Quando a esperança caminha pelos trilhos do trem

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
4 min readJun 23, 2015

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Era final de tarde e o frio típico do inverno gaúcho dava as caras, ainda que fossem aqueles os últimos dias de outono. Na estação inicial do trem, que parte em uma viagem de linha única entre Novo Hamburgo e Porto Alegre, vejo uma mulher e quatro crianças, que se destacam entre aquela pequena multidão. As mais velhas carregam caixas de balas de goma na mão enquanto aguardam na plataforma a chegada do transporte.

O barulho estridente da freada de um trem velho anuncia que é hora de embarcar. A mulher e as duas crianças menores entram em um dos primeiros vagões, e aquelas duas maiores — que são dois meninos — embarcam no mesmo que eu. Tão logo o coletivo sai em direção à capital gaúcha, eles começam a oferecer as simplórias balas, ao custo de um real o pacote, se não me engano.

Alguns compram. Eu não. Não tinha nem 30 centavos na carteira aquele dia. Mas queria ter tido um trocado ao menos para dar a eles. Não estavam mal cuidados, dava pra ver que o cabelo estava aparado — um deles com estilo de jogador de futebol, o outro com uma cabeleira crespa encantadora. Mas eram de origem humilde (e não é preconceito afirmar isso, apenas um relato fiel da história).

O do cabelo longo usava um boné, casaco de abrigo e tinha uma mochila nas costas. Vestia uma calça de moletom, tênis branco e tinha as meias puxadas para cima da calça, creio que para espantar o frio. O outro menino tinha um blusão e uma calça de moletom e só usava um par de chinelos nos pés. Naquele frio do cão, o pobre menino só tinha aquilo para vestir. Um verdadeiro corte no coração de qualquer pessoa. As roupas deles eram velhas, batidas, mas lhes serviam.

Depois de oferecerem o produto a todos os passageiros do vagão, os dois garotos, que devem ter entre 7 e 9 anos de idade, se sentam. Uma senhora ao lado deles pergunta como estavam as vendas, se ganhavam bem. Timidamente, respondem apenas abanando a cabeça e dando de ombros, como quem não sabe o que dizer à mulher. Talvez por receberem diversas vezes durante seu dia de trabalho o mesmo tipo de questionamento.

Se levantam com o aviso de que a estação seguinte estava próxima, mas não descem. Apenas observam se a mulher que os acompanhava sairia ou não do vagão em que estava. Ela não sai. Eles ficam em pé, atentos para não perdê-la de vista — na parte frontal do vagão há uma pequena espécie de janela de vidro onde é possível ver que o se passa no carro seguinte, e por lá a monitoram.

Um rapaz, de uns 26 anos está sentado bem na frente dos garotos. Os chama.

— Posso perguntar uma coisa pra vocês? — ele diz.

Os dois respondem abanando a cabeça, autorizando o questionamento.

— Vocês vão na escola? — pergunta o rapaz.

Novamente um sinal afirmativo é dado pelos corpos pequenos como resposta.

— E vocês gostam? — insiste.

Outro balanço positivo das cabeças.

— Eu quero contar uma história pra vocês. Pode ser?- diz rapaz.

Os dois garotos se olham e ficam curiosos. Um deles se senta ao lado do desconhecido e o outro fica em pé, a postos para ouvir a narrativa.

— Quando eu era pequeno, assim da idade de vocês, eu também vendia balas, sabe, assim como vocês tão fazendo. É que eu precisava ajudar a minha família. — explica o rapaz.

Surpresos, os dois meninos se olham e se identificam no rapaz desconhecido que viaja de trem. Pela primeira vez desde que os vi, sorriem. Estão interessados que ele continue a história.

— Tu vendia assim que nem a gente? A gente também tem que ajudar a família sabe. — comenta o pequeno de cabelos curtos.

— Sim, assim que nem vocês, uma bala igual a essa. Mas sabe, agora eu estou estudando e eu vou ser médico. — completa o desconhecido.

Os meninos se olham, maravilhados. Não sei o que pensaram, mas se tivesse que adivinhar apostaria em algo como “se ele vendia bala e vai ser médico, a gente também pode”. O rapaz então explica que sempre gostou de estudar e sempre foi à escola, por mais difíceis que eram as coisas.

— Estudem sempre. Leiam muito e gostem de ir pra escola, que um dia vocês também vão estar na faculdade e podem ter várias profissões — , diz ele, enquanto mostra um texto em uma folha branca de papel.

Os pequenos nem sabem o que dizer. Quando o trem chega a mais uma estação, percebem que a mulher que os acompanhava no outro vagão desceu. Se despedem sorrindo do rapaz, como que agradecendo por cada palavra dita. Saem felizes, alegres. Esperançosos.

FIM.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)