Um dia na vida de Clara

Fabio Blanco
Meu ConTexto
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10 min readMar 14, 2021
Foto de Jackson David no Pexels

Acordou e lentamente abriu os olhos. Embora ainda fosse cedo, já não era tão cedo assim e os ruídos da cidade já se faziam presentes, os carros passando pela rua e o som de reformas sendo feitas em algum apartamento nas redondezas entre outros sons urbanos.

Sentou-se em sua cama ainda meio sonolenta mas já completamente acordada. Levantou-se e foi até o banheiro, jogou uma água no rosto e se olhou no espelho. Clara é uma garota bonita, morena, magra mas levemente curvilínea, de estatura mediana, olhos castanho escuros, cabelos castanho escuros levemente ondulados caídos nos ombros e com um tom de pele moreno claro, o famoso pardo, tão comum na certidão de nascimento de grande parte da população brasileira. Aliás, Clara é uma típica brasileira. Embora não tenha nenhum atributo que a verdadeiramente destaque na multidão, ainda assim clara tem lá seu charme. Não tem peitos grandes, mas não são demasiadamente pequenos, seus olhos não são claros e chamativos mas possuem um toque levemente amendoado, seu rosto não é o rosto de uma atriz de televisão mas não deixa de demonstrar beleza com seus traços leves e proporcionais.

Saiu do banheiro e foi até o guarda-roupas. Procurou algo para se vestir. Colocou uma calça jeans. Trocou de blusinha três vezes até finalmente se decidir por uma blusinha branca com uma estampa centralizada, uma boca com a língua levemente a mostra. Foi até o banheiro novamente e se maquiou brevemente.

Parou e se olhou no espelho. Estava pronta. Clara não é excessivamente vaidosa mas gosta de estar bem arrumada antes de sair de casa, mesmo que com um look básico e, considerando que não vai a nenhum evento especial, não há necessidade de nada mais rebuscado.

Pegou um documento, o cartão do banco, o celular e as chaves e saiu. Dispensou a bolsa desta vez. Queria estar mais solta, embora se incomodasse um pouco em ter que carregar o celular que fazia muito volume quando colocado no bolso e nunca cabia inteiro. Acabava tendo que carregá-lo na mão mas era melhor que ficar sem. Sair sem o celular lhe dava a sensação que algo faltava. Queria poder mandar mensagem a qualquer momento, receber mensagens, não ficar incomunicável, poder tirar foto de algo que precisasse. Um item muito importante pra sair sem ele.

Desceu pelas escadas mesmo. Não eram muitos andares e Clara não se preocupava em ter que andar. Foi até a padaria que ficava próxima do condomínio, no meio do quarteirão. Percebeu, lhe acompanhando, o olhar fixo de um homem que estava parado num ponto de ônibus e se sentiu desconfortável. Era comum esse tipo de olhar e ela sempre se sentia da mesma forma como que tendo sua intimidade invadida embora estivesse em público. Não era agradável. Mas o homem ficou lá parado esperando seu ônibus e ela entrou na padaria.

Foi até o balcão e pediu um suco de laranja para “Dão”, como era conhecido o atendente que brincou com ela dizendo que hoje ela havia acordado cedo. Ela sorriu e disse que não tinha nada de errado no horário dela, que era o horário que ela saia todo dia. Ele continuou em tom de brincadeira, como se não tivesse escutado o que ela falou, disse que ele também acordava mais sedo de vez em quando, quando algum vizinho resolvia fazer barulho mais cedo ou quando sua mulher estava “naqueles dias” e lhe acordava mais cedo. Eles riram, ela voltou a afirmar que não tinha nada de diferente no horário dela e que ele era um bobo. Riram um pouco mais. Ela procurou algo no display e pediu um croissant. Tomou seu café da manhã, pagou no caixa e saiu.

Dão a acompanhou com os olhos enquanto ela saia, admirando seu corpo e se imaginando na cama com ela. No balcão um outro homem que tomava um pingado acompanhando seu pão na chapa comentou: “Que gostosa, heim?”. Dão fechou os olhos suspirando e balançou a cabeça levemente de forma negativa e disse por fim “ai se eu pudesse!” e os três riram, o caixa acompanhava a conversa.

Clara seguiu seu caminho. Foi caminhando até a loja de roupas em que trabalhava. Não era longe, ficava apenas a alguns quarteirões. Quinze minutos a pé.

Em frente a uma construção, um caminhão estava parado e dentro dele, o caminhoneiro acompanhou atentamente clara com os olhos mas desta vez, ela não percebeu. Gaudêncio era um homem de meia idade mas já no final desta fase. Seus cabelos claros logo apresentaram fios brancos e, embora não fosse, propriamente idoso, já tinha o bigode completamente branco. Um escovão branco sobre os lábios cobrindo-os quase que por completo mas com um tom levemente amarelado principalmente mais para as pontas por conta do cigarro. Gaudêncio se sentiu realmente muito excitado ao olhar aquela moça jovem andando com seu belo corpo exuberante. Particularmente o movimento de sobe e desce de suas nádegas torneadas perfeitinhas e bem proporcionais naquela calça jeans apertada tornava aquela movimentação irresistível. Enquanto acompanhava o caminhar da moça, Gaudêncio levou sua mão à genitália e a acariciou dando uma apertada de leve. Sentiu vontade de puxar o penis para fora mas não teve coragem. Olhou ao redor para ver se ninguém o observava mas não perdeu tempo e voltou a acompanhar a moça com os olhos, quase que hipnotizado. Em pouco tempo Clara virou uma esquina e saiu do campo de visão do caminhoneiro.

Oswaldo, o segurança, cumprimentou Clara de forma distraída e continuou observando o movimento da rua. Observava sem observar. Na loja a garota cumprimentou duas outras que lá estavam e foi até o final do salão. Bebeu um pouco de água trocou algumas palavras com a moça que estava no caixa e voltou para a frente da loja para aguardar a chegada de algum cliente e tentar vender alguma roupa. O movimento não era muito mas aqui e ali entrava alguém pra perguntar sobre algum modelo exposto na vitrine ou para procurar por algo mais específico.

Já para o final da tarde, o seu José apareceu na loja. Veio comprar um presente para a esposa. Estava passando e se lembrou da loja onde trabalhava Clara. Seu José mora no mesmo prédio que ela com quem gosta de conversar de vez em quando porque Clara sempre lhe dá atenção e, de alguma forma lhe lembra de quando sua filha era ainda jovem. Clara sugeriu um vestido florido pois conhecia dona Maria e imaginava que ela gostaria dele e seu José aceitou a sugestão já que não sabia mesmo o que escolher. Enquanto aguardava Clara fazer o pacote de presente, ficou ali observando aquela garota bonita. Quase se sentiu nostálgico. Tinha por ela muita simpatia e sabia que era uma boa pessoa. Imaginou por um minuto como seria se ela fosse mesmo sua filha e ficou feliz porque moravam próximos um do outro. Clara terminou o pacote, seu José agradeceu, efetuou o pagamento no caixa e se despediu com ternura.

Quando findou o expediente, Clara se despediu de todos e voltou caminhando como de costume. Entretanto, embora não fosse longe, a volta era toda de subidas e Clara as vezes cortava caminho por uma viela para não ter que dar a volta em todo o quarteirão acompanhando a avenida principal. Entretanto essa viela ficava sempre deserta e já começava a escurecer. Nas vezes que passava ali neste horário, Clara ficava sempre apreensiva. Qualquer barulho lhe chamava atenção. De quando em quando, olhava para trás pra ver se ninguém a seguia. Tinha medo de ser surpreendida por algum assaltante ou tarado e, com esses pensamentos na cabeça se distraiu ao olhar para trás por cima de um dos ombros e, por um descuido, deixou cair o celular que carregava na mão.

Olhou novamente para frente, já se abaixando para pegar o celular, preocupada e zangada consigo mesma pela distração quando viu a seu lado um par de tênis de alguém que estava parado ali. Ao levantar a cabeça, assustada, para ver quem era aquela pessoa que, segundo pensava, surgira do nada, viu que a pessoa esticava a mão para ela. Era um homem que lhe estava entregando o celular. “Não quebrou!” disse ele.

Com o coração acelerado e já calculando, de forma inconsciente, uma rota de fuga para sair correndo para o lado oposto, enquanto se levantava, ela viu que ele tinha de fato em sua mão seu celular que a entregava. Ela exitou um pouco mas, por fim, levantou a mão e aceitou o celular agradecendo. O homem a fitava fixamente com um pequeno sorriso no rosto. Ela teve uma má impressão, achou que parecia um sorriso cínico. Olhou para o celular, viu que não havia mesmo danificado nada e agradeceu mais uma vez, se desculpou sem jeito e reiniciou seu caminho. Tentou não olhar para traz mas sentia que o homem estava parado lá lhe observando. Achou estranho a forma que ele a tinha olhado. Apertou um pouco o passo e não descansou até dobrar novamente a esquina.

Felipe ficou mesmo parado lá, olhando aquela moça subindo a viela às pressas. Ele tinha ficado escondido naquele beco a espera de algum desavisado para assaltar mas aquela garota lhe havia atraído a atenção de forma diferente e, como ela estava próxima quando se distraiu olhando pra trás e deixou o celular cair, ele resolveu sair de seu esconderijo, um ponto junto a uma parede, que só poderia ser visto claramente por quem estivesse descendo no sentido oposto. Pegou rapidamente o celular e estendeu o braço para o devolver enquanto observava com atenção. Sentiu um desejo de dominação sobre a moça mas, ao mesmo tempo, uma hesitação já que não fora por este objetivo que ele tivera se escondido ali.

Em sua cabeça, Felipe se via pegando aquela garota e a levando para uma mata próxima dali, onde poderia satisfazer certas vontades que não ousava revelar para ninguém. Na sua mente, via a garota de bruços com as costas desnudas. Enquanto a via subindo célere, pensava essas coisas. Mas dessa vez ele não fez nada. Apenas começou a desenvolver as idéias que já tinham raízes em pensamentos antigos. E de fato, duas semanas depois, Felipe surpreendeu outra garota em um lugar ermo, desta vez ele estava de carro e pode colocar ela no carro e levá-la para a mata onde abusou dela e a matou. Não muito tempo depois, foi pego pela polícia que o identificou por meio de uma câmera de vigilância de uma empresa próxima do local onde pegou sua vítima. Felipe foi preso e morreu na cadeia.

Mas Clara nunca soube de nada disso. Depois que virou a esquina, aliviada, seguiu seu caminho em vias mais movimentadas e chegou com segurança em sua casa. Na portaria, cumprimentou os porteiros (eram dois já que era troca de turno. Um se preparava para sair) e conversou brevemente. Comentou sobre a situação na viela. Enquanto falava, analisava o celular para conferir se não havia mesmo quebrado e ficou feliz em parte porque o celular estava funcionando mas triste porque agora havia um risco pequeno em um dos cantos da tela. Também comentou que se sentiu desconfortável com o olhar daquele homem embora agradecida por ele lhe ter entregue o celular que ela havia deixado cair. Notou algo de estranho naquele homem e também na forma repentina como ele surgiu. Teve muito medo. Os porteiros a aconselharam a não passar mais por ali porque era melhor prevenir do que correr o risco de ser assaltada ou coisa pior. Ela concordou, se despediu e subiu para o seu apartamento enquanto um comentava com o outro “Essa aí é doida. Moça nova e bonita como essa entrar naquela viela escura de noite é muito perigo!”, o outro respondeu “É verdade. Se fosse minha irmã eu teria dado uma bronca nela. Sabe que outro dia minha irmã resolveu sair de noite e…” e a conversa seguiu.

Clara entrou em seu apartamento, fechou a porta em tempo de atender o celular que começou a tocar. Era sua mãe. Conversou com ela e comentou brevemente o acontecido mas sem dizer que havia cortado caminho por uma passagem deserta e com pouca iluminação. Sabia que seria repreendida por isso e quis evitar. Falaram ainda sobre uma ou outra coisa, comentaram sobre a situação de saúde de sua avó já com bastante idade que era cuidada pela mãe e se despediram.

Enquanto conversava, Clara tirou sua roupa e, ao desligar o celular, o atirou em cima da cama. Entrou no banheiro onde se observou no espelho. Insegura, pensou se algum dia algum homem se interessaria por ela. Achava seus peitos pequenos embora tivesse realmente um corpo bonito, se incomodava ao pensar que tinha mais barriga do que deveria ter. Pensou em João por quem tinha algum interesse mas logo se envolveu em questões mais práticas entrando no box e ligando o chuveiro. Na verdade, Clara não sabia que João já pensara muitas vezes em se declarar para ela mas tivera receio pensando que ela o via apenas como um amigo já que se conheciam desde a infância.

Fez sua refeição e assistiu um pouco de televisão antes de se deitar para dormir.

Sonhou que era uma gazela a correr pela floresta. Primeiro encontrou um grupo de hienas ruidosas que a seguiram por algum tempo enquanto ela corria, depois passou perto de um leão que só a viu quando a distância era relativamente grande, desviou o caminho e correu ainda mais rápido. Sentia sua respiração ofegante e se virando na cama, suava. Depois em seu sonho, foi surpreendida por uma pantera que lhe deu o bote quase acertando sua pata esquerda mas que ainda lhe conseguiu tirar sangue da coxa com uma patada. Apesar da dor, conseguiu escapar correndo como nunca antes. Até que chegou a um campado, uma savana ampla. Bem no momento em que o sol se punha em meio a um céu azul com raios cor de laranja muito bonitos. Em algum lugar do céu havia um arco íris. Belos girassóis se espalhavam por meio de uma relva baixa.

Já a madrugada foi de um sono mais profundo e sem sonhos.

Foto de Peter de Vink no Pexels

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Fabio Blanco
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I’m a software engineer, musician, woodworker and casual writer.