Cais das Colunas ao entardecer de um outono nublado

Saudade é uma gaivota que rouba seu pastel de nata na beira do Tejo

Karina Sgarbi
metade disso é verdade
3 min readDec 20, 2016

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O sol bate e penetra na água que chacoalha de volta o brilho da luz. Parece que tenta empurrar o calor do astro-rei para as pedras, aquelas que limitam o que é terra, o que é rio, onde se caminha, mergulha, dança ou se afoga. Acima, antes das nuvens de cor cinza de fim de tarde e de fim de outono, voam aves, são gaivotas. O balé aéreo não é bonito — algumas se bicam, grasnam entre si. São agressivas, agora avançam rasantes, não ao chão mas à cabeça de quem ousa sentar ali, no Cais das Colunas, de frente para o Tejo e de costas para a Praça do Comércio, ao fim de um dia qualquer.

Até a quem ousa levantar e ir embora, seja pelas retinas fatigadas de tal espetáculo horrendo ou pelo simples clamor das horas que acabam de passar — olha, estão passando de novo, não param estas apressadas! — as gaivotas não dão paz. Perseguem os andantes, solitários ou acompanhados, no atravessar da Avenida Infante Dom Henrique.

Rapineiras, tudo o que precisam é de uma oportunidade. Uma apenas, única chance tida, desperdiçada não será. Pronto, ali vai a menina com seu livro, aquela que ficou com medo quando as aves iniciaram a dança disforme. Ela caminha, está a cem passos do Arco da Rua Augusta. De uma caixa cor de rosa tira o último pastel de nata, vai comer enquanto anda, não vê ali lugar para sentar.

O doce redondo e já gelado começa a ser devorado: uma mordiscada pequena leva mais da borda de massa folhada e menos do recheio cremoso. Antes mesmo que o corpo comece a processar o alimento, escasso em nutrição e, portanto, nada saudável, muito embora de sabor sem igual, eis que a oportunidade única é avistada por uma das aves. Esperta, não tem tempo a perder e num único golpe bica da mão da menina o pastel quase que inteiro, como que com 90% ainda por se comer.

O golpe é único e fatal. Ficam os dedos, vão-se as camadas de massa folhada crocante e seu recheio português tradicional. Há que rir, uma vez que chorar só faz inchar os olhos e resolve nada. Então gargalha. Na terra onde se esbanjou o ouro roubado à custa das vidas de seu povo, aqueles mortos a troco de pedaços de pau brasil desde quando as caravelas lusitanas atravessaram o Atlântico, ela é novamente vítima de assalto. É, a vida não deixa de ser também ironia.

Pois, depois que ingressa na Rua Augusta e se vê a salvo das gaivotas espertas, pensa que o acontecido é como a saudade que leva em seu peito. Dá medo, assusta, porque a palavra que só encontra significado bem dito e explicado no idioma de Camões, Pessoa e Saramago, também roubou um pedaço seu, sem direito à devolução. E dói às vezes, de susto, de indignação, da falta que faz aquela partezinha que aqui e agora não se pode mais ter. Tudo soa tão injusto, não? E olha que as injustiças deste mundo, e dos outros, é o que ela mais gosta de combater.

Longe de casa, ao cabo de um ano de superações, tristezas e alegrias — como foram e hão de ser todos os anos, mas mais esse, por razões que fizeram arder e doer o coração — conclui que rir de tudo em alto e bom som ainda é e talvez sempre (nunca diga sempre ou sempre diga talvez e talvez diga nunca, e vice-versa, ou então esqueça que aqui me perdi) será a melhor solução. Até porque a saudade, assim como o pastel de nata, pode não ser saudável de todo, mas também alimenta ou o estômago ou a alma. Depende de quem come, a toma por ataque, ou a sente.

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Karina Sgarbi
metade disso é verdade

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)