Berlim: uma grande capital do futebol

Na capital alemã, o futebol vive de forma intensa, rica e de maneiras diferentes que se adequam a cada comunidade da cidade

Rafael Bizarelo
Mezzala
11 min readMar 28, 2020

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Derby entre Union Berlin e Hertha BSC pela Bundesliga 2019 (Foto: Reprodução)

Ao contrário de grandes capitais europeias como Londres, Lisboa, Amsterdam e Madrid, Berlim é uma cidade que não tem um clube como potência para representar o país. Ainda assim, a cena futebolística da cidade não deixa de ser fantástica.

Capital do Reino da Prússia, do Império Alemão, da República de Veimar, do Terceiro Reich e depois dividida entre capitalistas e comunistas por um muro, Berlim tem uma história única. A cidade viu diversas guerras, mas o cenário futebolístico de Berlim é moldado principalmente pelos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial e pela divisão que veio depois.

Guerra Fria

“Soviet flag over the Reichstag” (Foto: Reprodução)

Com a queda dos nazistas e com a conquista de Berlim por parte da União Soviética, a Segunda Guerra Mundial já estava por acabar. Assim, na Conferência de Potsdam, os Aliados decidiram dividir a Alemanha em quatro zonas de ocupação. As três zonas a oeste pertenciam a Estados Unidos, Inglaterra e França, e a zona ao leste pertencia a União Soviética. Em 1949, as zonas dos países capitalistas formaram a República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) e a zona da URSS formou a República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental). Berlim, que estava localizada na Alemanha Oriental, foi dividida entre capitalistas e comunistas.

Mapa dos dois países alemães com Berlim em destaque (Foto: Reprodução)

“De Estetino, no mar Báltico, até Trieste, no mar Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente.”

Winston Churchill

Se um muro ideológico dividia Berlim, em 13 de agosto de 1961, um muro físico começou a ser construído pelo lado oriental da Alemanha. Para o regime, os motivos para a construção eram bastante claros. Entre 1949 e 1961, mais de 2,5 milhões de pessoas fugiram para o lado ocidental e, mais de importante de tudo, havia muita espionagem por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido. Assim, 155 quilômetros de muro foram erguidos para separar os dois lados de Berlim. O muro, porém, não era só concreto e cercas elétricas, mas também era enfestado de soldados e cães de guarda para prender ou matar quem tentasse escapar.

Construção do Muro de Berlim (Foto: Reprodução)

Dos dois lados, havia uma imensa propaganda de ódio ao inimigo, mas na verdade, dos dois lados viviam o mesmo povo, e até mesmo parentes que foram separados pelo muro. A espionagem era enorme e, no lado oriental, a Stasi (Ministério para a Segurança do Estado) estava em todos os lugares e em todos os momentos para saber de tudo.

Em 1989, com o enfraquecimento da União Soviética e a crise dos demais países do bloco socialista, o governo da Alemanha Oriental também começou a enfraquecer. Com a abertura das fronteiras para países de fora do bloco, não fazia mais sentido manter o muro. Com a confusão na fala de um funcionário importante do regime que disse que a decisão seria inadiável e imediata, a população foi até o muro para derrubá-lo na virada do dia 9 para o 10 de novembro de 1989.

A queda do Muro de Berlim (Foto: Reprodução)

Eventualmente, a reunificação alemã era inevitável. Com isso, o desemprego no lado oriental e o grande fluxo de pessoas do leste para o oeste enfraqueceram bastante a parte de Berlim que antes pertencia a um regime socialista.

Ainda após a queda do muro, muitas pessoas optaram por manter a mentalidade da divisão. Alguns alemães do leste ainda não colocam o pé no oeste, e outros do oeste nunca visitaram o leste. É o Din Mauer im Kopf (O Muro na Cabeça). Assim foram criados termos que podem soar ofensivos em Berlim: wessie é aquele de Berlim Ocidental, e ossie é aquele de Berlim Oriental.

Mapa das equipes da Bundesliga na temporada 2019–2020 (Foto: Bundesliga)

Embora o mapa não mostre fronteiras, o único clube da atual temporada da Bundesliga que jogou nos tempos de Alemanha Oriental foi o Union Berlin. O Hertha, embora localizado em Berlim, fazia parte do lado ocidental da cidade, enquanto o RB Leipzig passou a existir somente após a reunificação alemã.

A paixão do torcedor de um clube de Berlim não é pela quantidade de títulos, mas sim pelo o que a equipe representa para a sua comunidade.

O Turkiyemspor é o clube que representa a grande comunidade turca de Berlim, e tem os seus jogos transmitidos na própria Turquia. Algo próximo do Makkabi Berlin, clube da comunidade de judeus. E isso continua com clubes de origem sérvia, bósnia e croata espalhados por Berlim.

Outros clubes são ligados a fenômenos políticos, como o SV Babelsberg 03, que tem raízes ligadas ao socialismo e tem o seu estádio nomeado em homenagem a Karl-Liebknecht, um dos grandes revolucionários comunistas de Berlim.

Torcedores do BFC Dynamo Berlin (Foto:David Crossland)

O BFC Dynamo Berlin é conhecido por ser o clube de maior sucesso da Alemanha Oriental e também por ser a o time favorito de Erik Mielke, ex-diretor da Stasi, e por isso é conhecido como o clube da Stasi. O Dynamo tinha jogadores sendo obrigados a se transferir para lá e também tinha uma grande interferência externa nos jogos a seu favor.

Bandeiras apoiando causas sociais e movimentos anti-fascistas em partida do Tebe (Foto: Tebe Berlin)

O Tennis Borussia Berlin, ou Tebe, um clube que participou da Bundesliga e depois sofreu um colapso financeiro, hoje adota pautas de esquerda e levanta bandeiras em seus jogos.

Hertha BSC

Torcedores do Hertha Berlin (Foto: Reprodução)

O Hertha é inegavelmente o maior clube de Berlim, e os rivais admitem isso.

O objetivo do Hertha é ser o clube da cidade, afinal, eles jogam no estádio de Berlin, o Olympiastadion, o mesmo do ouro de Jesse Owens e da cabeçada de Zinedine Zidane. Eles sempre estão na Bundesliga para chegar o mais alto possível na tabela e rivalizar com o Bayern para mostrar que a grande cidade da Alemanha é Berlim, e não Munique. São dois mundos diferentes na mesma cidade, como se fosse separada por um muro. O Olympiastadion é fenomenal e lotado por fãs de azul e branco, um verdadeiro Coliseu.

Ainda com um grande palco para jogar, parte da torcida do Hertha não gosta de jogar no Olympiastadion, principalmente por ser longe do estádio original do clube, o Die Plumpe, que parou de ser usado por conta de seu tamanho, que era muito pequeno para a Bundesliga. Ainda assim, o estádio com capacidade para 74.475 torcedores tem uma média de 49.271, a quarta maior da Bundesliga, perdendo apenas para Bayern Munich, Borussia Dortmund e Schalke 04.

Grande mosaico no Olympiastadion (Foto: Reprodução)

Em vários cantos da cidade tem um campo para o Hertha treinar, exatamente pelo clube tem torcedores espalhados pela cidade, ao contrário de clubes de pequenas comunidades ou que representam algumas causas.

O Hertha foi, assim como toda a cidade de Berlim, abalado financeiramente por conta da Segunda Guerra Mundial, e por ter feito sucesso durante a década de 1930 e por ter seu presidente, Hans Pfeifer, ligado ao Partido Nazista, o Hertha foi desativado e depois voltou as atividades, mas com o nome de SG Gesundbrunnen, mas voltou a se chamar Hertha BSC após 4 anos.

Com a construção do muro, o Hertha perdeu torcedores e jogadores que moravam no lado oriental, como é o caso de Klaus Taube, um dos maiores artilheiros do Hertha que foi proibido de passar para o lado ocidental de Berlim para jogar e ficou em Berlim Oriental, não podendo mais jogar pelo Hertha.

Torcedores do Hertha levantam bandeiras (Foto: Reprodução)

Os torcedores do Hertha que viviam em Berlim Oriental puderam voltar a assistir uma partida do time em jogos pela Copa da Uefa, mas apenas quando o time de Berlim jogava em um país do bloco socialista, como Bulgária, Iugoslávia e União Soviética, que eram os países com viagem liberada para a população da Alemanha Oriental.

Union Berlin

Torcedores do Union Berlin (Foto: Christophe Gateau/​DPA)

Ao contrário do Hertha, o objetivo do Union Berlin não é ser a grande equipe de Berlim, mas sim o clube de sua comunidade. O Union não existe para representar toda a cidade, e sim Koepernick, um bairro da antiga Berlim Oriental.

O Alte Försterei, estádio do Union, tem esse nome por ser rodeado por uma floresta, e para chegar dentro do estádio, o torcedor deve passar pelo caminho da floresta. Três dos quatro lados do Alte Försterei são feitos para o torcedor ficar em pé, contrariando a maioria das arenas europeias. É algo extremamente diferente do grande estádio de Berlim.

O torcedor do Union Berlin pode falar que construiu o seu estádio. Quando o clube precisava reformar o Alte Försterei para subir de divisão e estava sem dinheiro, seus torcedores deram 140.000 horas de trabalho voluntário para reformar o estádio.

O Union, durante os anos de Alemanha Oriental, foi o clube preferido dos punks e daqueles que protestavam contra o sistema. Ser contra o Dynamo e ser a favor do Union era um protesto contra a Stasi. Além do mais, o Union era o clube dos operários, e por isso são conhecidos como Schlosserjungs, os jovens metalúrgicos.

“Nem todo torcedor do Union Berlin é inimigo do Estado, mas todo inimigo do Estado é torcedor do Union Berlin.”

Revista Eulenspiegel

Mosaico da torcida do Union Berlin (Foto: dpa)

Vivendo com problemas financeiros por muitos anos, o Union Berlin chegou ao ponto de, em 2004, não ter 1.46 milhões de euros para pagar a Federação de Futebol da Alemanha para se registrar na Regionalliga. Na Alemanha, doadores de sangue são pagos pela doação, e assim foi criada a campanha Bluten für Union, que pedia para os torcedores doarem sangue e ajudar o clube a pagar a Federação.

Torcedores do Union Berlin invadem o campo para celebrar o acesso para a Bundesliga (Foto: Bundesliga)

Na temporada 2018/2019, quando disputava a Bundesliga 2, o Union Berlin estava fazendo a melhor campanha de sua história na competição, e precisava apenas vencer o Stuttgart nos playoffs para chegar na Bundesliga. O primeiro jogo terminou em 2–2, e jogando a decisão em casa, o Union Berlin conseguiu segurar o 0–0 e chegou no nível mais alto do futebol alemão na história do clube. Após a partida, uma invasão enorme aconteceu. Milhares de torcedores do Union Berlin entraram no campo para celebrar a primeira participação do clube na Bundesliga.

O Derby

Ultras do Hertha BSC em derby contra o Union Berlin (Foto: Tobias Schwarz/AFP)

A rivalidade entre Hertha e Union é algo bastante recente. O histórico dos dois clubes é de amizade e parceria. Isso ocorreu exatamente por conta da divisão da cidade de Berlim pelo muro, colocando os dois clubes juntos com o desejo de ver a cidade unida de volta. Os dois clubes se chamam de Freunde hinterm Stacheldraht, os amigos atrás do arame farpado. Alguns torcedores do Hertha, por ser do lado ocidental, poderiam pagar um visa e entrar na Alemanha Oriental, e assim iam apoiar o Union Berlin em suas partidas.

A grande rivalidade do Union é, na verdade, com o BFC Dynamo, já que os dois eram os clubes de Berlim Oriental. Já o grande rival do Hertha é incerto, pois pode ser até mesmo o Tebe ou o Schalke 04.

Após a queda do muro, um amistoso entre Hertha e Union foi organizado para celebrar a união da cidade de Berlim. O Olympiastadion estava com cerca de 80.000 torcedores, e todos aproveitam a partida de celebração do povo alemão.

A rivalidade entre os dois clubes conseguiu se esfriar cada vez mais. Enquanto o Hertha jogava a Champions League, o Union estava até mesmo sem divisão para jogar. Era imaginável de pensar que os dois clubes conseguiriam jogar juntos na Bundesliga um dia.

Não foi na Bundesliga, mas sim na Bundesliga 2 na temporada 2010/2011 que Hertha e Union jogaram competitivamente pela primeira vez na história. O jogo terminou com um 1–1, e não mudou nada na rivalidade que estava para ser criada. No jogo de volta, com um gol de falta de Torten Matooshka, o Union Berlin venceu o Hertha por 2–1 no Olympiastadion, entrando para a história do clube.

Na temporada 2012/2013, os dois clubes voltaram a ser encontrar na Bundesliga 2, e mais uma vez aconteceu um empate e uma vitória por 2–1, mas dessa vez para o Hertha, e no Alte Försterei, estádio do Union.

“Me faz querer vomitar ver esses ‘wessies’ celebrar aqui em nosso estádio.”

Christopher Quiring, ex-jogador do Union Berlin

Com o acesso do Union Berlin para a temporada 2019/2020 da Bundesliga, mais dois jogos seriam disputados entre os “novos” rivais de Berlim. Esse seria o primeiro dos dois na história da Bundesliga.

Para celebrar os 30 anos da queda do muro, o Hertha queria marcar o derby para a noite do dia 9 de novembro de 2010, mas o presidente do Union Berlin optou por rejeitar, pois achou que seria fazer um evento maior do que é.

O derby não é sobre socialismo vs capitalismo ou leste vs oeste, e sim sobre uma briga entre irmãos, mas a geração mais jovem está tentando criar uma rivalidade maior e mais violenta, puxando o Din Mauer im Kopf mais uma vez.

Sinalizador é jogado no campo do Alte Försterei (Foto: Reprodução)

O primeiro derby entre Hertha e Union na Bundesliga ficou marcado por muitos sinalizadores na arquibancada e depois jogados em campo, por invasão dos ultras no campo e pelo gol de pênatli de Sebastian Polter aos 87 minutos de jogo para dar a vitória para o Union Berlin por 1–0 contra o Hertha.

A rivalidade entre Hertha e Union cresce cada vez mais e se torna muito mais interessante em uma cidade como Berlim, que realmente vive o futebol intensamente.

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