Agência, Adaptação e Criatividade: A Materialidade de That Level Again

Clara Borges
5 min readJul 29, 2019

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Não é coincidência que a tradução em português para puzzle é quebra-cabeça. Jogos deste tipo possuem uma característica em comum: fazer o jogador se frustrar, geralmente múltiplas vezes, antes de conseguir a satisfação que vem com cumprir um objetivo. Além de terem o seu próprio gênero, os puzzles foram e tem sido incorporados em diversos jogos de diferentes gêneros afim de testar diferentes habilidades dos jogadores, como lógica, estratégia e resolução de problemas, exigindo uma exploração do ambiente do jogo, muitas tentativas e aprendizado com erros e, geralmente, conseguindo fazê-los amar (e também odiar) a experiência.

Com a constante evolução dos dispositivos eletrônicos e da própria tecnologia, os jogos tem adquirido gráficos cada vez melhores, narrativas cada vez mais envolventes, personagens cada vez mais complexos, entre outros fatores que influenciam a experiência de quem joga. No entanto, quando se trata de quebra-cabeças, mesmo um jogo muito simples é capaz de envolver o jogador e fazê-lo ansiar por mais.

That Level Again é um desses jogos. Criado pelo desenvolvedor de jogos indie Iam Tagir e disponibilizado gratuitamente para iOS e Android desde fevereiro de 2015, o jogo mobile já foi baixado 5 milhões de vezes e possui uma média de 4,7 estrelas apontando a sua qualidade ou que, ao menos, deixam qualquer um que se prestar a experimenta-lo um pouco curioso com o que o diferencia das centenas de outros jogos em estilo puzzle disponíveis na plataforma. Aliás, procurar um diferencial chega a ser um pouco irônico. Afinal, That Level Again possui 80 níveis e, como o título avisa, todos são idênticos.

Screenshot da primeira fase de That Level Again.

O objetivo de cada fase é sempre o mesmo: guiar o personagem para o lado direito da tela, onde está a porta que o levará para a fase seguinte, muitas vezes passando por um botão vermelho no meio do cenário. Os obstáculos se apresentam na forma de armadilhas, plataformas que caem sem aviso prévio e objetos pontiagudos que impedem o avanço em certas circunstâncias. Outros problemas incluem a gravidade, o comportamento de alguns obstáculos e a presença de diferentes elementos que aparecem para dificultar a análise do jogador do que deve ser feito em seguida.

Uma mecânica diferenciada

Se a aparência não chega a ser impressionante, a adaptabilidade que o jogo exige do jogador chama bastante a atenção logos nos primeiros níveis. Com sua mecânica dinâmica e totalmente cinética, mas ainda assim simples, That Level Again desafia a criatividade do jogador e a sua capacidade de decifrar enigmas com apenas uma dica por fase (exceto se ele estiver disposto a assistir uma propaganda em troca de outra dica) e o dispositivo em suas mãos. Isso por que o sistema de input que permite a realização de ações é completamente imprevisível, de forma que a repetição de cenários e movimentos deixa de ser algo maçante e se torna um esforço real para alcançar o objetivo.

Se em uma fase, simplesmente usar as setas direcionais é a solução, em outra o jogador vai ter que encontrar no cenário novos botões a serem apertados ou girar o celular ou o tablet até o personagem chegar na porta. Outras soluções incluem caminhar na direção contrária, acertar pulos quase impossíveis e até matar o personagem para conquistar o objetivo final. E a cada fase o jogador precisa usar mais das suas capacidades de análise e senso crítico para entender o que precisa fazer, pois até mesmo as dicas começam a ficar cada vez mais confusas.

Screenshot da fase 5 de That Level Again cuja dica sugere que o jogador deve fazer o personagem morrer de propósito para poder abrir a porta.

Elementos do jogo

É comum se referir à materialidade de um jogo digital como a relação jogador-jogo estabelecida através de um componente material (o console, por exemplo). Pressionar a tela em certos pontos, desligar o som, colocar o celular em modo avião, deslizar o dedo pela tela e explorar a tela inicial e de créditos são algumas das formas que That Level Again oferece ao jogador um contato especial com o seu dispositivo para poder progredir no jogo. No entanto, há muito outros fatores que pautam a experiência do jogador.

Como todo o resto, a ambiência de That Level Again é minimalista. Apesar da aparência um tanto mórbida e perturbadora, o cenário e o próprio design do personagem principal são fáceis de subestimar. A arte simples traz uma estética bonita, com bastante espaço para análise. Por que tudo é tão dark? Por que o protagonista parece tão debilitado? Por que não existem elementos coloridos além do botão central? Todas essas perguntas podem conter respostas diferentes dependendo da percepção do jogador e das experiências na vida real e com outros jogos.

A trilha sonora do jogo não chega a ser memorável, mas é bastante imersiva e influencia o jogador a sentir ansiedade e apreensão, mas também a empolgação necessária pra tentar múltiplas vezes. Uma pesquisa rápida na wiki Game Compendium indica que se trata de sons binaurais, ou seja, batidas, tons e notas que auxiliam o jogador a entrar num estado de flow, isto é, um estado de foco e atenção que permite a quem joga permanecer concentrado por horas a fio numa tarefa. Este, inclusive, pode ser um dos motivos porque quem experimenta o jogo consegue passar bastante tempo tentando várias e várias vezes antes de cansar.

Já a narrativa, no entanto, é um mistério. Apesar de o jogo conter flashbacks do personagem principal e uma aparição especial no final, o tema é bastante confuso. Talvez por isso (e também pela grande popularidade que o jogo adquiriu ao ser exibido em diversos vídeos de gameplay na plataforma Youtube) três outras continuações tenham sido feitas, que certamente esclarecem tudo o que o primeiro jogo da franquia deixou de fora. Entretanto, a ausência de explicações óbvias abre espaço para a subjetividade do jogador, de forma que se relacionar com o personagem, um simples boneco de palito, é possível e até esperado para quem costuma analisar detalhes deste tipo.

Considerações finais

That Level Again é uma boa prova de que um jogo não precisa ser extremamente complicado, ter gráficos, estética e narrativa incríveis para ser uma ótima experiência. Jogos são divertidos porque os jogadores se permitem deixar levar pelo que lhe é apresentado, interagindo, participando e sendo parte crucial do game. Não há jogo sem jogador. E quando se trata de um puzzle como esse, esta interação e ainda mais importante.

Em That Level Again, o jogador experimenta uma série de emoções, desde a frustração por não conseguir descobrir a resposta para um enigma até o êxtase de alcançar um objetivo. Cada movimento, tentativa e erro contam para transformar a experiência em algo interessante e memorável. Mas esteja avisado: amá-lo é tão fácil quanto odiá-lo.

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