O amor nos tempos do cólera — ou de coronavírus

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
3 min readJun 9, 2020
Memorial com a cinzas de Gabo, Cartagena, Colômbia. Registro feito em 2016.

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.”

(Frase inicial do livro“O amor nos tempos do cólera”, do mestre Gabriel García Márquez)

Em tempos líquidos, onde relações costumam durar menos do que as 24 horas de exposição de um story no Instagram, a palavra amor nem chega a ser mencionada. Talvez apareça no título de um livro, filme, ou no cartão de Dia das Mães. Mas o amor diário, construído com a intimidade, a rotina, o gosto de café quente na manhã de terça-feira e de cerveja gelada no boteco pé-sujo às sextas, este já nem existia nem ninguém lembrava. Ou sequer sentia falta.

O rompimento dos padrões de relacionamento e das obrigatoriedades sociais de um casamento ainda na juventude, às vezes até arranjado pelas famílias, ajuda a explicar. Não queremos pertencer a ninguém, e nem o devemos fazer jamais. Sim, em partes do mundo estes modelos arcaicos de associação pseudo-sentimental ainda perduram, infelizmente. Mas na nossa metade ocidental, apesar de alguma pressão religiosa, isso já é assunto de passado. Ainda bem.

Lembro de quando era criança e ia às festinhas de aniversário. Havia sempre muitos balões a fazer decoração. Aos poucos, iam sendo soltos para entreter os mais pequenos, fazer disputas épicas similares a um vôlei ou futebol entre os maiores. Ao final, corríamos todos feito doidos para estourar quantos balões houvesse. Destruíamos aquelas bolas coloridas em breves instantes, a pisotear e sorrir. E depois acabávamos sem nada.

E é neste ponto em que a pandemia Covid-19 atacou. Já havíamos estourado as relações. Mas ainda estávamos na fase de êxtase que rapidamente sucede a explosão. Éramos alegria por poder escolher com quem nos envolver momentaneamente, sem ter de pensar no depois. Mas também sem ver o que há lá dentro da pessoa outra, e de nós mesmos.

Como a mãe que recolhe os pequenos plásticos jogados ao chão, os restos daquilo que foi a festa, a pandemia chega e nos diz que, já chega, é finda a hora, temos de ir e estar em casa. Sem exceção.

O que já era superficial fica ainda menos puro. Não há sequer a chance do toque, do beijo com gosto de álcool na festa que avança a madrugada. Ficamos presos às telas dos telefones, caímos na armadilha de achar que os aplicativos são capazes de replicar o real. Não, não são. Acabamos por cansar também das fotos, de deslizar à direita ou esquerda a depender do bonito filtro ou da piadinha na descrição de cada perfil.

Há, sim, possibilidades, mas para um coração latino-americano, falta. E muito.

Lembro do magnífico romance de Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera. É das histórias aquelas só possíveis a corações abertos, dispostos, a corações que esperam porque o amor não tem hora certa, ele chega e fica quando bem entende, pouco importa a circunstância terrena. Me pergunto em que momento deixamos de festejar a intensidade do sentir, e passamos a fechar nós mesmos em cascas, a afastar quem quer entrar e ficar para uma limonada com pão de queijo.

Temos medo, mas o amor não vem só, ele traz consigo o gosto da aventura, do incerto, e estar vivo é também isso. Se a pandemia lembra que a vida é um sopro, que podemos ser arrebatados num segundo único para nunca mais voltar, por que é que diabos não podemos nos entregar e apenas sentir, tudo e todas as coisas, como disse Fernando Pessoa?

É hora de encher balões. Com afeto.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)