O Livro Primeiro da Santa Casa de Misericórdia de Olinda (1682–1859): uma fonte esquecida, uma esperança renovada
Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre o valor histórico e genealógico do Livro Primeiro de Registro de Irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, com abrangência entre os anos de 1682 e 1859. Mencionado em correspondência datada de 1957 e utilizado como fonte por José Antônio Gonçalves de Mello Neto, a obra revela nomes de grande relevância na composição da elite pernambucana, tornando-se uma referência singular para os estudiosos da genealogia regional. Sua existência comprovada até meados do século XX levanta a questão: esse precioso volume ainda estaria preservado?
1. A importância documental da Santa Casa de Misericórdia de Olinda
As Santas Casas de Misericórdia desempenharam, durante os séculos da colonização portuguesa, um papel essencial nas esferas da saúde, caridade e administração social. No contexto genealógico, sua relevância se manifesta nos livros de registro de irmãos — documentos em que eram anotadas as admissões de membros leigos da irmandade, com dados que muitas vezes complementam, ou mesmo substituem, a escassa documentação paroquial disponível.
O Livro Primeiro de Registro de Irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, que cobre quase dois séculos, representa uma fonte riquíssima para a compreensão das redes sociais, familiares e políticas do Recife e seu entorno. Mais do que simples registros nominais, esses documentos revelam o pertencimento a uma esfera de prestígio e influência, por vezes ocultada em outros registros formais.
2. O testemunho epistolar: o livro ainda existia em 1957
Em carta redigida por um pesquisador “Galdino” no ano de 1957 e endereçada ao genealogista Orlando Cavalcanti, encontra-se menção direta à existência física deste livro em Recife. O autor, então envolvido com funções junto ao Patrimônio Histórico local, manifesta surpresa ao saber da existência do referido volume, até então desconhecido por ele. O fato lhe é revelado ao consultar a obra Antônio Fernandes de Matos, de José Antônio Gonçalves de Mello Neto, historiador que também teria extraído dali informações relevantes para seu trabalho.
A carta cuja leitura me foi possível registra que o referido livro ainda existia por volta do ano de 1957. Tal informação não apenas ressalta a raridade do documento, como também evidencia sua relevância concreta para a confirmação de vínculos familiares, identificação de nomes colaterais e reconhecimento de personagens de destaque na história pernambucana.
3. Transcrição da carta
“Amigo Orlando,
Tive pelo Brito a agradável notícia de sua volta do novo Recife de Pernambuco em caráter definitivo. Acho que não é difícil imaginar o que este acontecimento representa para a genealogia pernambucana e, sobretudo, para mim, que no momento acabo de saber da existência de uma preciosa fonte de informações aí no Recife, e não sabia como iria poder consultá-la. A sua permanência aí vem solucionar a questão, e tem qualquer coisa de providencial, pois poderei — assim espero — consultá-la por seu intermédio.
Calcule — conforme pedia Brito para lhe antecipar a boa nova — que o Livro Primeiro de Registro de Irmãos (1682–1859) da Santa Casa de Misericórdia de Olinda (hoje do Recife) ainda existe, e eu não tinha o mais leve conhecimento disto. Só fui saber à luz pela primeira vez, na obra “Antonio Fernandes de Mattos” , escrita por José Antonio Gonçalves de Mello Neto, onde ele menciona logo no início das “Notas — 1993” a sua existência, dando a entender haver colhido nele alguns dados sobre o biografado.
O pior é que esta obra estava no prelo justamente no período em que substituí interinamente o Chefe Distrital do Patrimônio no Recife, em 1957, e neste mesmo ano foi publicada, de sorte que andei perto deste Livro de Registro — sem saber.
Escrevi uma carta a José Antonio Gonçalves de Mello Neto onde, ao mesmo tempo em que lhe enviava alguns dados sobre François Marie Duprat, meu bisavô, e Henry Gibon, terceiro avô de Celina (minha prima e mulher), mandava pedir a sua ajuda no sentido de ver se constavam naqueles registros os nomes das pessoas contidas em uma lista anexa. Depois que já estava tudo pronto, não tive coragem de mandar a carta, pois fiquei receoso do número de nomes que solicitava, e só agora, cerca de dois meses depois — em que Brito, sendo viúvo, me fez em 11 de janeiro passado — levou comigo aquele pedido e ele mesmo mandou pelo correio.
Não obstante ter certeza de que José Antonio é pessoa boníssima e extremamente atenciosa — do que tive inúmeras provas quando aí estive em 1957 — não estou muito certo sobre a possibilidade de ele poder me atender, em virtude do seu estado de saúde, que estive sabendo no Patrimônio não ser muito bom. Sendo assim, pediria ao mercíssimo amigo , que por fazer um serviço a Deus e a mim, mercê aceitasse este encargo, para o qual junto a esta carta uma nova lista de nomes de pessoas que, por serem dinheiristas, é bem provável que tivessem pertencido a esta Santa Casa de Misericórdia.
É evidente que não me sinto perfeitamente à vontade, pois são doze nomes, e mesmo que, por desventura minha, não conste mais da metade, nem por isso diminui em nada o trabalho que solicito; mas qualquer um deles que apareça é tão notável para mim que teria o mesmo efeito de ser premiado com a sorte grande da loteria.
Com exceção de Antônio Baptista Ribeiro de Faria , do Barão de Beberibe e de Mathias da Silva , sobre quem já possuo não só a filiação como muitos outros dados, assim como o Sargento-mor João Baptista Padilha e João d'Abrão Cordeiro , que são colaterais, os restantes são todos avós de meu filho, sobre quem não possuo mais dados do que o próprio nome. Você já imaginou a tremenda sensação de poder fazer certas conexões e, por outro lado, poder prosseguir?
Outra coisa que desejo saber é se o amigo teria, em suas notas sobre os bacharéis em Direito por Pernambuco (Olinda ou Recife), algo sobre:
- João Antônio Fernandes de Carvalho , que foi presidente da Província da Paraíba;
- Claudino Azar da Silva Freire, que suponho seja filho de outro do mesmo nome e que era — disto estou certo — sobrinho do Mamanguape e do Itambé;
- Flávio Freire, neto do Mamanguape;
- Manoel Virgínio Veloso Borges , neto do Itambé; e finalmente, João Luiz dos Santos Coelho , que era neto, pelo que presumo, de Dona Henriqueta Freire e Antônio dos Santos Coelho , seu marido.
O fato de Dona Henriqueta Freire ser uma de suas avós faz com que tenhamos alguns avós em comum, pois sendo ela filha, neta, sobrinha ou sobrinha neta, o fato é que ela descende de João Luiz Freire e Maria Magdalena da Silva. E assim sendo, a título de compensação para tantos pedidos (fraca compensação…), vou dar os seguintes dados sobre este último casal:
Primeiro: nunca consegui saber de quem era filho o velho senhor João Luiz Freire , entretanto sei que ele era natural do então povoado de Mamanguape , onde nasceu em 1766 , e que morreu velhíssimo, pois seu nome ainda é mencionado na relação dos votantes em 30 de outubro de 1849 , no meio dos que “não compareceram ao recebimento das cédulas” nas eleições do 1º Distrito de Paz da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro do Itambé , Comarca da Cidade de Goiana, Província de Pernambuco ( Analecto Goianense , tomo de 1964), não aparecendo mais seu nome nas eleições de 1852 .
Sobre sua mulher, Dona Maria Magdalena da Silva — de quem foi segundo marido — e que era prima-irmã do avô paterno de meu pai, o Coronel Antônio Galdino Alves da Silva, e Sargento das Ordenanças da Vila do Pilar, conheço sua filiação, que vai em anexo, com os seus avós pelo lado paterno — que são precisamente os avós que temos em comum.
Bem, por hoje vou ficar por aqui, para não cansar com tanto.
Peço-lhe prestar meus respeitos à sua Excelentíssima Senhora, e envio um forte abraço do amigo e grande admirador,
Galdino”
4 Ainda existe esse livro? Uma questão em aberto
A existência do livro em 1957 está devidamente atestada. No entanto, não há, até o momento, registro público conhecido sobre seu paradeiro atual. Instituições como o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, a Santa Casa de Misericórdia do Recife e o Arquivo da Arquidiocese de Olinda e Recife são possíveis depositárias do volume, mas nenhuma menção oficial foi localizada em inventários ou catálogos digitalizados.
Essa lacuna reforça a necessidade de mobilização da comunidade genealógica em torno da questão: o livro ainda existe? E, se sim, como podemos acessá-lo, preservá-lo e torná-lo disponível ao público?
5. Considerações finais
A genealogia brasileira carece de fontes primárias bem conservadas e devidamente acessíveis. O Livro Primeiro de Registro de Irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, se localizado e digitalizado, representa uma adição de valor incomparável aos estudos das famílias pernambucanas entre os séculos XVII e XIX.
Este artigo não pretende encerrar o tema, mas abri-lo. Conclama os leitores — pesquisadores, historiadores, arquivistas e genealogistas — a se somarem na busca, identificação e eventual recuperação desse documento. Em um tempo em que a memória se fragiliza com a perda de arquivos, cada gesto de resgate documental é também um ato de cidadania histórica.
Referência consultada:
- Mello Neto, José Antônio Gonçalves de. Antônio Fernandes de Matos: um mascate e o Recife (1671–1701). Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981.
- Correspondência particular (1957), acervo digital particular [Galdino].
- Fonte primária: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:33SQ-G5G3-C8X?view=fullText&lang=pt&groupId=

