Hoje o bolo de cenoura ganhou da minha escrita

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
4 min readOct 12, 2020

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Eu já não escrevo mais como escrevia. “Eu já não faço mais as coisas que fiz um dia.” Esta última é frase de uma música do cantor punk rock gaúcho Wander Wildner. Um clássico, aliás. A canção de duas estrofes repetidas chama-se Eu não bebo mais como eu bebia — claramente parodiada ao começo deste parágrafo e fala breve e profundamente sobre as coisas que a gente, de repente, deixa de ser.

Tenho aberta esta página de texto e tem duas horas que tento achar palavras para enchê-la. Talvez mais, não sei. Parei um pouco para preparar e assar um bolo de cenoura. Eu sou ruim na cozinha. Outro dia, queimei uma cuca a ponto de tacar fumaça na sala e cozinha inteiras e ainda disparar o alarme de incêndio. Um desastre. Aliás, minha carreira culinária acumula arroz grudado ao fundo da panela, falta ou excesso de sal e outras pequenas tragédias que acabam como piada. Não por menos, eu brincava sempre que meu talento mesmo era a escrita. Mas isso, já não posso mais dizer.

É talvez a pandemia, estar a viver em terras estrangeiras há quase dois anos ou as três décadas de vida que completei tem nem quatro meses. Também pode ser o fato de trabalhar diariamente com coisas outras que não envolvam a criação textual. Ou, ainda, o encerrar de um ciclo, vai lá saber. Fato é que, escrever, tem algum tempo, já não faz para mim o mesmo sentido que fazia. O que é verdadeiramente muito estranho, porque eu posso fazer muitas coisas nesta vida, mas a única que me sai — ou saía — bem de fato, era mexer com palavras.

Reviro textos antigos, à procura de inspiração. Não encontro, mas reafirmo a certeza de que sou boa nisso. Tem uns sobre García Márquez, Pessoa, minha viagem a Medellín. Gosto do que leio. Terminei agora uma xícara de chá de hortelã que para nada serviu. Resolvo abrir uma lata de gin e tônica, lembro de Hemingway a dizer para escrever bêbado, editar sóbrio. Precisaria mais do que uma lata para estar bêbada, mas só se pode jogar com as cartas que se tem.

Por falar em jogo, outro dia fui ao cassino, que há coisas que precisam de ser feitas ao menos uma vez durante esta existência terrena. Ganhei na roleta, numa aposta de valor mínimo, em que acertei o número exato. Nunca tive sorte em sorteio que fosse de apontador na pré-escola, imagine a minha surpresa ao sair de lá com mais dinheiro do que aquele que tinha quando havia entrado.

Sorte. Ou aquilo que tinha de ser, tão somente. Como a vida é. Sincrônica, tudo tem uma razão, por pior e melhor que seja. Como eu ter me mudado para Londres sem emprego, casa e com pouco dinheiro, e já na segunda semana ter sido encontrada por um trabalho em um concurso de miss. Encontrada, sim, porque eu procurava um emprego qualquer, não algo tão excêntrico. O que foi mesmo uma aventura, que é como eu gosto que seja a minha vida.

Escuto agora Wander dizer, na mesma música repetida, que não é porque ele já não faz as mesmas coisas que fazia que ele esquece o que viveu. E, bem, aí está: há percursos de mão única, para os quais não se tem como voltar, nem se deve. Outros, sim e sempre. Difícil é saber a direção. Mistério, ainda bem.

Releio o que há aqui até agora. Penso que estou sendo dramática e também divagadora de assuntos não muito relevantes. Mas dramático demais seria dizer que eu já não deva escrever, pois estou certa de que, em algum momento, todo o ser escritor, por ofício ou paixão, partilhou de minha agrura. Ainda sei fazer o que fazia, ou já é hora de parar? Faz sentido alguma coisa? Não tenho resposta, nem sei se a quero encontrar. Fico, hoje, apenas a divagar.

Provo agora o bolo de cenoura, eita, ficou bom. Milagre, ou talvez o que tinha de ser. Como este texto, não tão doce ou saboroso quanto o meu lanche, mas igualmente necessário. Minto, é mais urgente: há coisas que só se curam com a escrita, ainda que o mal venha da escrita (ou falta dela) em si. Ou: é preciso dar palavra ao que incomoda, para livrar-se. Adeus, já vai tarde, crise de inspiração ou de idade ou de consciência, seja lá a merda que for. O próximo texto vai estar melhor. O bolo, já não posso garantir.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)