A compra do Newcastle pelos sauditas e a guerra do Oriente Médio no futebol

Com a compra do Newcastle, sauditas aumentam as discussões sobre o uso do futebol como uma máquina de propaganda

Rafael Bizarelo
Mezzala
10 min readMay 6, 2020

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Mohammed bin Salman (esq.) e Mike Ashley (dir.) (Foto: AFP)

Durante a pausa no futebol por conta da pandemia de COVID-19, um assunto tem tomado conta das notícias sobre o futebol inglês. A compra do Newcastle United pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita, administrado por Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, está gerando muitas discussões não só pelo dinheiro que pode ser investido, mas por toda a questão geopolítica envolvendo mais uma vez a Premier League.

Mike Ashley, atual dono do Newcastle é o dirigente mais odiado da Premier League. Sua fortuna, segundo a Forbes, está próxima dos 2,7 bilhões de dólares. Ashley sempre foi torcedor do Newcastle e se tornou rico por fundar a Sports Direct, empresa varejista do ramo de esportes de sucesso no Reino Unido.

Ashley não é livre de polêmicas. A Sports Direct já foi acusada, em uma matéria do jornal inglês The Guardian, de péssimas condições de trabalho. A rede britânica BBC denunciou um sistema de punições que levariam a demissão por práticas consideradas erradas pela empresa, entre elas falar demais e demorar muito tempo no banheiro. A Sports Direct é a empresa britânica que mais faz uso dos “zero hour contract”, que dá ao empregador o direito de não ter que oferecer um tempo mínimo de horas de trabalho para o trabalhador, o que gera uma discussão em relação ao cumprimento de leis trabalhistas no Reino Unido, até porque 90% dos contratados da Sports Direct assinaram esse contrato.

Mike Ashley (Foto: Reprodução)

A compra do Newcastle em 2007 por 134 milhões de libras foi o que levou Mike Ashley ao conhecimento público na Inglaterra.

O período de Mike Ashley no Newcastle não levou alegrias para os torcedores do clube. Desde o início, tudo parecia pronto para dar errado, já que a troca de treinadores estava sendo realizada repetidamente e o clube experimentou uma série de 8 jogos sem vitórias, a eliminação na quarta fase da FA Cup para o Arsenal e a 12ª colocação da Premier League na temporada 2007–2008.

Após o fim da temporada, Mike Ashley decidiu vender o clube, mas por alegar que não achou um comprador adequado, optou por não vender. Talvez fosse melhor ter vendido, pois o Newcastle acabou rebaixado na temporada 2008–2009 após perder por 1–0 para o Aston Villa. O clube voltou para a Premier League com o título da Championship, mas sem boas campanhas e com mais um rebaixamento na temporada 2015–2016. O Newcastle contaria com um eficiente Rafa Benítez para levar o time ao título da Championship.

Durante todo esse período, Mike Ashley tentou vender o clube diversas vezes, mas sem obter um comprador adequado. A frustração, afinal, não era só dos torcedores, mas também do empresário, pois ele lucrou com o clube 4 milhões de libras desde 2007, pouco se comparado com o lucro de outros donos.

Protestos contra Mike Ashley (Foto: Reprodução)

Os torcedores do Newcastle não aguentam mais ter Mike Ashley como dono do clube. Atitudes como mudar o nome do St. James’ Park, estádio do clube inaugurado em 1892, para Sports Direct Arena enfureceram a torcida. O nome original, para o Newcastle, Ashley e demais diretores, não era comercialmente atrativo.

Em 2012, a atitude foi repetida, dessa vez com a venda dos naming rights para a Wonga.com, empresa conhecida popularmente por explorar quem é pobre oferecer empréstimos para pessoas em condições de desespero. A Wonga recuou e optou por manter o nome do estádio com St. James’ Park, mas continuou como patrocinadora nas camisas do Newcastle, deixando Mike Ashley em uma posição pior do que a de uma empresa com uma péssima fama.

Mohammed bin Salman (Foto: HANDOUT/Reuters)

O Newcastle continuará agarrado à controvérsias com o seu novo dono. Mohammed bin Salman é o responsável pelo Fundo de Investimento da Arábia Saudita, que irá comprar 80% do Newcastle United, e se tornará o rosto responsável pelo clube inglês.

O príncipe herdeiro da Arábia Saudita é filho do rei Salman Abdulaziz Al Saud, vice-primeiro ministro, ministro da defesa e também é acusado de crimes contra a humanidade. Sua influência na Guerra Civil do Iêmen é vista por muitos como um crime de guerra, pois Mohammed bin Salman, ou MBS, apoia a interferência militar da Arábia Saudita que, ao invés de ajudar a resolver o conflito, apenas piora os problemas humanitários do país.

Além disso, um relatório da CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, acusou o príncipe de ordenar o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, opositor do governo saudita e de Mohammed.

O regime saudita é conhecido por ser extremamente fechado e por reprimir os direitos humanos de forma geral. Mulheres sofrem repressão na sociedade do país e protestantes são presos e condenados a pena de morte.

Com uma imagem manchada diante da opinião pública global, o governo saudita entra no futebol tentando limpar esta imagem. A Supercopas de Espanha e Itália da temporada 19/20 foram realizadas na Arábia Saudita, e gerou críticas e boicotes de emissoras de TV locais por conta dos crimes contra os direitos humanos cometidos no governo do país. A compra de um clube em uma das ligas com maior dimensão para o mundo é a melhor forma dos sauditas entrarem no futebol.

Essa não seria a primeira compra de um clube de uma liga importante da Europa por alguém muito rico do Oriente Médio, nem mesmo a primeira compra de um clube por um governante da região.

Mansour bin Zayed (Foto: Reprodução)

O Sheikh Mansour bin Zayed, além de vice-primeiro ministro dos Emirados Árabes Unidos, irmão do presidente do país e membro da família real, também é dono do Manchester City. Mansour também é irmão de Mohammed bin Zayed, o mentor de MBS, futuro dono do Newcastle.

O dono do City é um dos homens mais importantes do Oriente Médio, e também bastante rico. Abu Dhabi é um dos lugares da região com maior quantidade de barris de petróleo, o que torna o Sheikh muito rico, principalmente por ser o presidente da International Petroleum Investment Company. Seu investimento no clube inglês ocorreu perto de outro investimento na Inglaterra, desta vez no banco Barclays, que passava dificuldades por conta da crise financeira de 2008.

Suas aparências públicas não são nem um pouco comuns, mas ainda marca o seu lugar dentro de um mercado disputado e restrito na Inglaterra. A tentativa de vender uma imagem liberal dos Emirados Árabes Unidos existe ainda que o país não tenha uma democracia ou liberdade de expressão.

Em Manchester, os investimentos foram altos e geraram sucesso. O Manchester City é recheado de craques como Kevin de Bruyne e Sergio Agüero e tem Pep Guardiola no comando, mas recentemente foi punido pela UEFA por violar o Fair Play Financeiro. Os investimentos de Mansour bin Zayed não pararam em Manchester, e o City Football Club, grupo de investimentos do Sheikh voltado para o futebol, já é dono do New York City FC, dos EUA, Melbourne City FC, da Austrália, parte do Girona, da Espanha, e outros clubes ao redor do globo.

A Etihad, que é basicamente controlada pelo governo de Abu Dhabi, é a marca usada para ser propagada pelos clubes. Até mesmo o estádio do Manchester City já leva o nome da empresa. Mansour bin Zayed é o exemplo para MBS de que o investimento pode dar certo.

Nasser Al-Khelaïfi (Foto: Lusa)

O Paris Saint-Germain foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011, tendo Nasser Al-Khelaïfi como presidente da empresa, vinculada diretamente ao governo do Catar. Em documentos divulgados pelo site Football Leaks e publicados no jornal alemão Der Spiegel, era dito que o PSG se tornaria uma espécie de clube do governo catari. O time, segundo o site, recebeu um montante ilegal de 2,7 bilhões de euros para se tornar um dos maiores clubes europeus e ajudar a melhorar a imagem do Catar para a Copa do Mundo de 2022.

De cara, o investimento já foi feito com a compra de jogadores como Thiago Silva, Zlatan Ibrahimovic e Edinson Cavani. O investimento em Paris era alto e contra as regras do Fair Play Financeiro, pois vinham de órgãos fictícios usados como contrato de patrocínio, como o Escritório de Turismo do Catar, mas o clube não foi punido pela UEFA. Em documentos vazados pelo Football Leaks, Gianni Infantino, atual presidente da FIFA, e Michel Platini, ex-presidente da UEFA, encobriram a manobra do Paris Saint-Germain que também foi repetida pelo Manchester City e encoberta da mesma maneira.

A compra de um clube em Paris talvez seja uma das jogadas mais inteligentes de um bilionário do Oriente Médio dentro do meio financeiro do futebol. A capital francesa serve como centro de artes, moda e diversas outras coisas, mas não tinha o futebol como atrativo. O Paris Saint-Germain, antes da compra por parte dos cataris, já havia recebido jogadores como Ronaldinho e Raí, mas estava longe de se tornar o que é hoje.

Torre Eiffel com o anúncio de Neymar e as cores do Paris Saint-Germain (Foto: Reprodução)

A evolução da marca do Paris Saint-Germain é fascinante. Se o Real Madrid montou uma grife em campo com os galáticos, o PSG monta um grife dentro e fora de campo tendo Neymar e Mbappé, dois dos jogadores mais em alta no mundo do futebol. O clube francês se tornou o primeiro do mundo a lançar uma camisa em parceira com a Jordan, empresa que costuma estar vinculada ao mercado dos Estados Unidos e a NBA.

São poucos os clubes do mundo que tem uma construção como a Torre Eiffel para anunciar um jogador. Neymar é um dos principais jogadores em atividade, e sua saída do Barcelona para o PSG foi marcada principalmente pela taxa de transferência de 222 milhões de euros, a mais cara da história. O investimento é alto, a marca foi exposta e se bate de frente com a de Barcelona e Real Madrid, e o sucesso em campo está sendo bem encaminhado. A propaganda para o Catar está sendo bem feita?

Joseph Blatter, ex-presidente da FIFA, anuncia o Catar como sede da Copa de 2022 (Foto: Michael Probst/ Associated Press)

Segundo o jornal britânico Sunday Times, a beIN Sports, responsável pela área esportiva da rede de TV catari Al-Jazeera, pagou 100 milhões de dólares para a FIFA três semanas antes do Catar ser escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022. Além disso, o Sunday Times também denuncia um segundo contrato, este de 480 milhões de dólares três anos depois da escolha. Não é só a suposta compra da Copa do Mundo que vai contra o Catar em 2022, mas também a quebra de direitos humanos em relação aos trabalhadores nos estádios para a Copa.

O que mais pesa contra o Catar, porém, são os conflitos com seus poderosos vizinhos no Oriente Médio, principalmente a Arábia Saudita, com influência do futuro dono do Newcastle, e os Emirados Árabes Unidos, com influência do dono do Manchester City. Os dois países foram líderes de uma coalisão que cortava laços com o governo catari. Todo o comércio com o Catar estava banido, viagens para o país estavam proibidas e o bloqueio afetou de forma profunda o Catar financeiramente, afetando também as obras para a Copa do Mundo.

O conflito entre os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita e o Catar ocorre por conta da relação do governo catari com o Irã, que é historicamente um inimigo dos sauditas. Além disso, a Arábia Saudita acusa os cataris de financiar terrorismo no Oriente Médio, o que chega a ser contraditório, pois este tipo de acusação é historicamente ligado aos sauditas. Hillary Clinton e Donald Trump já criticaram a Arábia Saudita nesse quesito, mesmo com o atual presidente dos Estados Unidos mudando a sua fala ao ser eleito por questões financeiras.

O Catar tem a Al-Jazeera, crítica dos governos de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que acusam o Catar de fomentar a oposição de seus países. Uma espécie de boicote foi criado na Arábia Saudita com a criação da beoutQ, uma emissora de TV que agiu como uma forma de contrabando da transmissão original, que vem direto da beIN Sports, da mesma Al-Jazeera, que tem os diretos para a transmissão de partidas de campeonatos europeus de futebol.

Mohammed bin Salman, Gianni Infantino e Vladimir Putin no Rússia 5–0 Arábia Saudita pela Copa do Mundo de 2018 (Foto: Alexei Druzhinin)

A maior forma de atingir o Catar, porém, é tentar tirar a Copa do Mundo de 2022 de lá. A aproximação de Mohammed bin Salman com Gianni Infantino e as propostas do presidente da FIFA mostram que esse plano está sendo realizado pelos sauditas.

O fundo de investimentos da Arábia Saudita já fez uma proposta para a FIFA dar o direito do país sediar o Mundial de Clubes com novo formato. Além disso, a já rejeitada proposta de aumentar o número de participantes da Copa do Mundo de 2022 para 48 seleções colaboraria para tirar a competição do Catar, já que o país, por ser pequeno, não conseguiria sediar uma Copa tão grande.

A compra do Newcastle ajuda a aumentar temas que estão em alta, e crescer a discussão sobre a mistura do futebol europeu com a geopolítica no Oriente Médio.

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