Os ramos de Graciliano Ramos — Parte II

Notas Históricas e Genealógicas — Edição 9–2017

por: Eduardo Padilha dos Santos

Graciliano Ramos de Oliveira — ( 1892–1953) — Foto: Reprodução

Estimado leitor,

Havia prometido que nesta segunda parte do artigo, traria mais fatos históricos e fatos familiares relatados por Graciliano Ramos, além é claro, de sua genealogia, pois bem, a genealogia ficara para terceira parte do artigo.

Entretanto, encontrei um relato familiar que chamou-me a atenção, este também histórico, onde Graciliano Ramos, conta sobre sua irmã “natural”, trazendo para nós leitores, costumes e práticas vividas em seu cotidiano familiar, além de personagens citados na primeira parte do artigo, assim reforçando a sua parentela.

O artigo com o título minha irmã natural, foi publicado em 04.02.1948, pelo Jornal Diário de Pernambuco, aonde este faz a referência para o “Diários Associados”.

Entendo que é, de suma importância esse conto de Graciliano Ramos, sobre sua família e em especial a uma irmã que talvez seja pouca afamada ou talvez nunca mencionada na genealogia. Por isso dedico essa segunda parte a reprodução do texto. Coloco entre colchetes [ ], algumas anotações no decorrer do mesmo para situarmos os personagens que também serão listados na terceira parte do artigo juntamente com sua genealogia.

Leiam vale a pena ...

Minha Irmã Natural — (Graciliano Ramos)

Tínhamos feito diversas viagens à fazenda de meu avô [Graciliano Ramos refere-se ao seu avô materno; Pedro Ferreira Ferro — Buíque-PE]. Naquela a mais importante, demoramos três meses — e a família ganhou um membro, da família foi Mocinha. Não perdeu outro. O ganho foi representado por um menino chorão, que morreu cedo. Minha mãe deitou-se na cama de Lastro de couro cru, exilaram-se algumas horas no bosque de catingueiras à beira de figa no braço defumado e alfazema, e submetia-se ás predições de Maria Melo. Tudo se normalizou: minha mãe da lagoa. Quando voltei, o pequeno estava nos cueiros, convalesceu, os capões que engordavam no cercadinho do oitão, pegado ao jardim morreram.

A pessoa que desapareceu sei bem se desapareceu da família, mas é certo que nos deixou. Talvez não a julgassem parenta: as relações dela conosco eram imprecisas. Antes de meu pai casar, Mocinha lhe fora enviada por portas travessas, passara ás mãos de tia Dona, viúva pobre que vivia com ele e tinha duas filhas novas. Viera o casamento, viera a mudança, tia e primas se haviam distanciado e Mocinha nos acompanhara ao sertão.

Era branca e forte, de olhos grandes, cabelos negros, tão bonita que duvidei ser de meu sangue. Parece que não queriam tomar conhecimento dela. Aferrolhavam-na em camarinha tenebrosa. Natural: sempre tivemos camarinhas úmidas, tristes, seguras, fechadas, para as mulheres. Sentava-se a um canto da mesa, na ponta do banco, rezava e comia de cabeça baixa. O constrangimento devia torturá-la, pois no quintal, na cozinha, no alpendre, ela cantava, entendia-se com Rosenda lavadeira. Do corredor para a sala de visitas encolhia-se reprimia expansões, anulava-se.

Minha mãe tratava-a quase cerimoniosamente. As vezes, embirrava com ela: resmungava, largava muxoxos — e nós, viventes fracos, meninos e moleques observamos apreensivos essas manifestações, de agouro ruim. A Mocinha não chegavam dissabores. Era como estranha, hospede permanente, embora se entretivesse em serviços leves: bordava palmas e florinhas em pedaços de morim estendidos em grades, remendava camisas endurecia saias brancas na goma anilada, alisava-as a ferro numa taboa vestida em lençol, suspensa nos encostos de duas cadeiras.

Isso lhe bastava á necessidade de movimento. E as exigências do espirito satisfaziam-se com missas novenas, terços de maio, conversas na prensa de copiar, leitura do romance longo, a história de Adélia e d. Rufo. Na verdade, Mocinha era meio analfabeta, mas a narrativa pisada e repisada, já não apresentava obstáculo. Adélia e d. Rufo mostravam-se. As excelências de d. Bosco, expostos nos folhetos amarelos dos salesianos, é se traduziam com esforços e incerteza.

Ao levantar-se e antes de encafuar-se no quarto sombrio, que tinha apenas uma abertura. Mocinha se aproximava de meu pai, cochichava rapidamente. Ele rosnava uma benção, afastava carrancudo.

Aquilo era um dever, dever irracional que o lisonjeava e diminuía, provavelmente a situação do negócio (gado a morrer, pano barato na prateleira) não lhe permitia engendrar filhos em muitas barrigas, fortalecer-se com o trabalho deles. Reprodutor mesquinho, sujeitava-se a moral comum — e naquela benção engrolada ao amanhecer e no cair da noite havia confissão de que lhe faltava o direito de cobrir muitas mulheres, gerar descendência numerosas. Cobria e gerava, mas devagar e com método. Era um patriarca refletido e obliquo, escriturava zeloso os seus escorregos sentimentais. Mocinha não representava utilidade. Valor estimativo, de origem pecaminosa. E meu pai tentava convencer os outros de que ela não existia.

Difícil. A intrusa se encorpava e embelezava, alargava a roupa, namorava-se ao espelho da sala. E do espelho da saltou á janela, onde Miguel lhe foi segredar ternuras ao lusco-fusco. Miguel individuo importante, dos mais importantes do lugar, não podia ligar-se decentemente a uma filha das ervas. A gente dele proprietária da casa de azulejos, motivo do meu assombro ao apear-me na vila, estrilou. E meu pai estrilou também, considerável e cheio de prosápias, orgulhando-se daquela preferência, mas rigoroso, intransigente, honesto. Fecharam-se e realizaram-se as venezianas; estorvaram-se as relações com o exterior, a menina, elevada à categoria de pessia, ouviu gritos, censuras ásperas, e as duas bênçãos diárias nunca mais lhe foram concedidas.

Pensei mais tarde nas razões que levaram meu pai a repelir um sujeito de boa raça, influente na política local. Talvez desejasse evitar falatórios, que lhe causavam medo. Talvez receasse assumir responsabilidades ir até o fim do caminho. Nunca se comportava assim. Ordinariamente parava, ocupado com minucias, e no jogo do solo, o seu divertimento no inverno, passava de mais, enchia o pires de tentos, só se arriscava quando os trunfos lhe choviam nas mãos. Temia vantagens desconfiava dos lucros rápidos e fáceis, que exige capital e coragem — e após o desastre na fazenda, bichos famintos, morrinha, destruição tornara-se precavido em excesso. Realmente era ambicioso, mas a sua ambição voava curto. Leve amor ás aventuras e riscos, aventuras e riscos medianos, o induzia a vender fiado. Tomava todas as precauções, estudava o freguês pelo direito e avesso, duplicava o preço da mercadoria, e se a fatura se elevava um pouco, suava numa angustia verdadeira. Findos os noventa dias do prazo, esfolava o devedor com juto de dos por cento ao mês. É possível que nesse caso afetivo, ele haja, adotando os seus hábitos comerciais, procedido economicamente. Se acolhesse as boas intenções de Miguel, precisaria mandar fazer enxoval, comprar malas, realizar uma festa com anúncios em banhos, cerimonia de igreja, musica, jantar para dezenas de convidados.

Viram padre João Inácio, o comendador Badega, seu Felix Cursino, Teotoninho Sabiá, Filipe Benicio. Teríamos discursos, teríamos dança. Esses desarranjos, além de carros, não estavam na índole de meu pai. A nossa mesa era exígua, ladeada de bancos duros. Com os anos, aumentou, recebeu hospedes numerosos, mas naquele tempo em geral se acomodavam em redor dela seis ou oito pessoas. E na sala de visitas, retirados o marquesão e as cadeiras, poucos pares conseguiram mexer-se. Meu pai detestava a dança, formalidade necessária em bodas. Certamente se lembrava de culpas nascidas na valsa e na quadrilha — e daí o horror. Havia na existência dele, no escuro do passado, uma Deolinda, a que minha mãe se referia com inveja, Deolinda surgira escandalosamente na quadrilha e na valsa, traíra o marido — e, em consequência, meu pai reprovava com energia o exercício abominável. Minha mãe esqueceu a reprovação e cometeu uma falta ao som da harmônica, dançou com um primo barbado, em casa de meu avô. Arrependeu-se, achegou-me no peito magro, pediu-se que não revelasse a ninguém o desgraçado sucesso. Comprometi-me. Quando nos desaviemos, ameacei-a. Não ligou importância as ameaças: puxou-me as orelhas. Senti a perfídia, mas fui generoso, guardei o segredo. E a paz do casal não se alterou.

Deolinda se esfumava. E, na frieza, Mocinha bordava palmas e flores, engomava saias, ouvia missas. No romance extenso e amarfanhado travara conhecimento com d. Rufo e Adélia. E transformava Miguel num virtuoso galã. O nosso governo totalitário admitia Adélia e d. Rufo, mas não admitia Miguel. Não tentava suprimir a ficção contida nos volumes sujos. Consentia a leitura, reconhecendo a inutilidade dela fora do artigo político e dos lançamentos de borrador. Mas deixando a menina o direito de pensarem tipos de histórias, decidiu conserva-la na virgindade. Obrigava-se a alimentá-la por largos anos, vesti-la, calça-la. Isto representava uma despesa plugada, quase insensível. Gastos extraordinários — lençóis, fronhas, camisas, o vestido branco, véu, grinalda, fita, renda, muita comida, muita bebida música, etc. — pertubar-lhe-iam as finanças. Tia Dona arranhara um casamento infeliz, enviuvara, tuberculosa com duas filhas, Tia Josefa envelhecida longe, solteira. Tia Jovina envelhecia também, e ainda envelhece, coxa e triste, em companhia da última de minhas irmãs naturais. Meu pai distribuía migalhas a essas pobres. Continuaria a sustentar Mocinha, contanto que ela procedesse direito, vivesse calma, na gaiola e na moral. Fervia nela, porém o sangue materno, a solidão afligia-a. E Miguel não esqueceria ser figura de romance. Entenderam-se, apesar da proibição, inflamaram-se, cambiaram acenos e bilhetes. E tudo se resolveu.

A gente de meu avô se reunia na sala, em torno da mesa que tinha nas gavetas bolas de cera e macetes de capar boi, e em cima na gloria, litografias e esculturas, santos e santas Jesus e a Virgem. Minha mãe embalava o filho novo na rede, junto a cama de lastro de couro cru, a luz da lamparina que esmorecia no copo. Maria Melo puxava a ladainha, Maria Melo sabia aquilo, era uma espécie de sacerdotisa — e exercia grande influência nos espíritos. Ciríaco, diversos apaniguados, abatiam-se rezando, os joelhos sobre chapéus de couro. A patroa, caboclas da vizinhança, as negras da cozinha, sucumbidas na esteira, esmurravam o peito e cantavam. Os meus olhos doidos e purulentos escondiam-se num pano preto, lacrimejavam, enxergavam a custo vultos indecisos, as labaredas tremulas das velas. Fragmentos do exterior confuso entravam-me nos ouvidos. Os armadores da rede calaram-se, as vozes enfraqueceram, a ladainha findou, as mulheres ergueram-se num fru-fru amarrotado, alpercatas e chinelos arrastaram-se, o clarão do oratório morreu as paredes sem reboco enegreceram mais.

Súbito um reboliço: Mocinha estava sumida. Procuraram-na por todos os cantos as tochas dos candeeiros de querosene iluminaram os quartos, o deposito de algodão, o quintal, o bosque de catingueiros, o pátio; os gritos de meu avô ecoaram nas ribanceiras do Ipanema. Raptado por vários cavaleiros, num simulacro de força e conquista, foi em conformidade com a praxe, acolhida e vigiada por senhoras idosas. Nesse asilo nenhum mal lhe chegaria, mas estabeleceu-se que moça fugida é moça avariada. Para sanar a avaria absurda, medianeiros verbosos diligenciaram um conchavo entre as duas famílias. Houve as conversações usuais e o acordo não se realizou. Meu pai conservou-se intransigente e digno. Ao regressar a vila, a cheio com a barba crescida e rugas, afirmando que a ingrata significava para ele mão cortada. Frase esquisita. Efetivamente nunca a pequena lhe servira de mão. Meu pai era assim “gostava de expressões enfáticas” e não reparava no sentido das palavras. Mão cortada. Essa amputação o eximia de banhos, véu, grinalda, renda, fita, lençóis, fronhas, jantar. Mocinha casou silenciosamente, sem música e sem dança, na missa das sete. E teve alguns anos de equilíbrio e felicidade.

Tentou reconciliar-se conosco. Enquanto meu pai jogava solo na loja, entrava pelo portão do quintal, ficava uma hora falando baixo com minha mãe, na presença de farinha do alpendre.

Depois veio a mudança e nos distanciamos, Miguel abandonou-a ligou-se a outra do civil. Se não me engano, ligou-se também a uma índia, na lei dos índios, para as bandas do Amazonas. Mocinha desapareceu e não deixou vestígio.

Continuação …

Na terceira parte do artigo demostrarei a genealogia de Graciliano Ramos pela sua ascendência e descendência.

Até a próxima…..

Eduardo Padilha dos Santos

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Eduardo Padilha dos Santos
Meu Legado - Genealogia Comprovada

Product Manager na Venture Negócios — Construindo a nova Era Digital | Data Science | Openbank | Python | Big Data). https://www.linkedin.com/in/eduardo-padilha