A história do negro no futebol brasileiro

Veja como a luta pela integração no jogo mais popular do Brasil culminou com a transformação radical da maneira como o esporte era praticado

João Lopes
Mezzala
5 min readJun 21, 2021

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Leônidas da Silva, o Diamante Negro (Foto: Gerência de Memória e Acervo CBF)

Cada vez mais tem-se observado um maior engajamento em relação à luta contra o racismo no futebol. Algumas décadas atrás, manifestações de cunho antirracista antes das partidas, por exemplo, seriam impensáveis, sobretudo em competições europeias, marcadas historicamente pelo racismo escancarado.

Já aqui no Brasil, o futebol — outrora esporte exclusivamente de brancos — foi moldado por pés negros. O futebol foi importado da Inglaterra como um esporte jogado pela elite branca e imigrantes europeus. Sendo assim, os primeiros clubes e ligas brasileiras só aceitavam atletas brancos, relegando os negros somente às ligas clandestinas.

Elenco do Flamengo em 1912 (Foto: Reprodução/Flamengo)

Contexto

No fim do século XIX, período em que o futebol chegava no país, o Brasil vivia o auge do racismo científico, encarniçado na visão eugênica de hierarquização de raças. A miscigenação era vista como um dos entraves para o desenvolvimento do país, que adotou uma política de embranquecimento da população, incentivando a vinda de imigrantes europeus para compor a massa de assalariados que substituiriam a mão de obra negra recém-liberta da escravidão. A esse respeito, há de se destacar que o Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravatura. Somente no ano de 1888, com a assinatura da Lei Áurea.

Como os negros deram a volta por cima?

Esses fatores, aliados à total falta de amparo aos escravos recém-libertos, produziram o cenário desolador para os negros do Brasil no começo do século XX. Isto posto, como os negros assumiram o protagonismo do futebol brasileiro? Uma série de fatores foram primordiais: o primeiro deles foi o novo valor atribuído à miscigenação nas décadas de 20 e 30, sobretudo com a publicação de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, em 1933. Nesse novo cenário, a mistura de raças passava a ser vista como uma singularidade do povo brasileiro. Um fenômeno que viria a diminuir o abismo existente entre as inúmeras raças que compõe o Brasil, ajudando a fundar o mito da “democracia racial”.

Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala” (Foto: Reprodução/Todoestudo)

Outro motivo, mais pragmático, era o “desperdício” por parte dos clubes em negar o acesso aos negros, uma vez que esses apresentavam um enorme vigor físico e, em muitos casos, mais habilidade que os brancos. Nessa época, as regras não permitiam que jogadores fossem remunerados. Entretanto, a maioria da população negra se encontrava na marginalidade, precisando trabalhar. Qual foi a solução? Os clubes — que numa era pós-revolução industrial, em sua maioria, eram associados a fábricas ou polos de trabalho — passaram a contratar trabalhadores que também jogavam bola. Nesse sentido, empregavam funcionários-fantasma que recebiam para exercer um ofício na indústria ou no comércio, mas na prática jogavam bola pelo time da empresa, burlando a regra.

O pioneiro nessa prática foi o Bangu que, em 1905, registrou Francisco Carregal, primeiro negro em um time de futebol no Brasil, associado à Companhia de Progresso Industrial do Brasil-Fábrica Bangu. Seguindo essa mesma linha, o Vasco foi o primeiro a ser campeão com negros no time, em 1923, tendo no seu elenco funcionários-fantasma que “trabalhavam” para comerciantes portugueses.

Elenco do Bangu, em 1905 (Foto: Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos)

Outras remunerações paralelas eram corriqueiras, tal como “o bicho” e a “política dos vales”. O bicho consistia em campanhas de financiamento coletivo realizadas por torcedores, com o intuito de premiar seus jogadores quando atuassem bem. Este apelido foi dado pois a remuneração era baseada no número de cada animal no Jogo do Bicho, muito popular no Rio. O Vasco foi pioneiro nessa prática. Inclusive, a expressão “vaquinha” surge nessa época: no jogo do bicho, a vaca representa o número 25. Dessa forma, em caso de goleadas, a torcida premiava os jogadores com 25 mil-réis, popularizando a expressão “fazer uma vaquinha”. A política dos vales consistia em pagamentos realizados pelos clubes aos jogadores, que era mediados por terceiros. Esses recebiam uma porcentagem dos salários.

A profissionalização do jogo

Desta forma, a proliferação de funcionários fantasma, na esmagadora maioria capitaneada por negros, foi um elemento primordial para a profissionalização do futebol como conhecemos hoje. Atletas negros como Leônidas da Silva e Domingos da Guia foram pioneiros na luta pela profissionalização e inclusão de negros no esporte. Eles incentivavam a fuga de atletas para países vizinhos, onde o futebol era remunerado.

Para conter essa saída de craques, os clubes passaram a pressionar pelo profissionalismo. Com a grande participação de jogadores negros, a luta pelo profissionalismo se concretizou e, em 1933, a primeira partida profissional foi disputada no Brasil. Com o tempo, a integração de jogadores negros só aumentou. Entretanto, vale lembrar que, mesmo assim, o racismo era escancarado.

Goleiro Barbosa no Maracanazo, episódio conhecido pela derrota do Brasil na Copa de 1950 (Foto: Reprodução/ANSA Brasil)

Grande parte da culpa da derrota brasileira na Copa de 1950 recaiu sobre o goleiro Barbosa, que era negro. Os jornais esportivos representavam os jogadores negros como psicologicamente frágeis e pouco racionais. Todavia, o futebol brasileiro só se tornou o que é, por influência dos negros que clamavam por integração. De esporte da elite branca, os negros — com o passar do tempo — tomaram as rédeas e o protagonismo do futebol, que agora passa a servir como pilar na luta contra o racismo.

Referências:

FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

ROSSI, Jones; MENDES JUNIOR, Leonardo. Guia politicamente incorreto do futebol. São Paulo: Leya Brasil, 2014.

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