Estratégia, Dialética, Sujeitos e Victoria II

Filipe Lothar
Metagame
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7 min readJun 14, 2016
Mapa Mundi político, ao começo do jogo, em 1836 in-game de Victoria II

Se tem algo que sinto falta ao ler críticas em geral é um direcionamento político. Não que devamos falar de política o tempo todo, mas que há espaços adequados em que ela possa e acredito que deva ser invocada e abordada. Ainda mais quando o assunto são games do gênero da estratégia onde a luta em si está quase sempre aparentemente acima de quaisquer princípios ético-políticos. É a luta pela luta. O político ganha centralidade em games mesmo que não envolvam sociedades inteiras, pois tratam-se de sujeitos históricos em disputa, e isso pode ser constantemente observado em diversos deles, mas a abordagem analítica a priori com que compreendem o fenômeno da política quase sempre deixa a desejar. Talvez por uma questão de limitação mecânica na linguagem eletrônica-lógica-digital em que estão baseados, mas certamente pela falta de uma abordagem mais aprofundada sobre como a história se desenvolve. É nesse sentido que eu, como autor, não pretendo fazer críticas apenas pelas críticas. Como autor com a formação política e a filiação teórica, por assim dizer, que construí até então, análises críticas propositivas não são coisas às quais eu possa ter o luxo de abrir mão. Para atender a esta necessidade, que não é puramente pessoal, mas uma que estende-se ao conjunto da sociedade dada sua extrema fragmentação, é preciso armar-se de um arcabouço teórico e analítico anterior.

Ao ler as análises críticas dos discentes da disciplina de Crítica de Games da UFF do período de 2015.2 em Nexus: Arqueologias do Futuro, observa-se distintamente o uso sistemático das palavras “utopia” e “distopia”. Podem reclamar da filiação teórica que atribui a este texto, pois não me resta escolha a não ser não compactuar com a dicotomia utopia/distopia, mas o marxismo, por mais leiga que minha formação possa ser ainda, é o corpo teórico que me permitiu ter uma visão analítica e de arte mais aprofundada sobre como os games entendem a questão política. O que acabou inclusive orientando a escolha do game aqui criticado, e, como os aspectos para os quais chamo a atenção são justamente o seu destaque, não farei a crítica a outros aspectos, como a interface, o eurocentrismo e erros ideológicos, que mereciam alguns comentários. Aqui, portanto, já declarei aberta e claramente que minha análise não é neutra ou imparcial. Faço uma análise assumidamente parcial. Tanto no que se refere ao alcance analítico de meus conhecimentos, quanto ao objeto e à abordagem e quanto aos objetivos críticos e políticos que desejo alcançar.

Aqui escreve um grande admirador de games do gênero da estratégia; Real Time Strategy ou Turn-Based Strategy. Um grande admirador também de temas da Ficção Científica, épico-históricos e da aplicação conceitual da dialética. Entre amigos costumo dizer que os games de estratégia são aqueles análogos, na literatura, aos épicos — considerando-se que é o gênero que narra as grandes histórias e aventuras de sociedades. Às vezes a sociedade aparece personificada na figura de um grande herói com a incumbência de representá-la moralmente e outras vezes aparece nua e crua como o conjunto fragmentado de sujeitos criadores de seu próprio destino. Cada indivíduo cumpre um papel, mas não necessariamente tem poder ou mesmo consciência do processo histórico que está se desenrolando, graças também a esse mesmo papel, bem diante dele. No cinema, um verdadeiro panteão, um grandioso exemplo deste gênero é nada mais, nada menos que 2001: Uma Odisseia no Espaço. Stanley Kubrick tanto sabia o que estava fazendo que deu o nome desta obra absolutamente grandiosa de “Odisseia”. Nada mais auto-reconhecedor do que isso.

Dada a complexidade da tarefa de se compreender como se dá o processo histórico, talvez possa se dizer a “natureza da História”, mas costuma-se chamar isso de o “motor da História”, é onde reside o grande desafio que é pensar um game de estratégia. E é nesse sentido que falo de Victoria 2.

Os games em si são uma arte limitada direta e objetivamente pela lógica eletrônico-digital. Isso naturalmente leva qualquer game de estratégia a ter, embutido em seu formato, uma matemática interna tão complexa para que, chegando ao patamar macroeconômico, a sociedade possa ser gerida de forma subjetiva. Ou seja, o sujeito está intrinsecamente ligado à condução macroeconômica e histórica da sociedade. Não é uma simples coincidência que isso corresponda à realidade mesmo que um game tente ideologicamente, também no sentido lato marxista da palavra, negar a presença do sujeito ou não. É assim que os games de estratégia ganham o potencial de compreender processos tanto micro quanto macroeconômicos. É exatamente assim que os games podem nos fazer pensar sobre o salto qualitativo e histórico das ciências exatas, que não explicam processos sociais, para as ciências humanas. Mas mais do que isso ainda: é exatamente assim que os games de estratégia nos apontam que para haver consciência e poder sobre os processos históricos é necessário o conhecimento crítico de Economia Política.

E por que é necessário o conhecimento crítico de Economia Política? Não para jogar, obviamente. A Economia em si é uma ciência fragmentária. Ela surgiu da negação da Economia Política. O objetivo da ciência Economia não é o mesmo objetivo da ciência Economia Política. Enquanto a Economia Política procura compreender os fundamentos econômicos da organização político-social, a relação Estado x sociedade civil, a Economia busca tecnicizar a gerência de fluxos monetários em favorecimento ao contratante do serviço do economista. A Economia, desde o princípio, surgiu como uma ciência voltada ao mercado, enquanto a Economia Política, através de sua crítica, constituiu um campo de conhecimento que nos ajuda a compreender melhor os limites da ordem capitalista e o que pode haver para além dessa ordem. Ou seja, ela também trás o elemento histórico que pode subverter qualquer lógica meramente gestionária dos games de estratégia. A Crítica da Economia Política é por essência a ciência do sujeito histórico. A Economia Política politizou-se.

A questão central é: já que nenhum game de estratégia pode, por natureza, negar que pelo menos o próprio jogador seja o sujeito histórico (uma ditadura plena), com quantos outros sujeitos históricos o jogador terá que negociar seu projeto de sociedade dentro da própria sociedade do game? Reparem que aqui a sociedade do game não é mais o resultado direto dos desejos do jogador, mas resultado da negociação entre sujeitos históricos que contém o jogador. Victoria 2 foi o game que, correndo o risco de não ter sido proposital, mais radicalmente, na minha experiência até agora, compreendeu a dinâmica da História. À “radical” aqui atribui-se o sentido de “pela raiz”.

Enquanto o game faz um recorte histórico específico entre 1836 e 1936, nele, o jogador deve lidar com a atuação de diversas forças políticas disputando a dirigência da nação, movimentos sociais desejosos por reformas, movimentos revolucionários lutando pela alteração de regimes e que mudam inclusive a própria jogabilidade conforme o poder. Deve lidar com o crescimento da população seguido do crescimento de diferentes classes sociais, a dinâmica de interação entre elas e filiações ideológicas, lidar com uma complexa interação de mercado mundial em que a nação pode ou não estar dependente fundamentando alianças ou disputas internacionais, ao mesmo tempo que disputa com outras nações o pódio de Grandes Poderes mundiais. De uma certa forma, a política é colocada acima do próprio jogador e é ele quem deve adaptar-se à construção histórica que toma forma à sua frente. É uma tarefa digna de grandes figuras intelectuais, culturais, políticas e históricas em contextos de disputas de projetos de sociedade bastante acirrados.

Gameplay numa partida de Brasil.

A temática da Ficção Científica me é mais apelativa do que a histórica, inclusive aguardo o game de FC que leve em consideração justamente esses pontos. É importante, tanto quanto o é, hoje em dia, politizar a própria política, politizar a FC. Complexificar a questão dos cenários “utópicos” ou “distópicos” e mostrar que (esses cenários) não surgem sem a atuação a priori de sujeitos políticos e históricos e projetos de sociedade em disputa. Se a distopia caracteriza um cenário em que a humanidade tenha chegado ao ápice do fracasso, por exemplo, de duas uma, do ponto de vista de um game: ou ela representa a derrota de todos os sujeitos históricos em disputa (fim de jogo) ou ela representa um recomeço onde novos sujeitos históricos emerjam e continuem disputando (começo de jogo).

A não ser que o game incorpore a dinâmica da própria decadência e da transformação social em sua mecânica, ou seja, coloque a política e a história acima da própria mecânica, sem que sujeitos históricos tornem-se tão inexpressivos que sejam necessariamente eliminados de uma partida, mas, talvez, “invalidados” aguardando um momento para ressurgir, e alterando-se a própria mecânica em função do estágio histórico na partida, pode-se dizer que a utopia/distopia nunca é, ou, até agora, nunca foi um ponto em si mesmo. Eis aqui a proposta duma tarefa bastante complexa para os designers de games. O objetivo é mostrar que projetos de sociedade falham mais para uns sujeitos do que para outros até que falhem para (quase) todos ou até que, por vezes, dão certo. Na realidade, a utopia, até a presente experiência humana resume-se a sociedades “darem certo”. Costumam ser períodos históricos muito curtos que dependem de uma série de condições tanto materiais quanto políticas, sociais, culturais, de pensamento e, inclusive, de intensa exploração e luta de classes para que possam persistir. Processos, inclusive, que tendencialmente levaram tais sociedades aos seus respectivos declínios. Um sujeito político deve necessariamente pensar essas condições para concretizar seu projeto de sociedade. É disto que se trata a disputa e a negociação política e é essa complexificação política-sociológica que eu espero ver de um game de estratégia.

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