Sebo do alfarrabista João Soares, na Rua das Flores, no Porto

As histórias além da história: por que comprar livros em sebos

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
5 min readMar 14, 2017

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A poesia começa na localização: Rua das Flores. A cidade é o Porto, em Portugal, choveu água fina pela manhã e na segunda metade do dia há sol. A porta é vermelha. Entro e o dono, João Soares, conversa com alguém ao fundo, no balcão.

— Olá, fique à vontade — ele me diz.

— Já estou — respondo.

Percorro as prateleiras não muito arrumadas e dou de cara com uma edição de Os lusíadas, de Camões. Enfio ela debaixo do braço. O cheiro da pequena sala é bom, é cheiro de livro, cheiro de histórias. Muitas, várias. Tem edições em inglês também. Alguns folhetos antigos que remetem à história do Porto. A vontade é sentar lá, ao chão, do lado de uma pilha de publicações de páginas amareladas e folhear cada uma delas.

Mas sigo em pé. Escolho uma edição de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente. Gosto de ter autores dos países visitados, é o melhor souvenir. Pego ainda um livro chamado Manual de história da literatura portuguesa. É a minha língua, quero aprender mais.

No balcão ele segura as três obras.

— Foram escolha aleatória ou o dedinho é bom?

— O dedo é bom — respondo, sorrindo.

Ele diz que eu devo entender de literatura. Falo que entendo um pouco, que sou jornalista, brasileira, e que gosto de levar livros como lembrança de viagens.

— É sempre uma história a mais que carrego comigo — comento.

Ele diz que sabia que eu era brasileira — o sotaque denuncia, é claro. Fala que já esteve na Bahia, no carnaval, a melhor época.

— Aquilo é uma loucura.

Concordo e explico de onde sou, que aqui no sul não há tanta celebração como em outras partes do país. Ele diz que era bancário e que sempre amou livros. Se aposentou e abriu o sebo. Em Portugal não chamam de sebo, é um nome que só usamos nós, os brasileiros. Lá dizem livraria e o dono, alfarrabista.

Pergunto quantos livros ele tem e ele não sabe precisar. Começa a contar de guerras na África em que esteve, entra outro cliente pedindo um livro raro. O seu João não tem e diz que se tivesse, não o vendia. Era algo que havia sido queimado durante a ditadura em seu país.

Ele diz que posso voltar quando quiser, que está contente que os livros vão comigo ao Brasil.

— Um país muito bonito.

“Ná! Parabéns pela conquista! Muito sucesso, alegrias e realizações… Beijos Juli, 18/02/2005”

“Nazinha, muito sucesso e paz nesta nova etapa… beijinho Joséli, 18/02/2005”

O exemplar é de um dos maiores e melhores poetas da história das poesias bem escritas e bem sentidas: Pablo Neruda, é claro. O título é Cem sonetos de amor. Meu favorito sempre foi o LXIX:

e desde então sou porque tu és,
e desde então és, sou e somos,
e por amor serei, serás, seremos.

Os escritos para a Ná, ou Nazinha, estão na folha de rosto. Custou cinco, sete ou dez reais numa feirinha na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, no ano passado. Comprei e achei curioso, senti pena da Ná, ou Nazinha: por que é que ela não gosta de poesia?

Todas as vezes em que abro o livro penso isso. Depois imagino que ela o vendeu sem querer, que o perdeu, alguém achou e o deu ao sebo, que ela vive a vida procurando o exemplar. Assim tem poesia.

No caminho para o mercado, na calçada, depois da marquise onde vivem os dois mendigos e seus colchões e cobertores, há uma banquinha de livros usados. A cidade é Catânia, na Itália. Passo num dia e procuro por um exemplar de O poderoso chefão. Ele não tem, mas tenta me vender outras obras do Mario Puzzo. Digo a ele que quero Il Padrino. Ele diz para passar lá amanhã.

Volto amanhã e ele tem uma edição de 1972, mesmo ano de lançamento do primeiro filme. São 10 euros, muito bem gastos numa edição antiga, em italiano e bem conservada. Depois um amigo pede para eu tentar um igual. Passo na banca em outro dia e o senhor vendedor, meu fornecedor literário, pede para passar amanhã, que ele vai arranjar mais um.

Passo amanhã e lá está, mas desta vez o exemplar é de 1971, a segunda edição em italiano da obra famosa. Custa dois euros a mais. Não reclamo e pago, é justo e barato. Folheio o livro: há um postal dentro. O cartão tem um desenho infantil de dois coelhos, três ovinhos e um pintinho. Também está escrito buona pasqua.

Atrás dele descubro que o remetente mora em Catania. Não entendo o nome ou endereço. Apenas o nome da destinatária: Alessandra. O restante dos escritos são ilegíveis. Acho que Alessandra gostava de usar o postal para marcar as páginas lidas do livro.

Depois de um passeio a uma ilha rodeada pelo mar turquesa do caribe colombiano, retorno a Cartagena numa viagem de uma hora de barco. Somos, eu e minhas amigas, deixadas no porto e de lá vamos a pé para o hostel. O dia é sábado e faz calor, como sempre naquela parte do mundo. No caminho vejo várias bancas de livros usados no Parque Centenario. Entro e escolho todos os exemplares que posso pagar com os trocados que restaram do passeio à ilha: quase 60 mil pesos. Levo seis de García Márquez e um de Vargas Llosa.

Destes, escolhi Cem anos de solidão para me acompanhar na última viagem que fiz. Uma edição em espanhol, de uma gráfica colombiana. Já havia lido a obra em português e agora iria me aventurar no idioma original. Para quem não sabe, a história que ele carrega é o grande marco do realismo mágico, estilo literário onde a verdade é absurdamente fantástica, e a fantasia também tem suas parcelas verdadeiras. Fico curiosa para ver escrita a última frase, uma das minhas preferidas e eis que não a encontro: falta no meu livro a última página. Só poderia acontecer na Colômbia.

Se você não gosta de livros usados apenas por serem usados, dê uma chance a eles. Há ali mais histórias do que você pode imaginar. Cada amarelo na borda ou página faltando é uma aventura ainda maior ❤.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)