Quarentena forasteira

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
3 min readMay 26, 2020

Há uma etiqueta nesta manga que diz: Vale do São Francisco, made in Brazil, fruta selecionada. A comprei porque, bem, em algum lugar alguma vez disseram que alimentos com vitamina C são bons para estes tempos. Não custa tentar. Certo, custa sim, porque há que pagar, de graça é que o turco da venda da esquina não me deixaria levá-la. Mas isso é besteira. A verdade é que comprei esta manga porque ela tem o doce gosto de casa. Igual ao guaraná e farofa que estou guardando para um dia de festa que ainda não sei quando vai ser.

É estranho, tudo muito estranho. Foi em 29 de novembro de 2018 que saí voando do Salgado Filho. Parei em São Paulo e comi um pudim de leite condensado no aeroporto, por uns 20 reais, ciente de que levaria muito tempo para saborear algo assim novamente. Achei caro, é claro, mas a saudade é coisa que não tem preço e se alivia mesmo é com eventuais alegrias nem sempre baratas.

Eu nasci no Dia de São João, um domingo de geada em que o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo pela Argentina. Meu pai conta isso a resmungar, minha mãe diz que eu chorava demais. Eu não ligo para a seleção, mas gostava de poder chorar nos braços deles outra vez. A doença, esta, parou o mundo e muitos sonhos, também. Eu tinha pensado em aparecer lá em casa para o meu aniversário, num desses carros de telemensagem, vestida de Zorro ou de Peppa Pig, ainda não tinha decidido. Gosto de surpresas, de festa, de alegrias, de poder celebrar meus 30 anos que logo chegam com quem eu amo. Mas, desta vez, não.

Viver no exterior me faz não sentir tanto o isolamento. Porque, de certo modo, eu já vivo isso há um ano e meio, mais uns dias. Estou habituada às chamadas de vídeo para relatar aventuras e tragédias, para ajudar a resolver ou apenas ouvir os problemas cotidianos da América Latina, como o gato que achou um buraco no galinheiro e andava a atacar os pintos do meu pai. É a saudade, antes de tudo, quem me acorda e também sonha comigo, todos os dias e noites e também durante o mês de janeiro em que só vi o céu azul por duas horas numa tarde de quinta-feira. Londres é cinza mas também é legal, eu juro.

Agradeço o fato de a doença, esta, não me ter levado ainda a vida, nem minha, nem de amigos e familiares, e sinto muito por todos os rostos que viraram números e são ignorados. É triste ler as notícias e saber que o meu país vai de pior a muito pior, porque se fosse mal a gente ainda dava um jeito. Mas aqui também não é fácil. Talvez numa antecipação do que virá a ser o Brexit em sua plenitude, anda a ser bem difícil ser imigrante na terra da rainha. Falta emprego, sobra desespero. A ambição de conquistar o mundo, hoje, fica para um amanhã que eu não sei nem se vai chegar.

O isolamento, este que pouco sinto por já viver isolada do meu mundo há algum tempo, tem me tirado mesmo o sono e alguns sonhos. O bom é que eu não faço planos a longo prazo, porque já aprendi que a vida é bandida e sempre rouba coisas, pra dar outras lá na frente. Um dia ainda encontro um pudim de leite condensado.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)