continuou estático. Reconheceu a silhueta do amigo Guerreiro sobre si.

— Você está uma merda, literalmente. Me dê um motivo para não arrancar sua cabeça agora. — Disse o Guerreiro com o machado em punho.

O ladrão ergueu a Coroa de Mephisto com o braço tremendo.

— Não somente um, mas três desejos meu amigo.

— Isso é o que estou pensando? — O guerreiro parecia impressionado.

— Sim. Seremos reis, deuses, o que você quiser. Até os dois filha da puta mais ricos desse mundo.

FIM.

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