“Crescer significa escolher como você irá viver sua vida.”

Nicollas Fraga
Metagame
Published in
6 min readJul 23, 2016

Não é de hoje que diversos veículos midiáticos procuram retratar uma importante característica da convivência humana: a inevitável vinda da responsabilidade de crescer e amadurecer. Filmes como “As Vantagens de ser Invisível” e “Clube dos Cinco”, romances como “O Apanhador no Campo de Centeio” e “Azul é a Cor Mais Quente”, entre tantos outros produtos midiáticos retratam histórias com personagens se vendo com determinadas responsabilidades sociais em meio a inúmeras dúvidas psicológicas que os amedrontam continuamente, sobre o futuro e o que os aguarda, seu presente e o que pode perdurar ou não dele e o seu passado e sua reconfortante lembrança de tempos que não voltam mais. É algo característico na vida de todo ser humano, especialmente aqueles que representam especificamente os personagens de tais mídias em meio a um mundo cada vez mais afetado por personalidades fragmentadas e inseguranças agravadas pela ansiedade crônica. Eles enfrentam dicotomias constantes de ser respeitado como um adulto mas não querer deixar seu espírito infantil para trás, ou se fazem o melhor para mudar o mundo ou deixa-o do jeito como está. Essa inigualável e íntima forma de narrativa é abordada por Life is Strange, sendo amplamente fortalecida pelas suas mecânicas de escolhas e exploração de cenários, com um toque estético que remete à Boas Vibrações, e que apresenta uma mensagem que ressoa internamente com sua personalidade e disputas internas.

Indo contra a maré interessante recentemente de figuras paternas protegendo sua prole nos vídeo games, Life is Strange acompanha a vida de Max Caulfield, jovem de 18 anos recém-comemorados que retorna a sua cidade-natal de Arcadia Bay, no Oregon, para ingressar no último anod do ensino médio da Academia de Artes Blackwell como estudante de fotografia. No começo do jogo, ela acorda de um aparente pesadelo em que vê sua cidade sendo devastada por um furacão, no meio de sua aula. Sendo adereçada ironicamente pelo seu professor, Sr. Jefferson e colegas de classe pelo fato, Max deixa a sala e procura se isolar do mundo a sua volta, colocando fones de ouvido enquanto a Música “To All of You” da banda Syd Matters isola todo o som ambiente e abre os créditos do primeiro episódio do jogo, Chrysalis, num total de cinco.

Esta sequência não apenas apresenta o cerne do jogo, seus personagens que serão apresentados no seu decorrer e sua ambientação geral, mas também serve de construção de personalidade para Max, uma garota ordinária que pode passar despercebida pela multidão, “só mais uma entre muitos”, com alguns conhecidos no seu círculo social, mas reservada quanto a sua pessoa. Essas características contornam grande parte do público jogador, que se viram vivenciando o mesmo cotidiano que Max em diversos momentos de suas vidas, logo fazendo-a ser imediatamente identificável e carismática.

Enfim, o jogo segue com Max descobrindo que possui poderes de controlar o tempo ao salvar sua antiga amiga de infância Chloe Price de sua morte certeira, enquanto eventualmente tenta se reconectar com ela, levando a uma série de situações que as levam a tentar descobrir o segredo por trás dos poderes dela e investigar as muitas conexões que envolvem o desaparecimento de Rachel Amber, amiga de Chloe que “substituiu” Max no período que ela vivia fora da cidade. Sendo este um jogo Adventure, a trama se desenrola por meio de exploração dos cenários e solução de puzzles simples, o que em si são em grande parte contextualizados dentro do jogo. Max é considerada “enxerida” por seus amigos próximos, o que suspende a descrença de sua exploração do cenário e seus interagíveis ser incoerente com a personagem, que até por ser uma estudante de fotografia tem toda a desculpa de procurar momentos únicos em cada canto do cenário, o que em si só é uma mecânica que o jogo oferece, sendo possível colecionar fotos específicas.

Tais mecânicas também se amarram com a forma como Max se relaciona com outros personagens, dependendo das suas escolhas. A exemplo, explorar um dos quartos de suas colegas, Dana, revela que ela suspeita de estar grávida de seu namorado ao se analisar um teste de gravidez, mas isso em troca a enfurece pela sua atitude intrometida. Se o jogador se sentir incumbido, ele pode voltar no tempo com os poderes e comentar sobre o incidente como um rumor ao vento, confortando-a sobre ele. A união dessas duas mecânicas é o suficiente para desmistificar o que se passa com quase todos os personagens do enredo. Cada um deles é a primeira vista caricato em suas personalidades; bullies, esportistas, patricinhas, nerds, skatistas; há uma variedade de clichés cinematográficos estipulados por filmes de mesma temática dos anos 80 e 90, mas a cada passo há uma profundidade esperando para ser desvendada em cada personagem. E o que se revela são indivíduos vivendo sua própria realidade nua e crua, fragmentados por conflitos internos fomentados pela circunstâncias que se encontram. A patricinha metida na verdade vive sob uma constante ansiedade de satisfazer as expectativas dos seus pais que almejam um futuro bom para ela, usando de mesquinharia para se assegurar de sua integridade; o mesmo vale para o valentão que passa o jogo inteiro te importunando, que desenvolve um tipo de transtorno psicológico por viver no temor de não poder viver a altura de seu pai influente no mercado imobiliário local de Arcadia Bay; ou até a simpática e religiosa amiga de Max, Kate Marsh, que se vê em frangalhos ao ter sua seguridade cristã posta em dúvida ao ter um vídeo íntimo exposto ao público, para o desagrado de sua família religiosa, resultando em um dos momentos mais marcantes onde ambos Max e o jogador estão desempoderados, “mistica” e emocionalmente, e precisam evitar uma tragédia apenas com o que lembram dos detalhes da vida da menina.

[SPOILERS] Drama em gloriosos 60 FPS

Life is Strange certamente trata de muitos temas sérios que infelizmente podem rodear os jovens nessa fase da vida, como bullying, suicídio, abuso, etc. Mas há espaço para momentos (e muitos) de superação. Por toda a trama, Max se vê encarregada de ajudar seus amigos com seus poderes, de alguma forma. A atenção especial vai para Chloe, que em diversas vezes por atitude impulsiva e rebelde foi resgatada por ela, e para Max isso a enche de responsabilidade para com seus próximos. Felizmente o jogo dá cenários o suficiente permeados pelo seu decorrer onde há mais desenvolvimento ente personagens, fortificados por uma trilha sonora alternativa, mais Lo-Fi, encarregada pelos próprios integrantes da banda Syd Matters, a fim de dar uma pausa na trama principal e ganhar tempo “para respirar e pensar”. Tanto que em determinados momentos Max pode sentar em algum canto e pensar sobre tudo que se passou até aquele momento, enquanto a câmera livremente transcorre pelo cenário acompanhada da trilha sonora sutil.

[SPOILERS] Ignorem o título do vídeo, só se deixem levar pelos pensamentos.

Mesmo que haja grande poder para mudar o mundo para melhor, no entanto, Max se vê tendo que lidar com o inevitável ao final do jogo, e não há escolha que possa satisfazer totalmente jogador e personagem, sendo a alternativa enfrentar o futuro iminente com o melhor empenho possível. “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”, já diria o ditado popular. E em paralelo, não há forma de se fazer os momentos da vida durarem para sempre. Tudo chega a um fim um dia, seja qualquer que seja este, e lidar com esse fato perturba o pensamento até dos mais austeros em algum momento da vida. Nossa inseguridade sempre nos deixa de joelhos para cada situação decisiva, especialmente para uma geração mais ansiosa que as anteriores, mas o que Life is Strange te pergunta ao seu decorrer é “Se você tivesse o poder de mudar o seu passado, você encararia o seu futuro?”. Certamente não podemos ser agraciados com poderes temporais, mas o que podemos é aproveitar ao máximo os momentos que temos com as pessoas ao nosso redor para que quando elas partirem para outros destinos, cultivemos sua existência em memórias do que passamos juntos. E que deixemos elas “voarem”.

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