O medo do abstrato e desconhecido em Silent Hill

Nicollas Fraga
Metagame
Published in
6 min readJun 27, 2016

Há não muito tempo atrás havia um nicho no mercado de vídeo games propício para um gênero peculiar de jogos de ação. Em seu auge, algo em torno de 15 anos atrás, franquias estavam se firmando no ocidente como pilares do gênero e representavam o que hoje em dia são clássicos modernos da cultura das mídias interativas. Um desses clássicos é o que eu proponho analisar em algumas muitas linhas abaixo, seus aspectos similares e os distintos de outros jogos firmados neste período e, acima de tudo, tentar entender como se dá o medo, o horror em seu cerne. Se se permitir ler os detalhes deste trabalho até o fim, garanto que encontrará algo atrativo num jogo que se propunha perturbador e repulsivo em seu lançamento…

Os anos 1990 foram a época de transição entre as tecnologias de pixels 16-bits e modelos virtuais completamente em 3D, passando de experiências de jogo mais voltadas para a jogabilidade em si para jogos com um foco mais narrativo, cinematográfico até, graças ao poderio gráfico de plataformas com renderização de cenários e personagens virtuais tridimensionais, parecidos com o que era visto no cinema (pelo menos para uma criança da época era). Curiosamente, os jogos de horror viram nessa oportunidade a chance de recriarem a atmosfera do gênero visto em muitos filmes como Uma Noite Alucinante ou Alucinações do Passado. Silent Hill teve inspiração neste último para criar sua base atmosférica. Como havia espaço para que equipes de desenvolvimento se aventurassem em projetos mais criativos em favor de lucrativos, desenvolvedoras japonesas focaram em entregar jogos que apresentassem o peculiar tratamento oriental do horror, mas que fosse de alcance internacional, especialmente para um público ocidental. Resident Evil, o “rival” comercial de Silent Hill, conseguiu tal feito apresentando um jogo que mais parece uma cópia efetiva de Uma Noite Alucinante analisando-o hoje em dia. Mas Silent Hill foi por um caminho diferente.

Enquanto três anos se passam, a partir de 1996, e o pilar definitivo do termo “Survival Horror” ser tomado pela franquia Resident Evil e seus até então dois jogos, em 1999 Silent Hill vem com uma proposta diferente para cativar o público ocidental, ao ambientar e personificar seu jogo com elementos ocidentais. Por toda a sua extensão o jogo se passa na titular cidade de Silent Hill, uma fictícia e pacata localização no interior dos Estados Unidos; seus personagens são civis ordinários com cargos diferentes da esfera civil (uma enfermeira, um escritor, um doutor,…) e a história mais íntima e relatável de um pai caridoso tentando encontrar sua filha desaparecida dos males misteriosos por trás de uma cidade aparentemente pacífica. Tematicamente falando, essa era uma forma de pavimentar uma plausibilidade ao contexto do jogo, como se fosse possível que a trama ocorresse no mundo real, em uma cidade pacata perto de você (tirando os elementos sobrenaturais, é claro).

Agora, tão importante quanto sua temática, a maneira como o jogo provoca o medo no jogador é essencial para caracterizar seu sucesso com o público, e Silent Hill o fez ao te manter em constante tensão e suspense ao percorrer a cidade. Seu personagem, Harry Mason, é um escritor de romances e não é nenhum super soldado treinado para enfrentar qualquer situação; logo quando se depara com monstruosidades em seu caminho, o combate é bastante obtuso e irresponsivo boa parte do tempo, dando a impressão de que seu personagem mal consegue se defender, aumentando a tensão em confrontos. Logo, sua melhor opção é evitá-lo e fugir quando possível. Essa característica compõe a parte desempoderadora dos Survival Horror, e que o combate é possível, mas desencorajado. Apoiado nisso está a escassez de itens, que apela pra parte “Survival” do Survival Horror. Munição e itens de cura são raros e bem espalhados pelo cenário, cabendo ao jogador se arriscar a tomar um pouco de dano apenas para encontrar um kit médico ou uma caixa com balas, isso se encontrar. A incerteza e dúvida aumentam a tensão ao explorar o mapa, que mesmo que você acabe por amontoar uma decente quantidade de munição e cura não irá se arriscar a gastá-los em um confronto.

Só uma tradição comum de receber seu McLanche Feliz de um motoboy alado em uma lanchonete local, nada demais.

Os criadores de Silent Hill queriam realizar o objetivo de entregar uma experiência de horror em que o psicológico do jogador fosse abalado, em que a ansiedade e temor de se deparar com criaturas horrendas fosse maior que propriamente ter de enfrentá-las. Por isso não é nenhuma surpresa que seja possível encontrar semelhanças entre a literatura Lovecraftiana e o terror oriental baseado no suspense do desconhecido. Percebe-se no fato de Silent Hill ser uma cidade aparentemente pacífica, habitada por cidadãos agindo fora do comum e um culto a um ser sobrenatural e sombrio de poderes inimagináveis para a mente humana, mas é por aí que os paralelos acabam. Enquanto os personagens da literatura são investigadores levados a enfrentarem um mistério maior que os deixam a beira da insanidade, aqui Harry está saido de férias com sua filha Cheryl para Silent Hill, sem saber das anomalias que permeiam a cidade. Talvez o flerte com Lovecraft seja aparente com o fato do protagonista ser um escritor, assim como as ruas possuírem nomes de outros autores de romances reais; ou talvez eu esteja vendo muito onde não há nada além de uma metapiada pelos desenvolvedores nesse quesito.

Apenas um mapa qualquer. Com muitas referências, só isso.

Mais do que uma amalgama de cenários que servem de base para uma simples história de um pai tentando resgatar sua filha, Silent Hill aprofunda sua narrativa ao densificar seus personagens, mesmo que eles pareçam estar atuando em uma peça artística fora de contexto do David Lynch. A forma como os personagens falam e se comportam não é natural ou “convincente”, dando a impressão de algo de fato estranho está acontecendo com a cidade. Nesses momentos o horror de sobrevivência dá espaço para algo mais psicológico, pondo em questão a subjetividade da realidade vivenciada pelo personagem, assim como para o jogador. A primeira vista, nada faz sentido quando a cidade se transforma no “Outro Mundo” e cenários grotescos e abstratos começam a permear o caminho de Harry, mas há o perigo real e imediato de ser atacado por monstros deformados a qualquer momento, em qualquer lugar. Sua única pista sobre a proximidade deles é um rádio que emite ruídos quando estão próximos, então cabe ao jogador procurar pela segurança relativa de lugares silenciosos no mapa para poder respirar um pouco e pensar em como prosseguir. Nesses momentos o jogo apresenta uma narrativa ambiente bastante efetiva, onde a atenção do jogador é voltada para o cenário ao seu redor. Alguns elementos deste se destacam visualmente, apesar de sua aparente repulsa, atraindo a atenção do jogador, e após uma análise mais profunda, revela-se um ponto interagível em um quebra-cabeças. Este, por sua vez, transcreve uma pequena história de pássaros diversos voando um perto do outro, que serve de dica para resolver o quebra-cabeças que impende seu progresso no jogo. Essa história, bastante pacífica em meio a uma cidade tomada pela Escuridão, é um dos exemplos de como o jogo se beneficia deste elemento de narrativa para transmitir o medo ao jogador.

Apenas um piano ordinário com o que você espera que seja manchas de tinta vermelha.

É possível discorrer ad aeternum sobre Silent Hill e sobre sua efetividade no quesito terror psicológico/horror de sobrevivência, mas em resumo o jogo e, consequentemente as sequências da franquia, apresentam um medo que é criado e se acumula pela incerteza do que espreita na escuridão, sem ser visto, em vez de pura e violenta exposição do grotesco. Por mais que apresente visuais que se encaixem nessa descrição, eles raramente vêm a ser cinéticos, mas mais estáticos e já estabelecidos, como se o ato já tivesse ocorrido e só restasse os seus vestígios visuais. Assim a tensão é constante o jogador precisa ficar atento a cada passo que dá no escuro cenário, sempre se perguntando o que era real ou só fantasia… sem trocadilho.

--

--