Como a Primavera Árabe esvaziou os estádios no Egito?

Jogos de futebol no país são realizados sem presença de público há 10 anos após uma terrível tragédia em meio a um contexto revolucionário

Luan Fontes
Mezzala
5 min readNov 11, 2021

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Jogos da Liga Nacional não têm torcida desde 2012 (Foto: Reuters)

O Norte da África pode não ter países com o futebol como o principal esporte, mas muitos devem saber que a cultura futebolística nesses lugares é bastante peculiar, especialmente por conta de sua cena de arquibancada extremamente passional. Provavelmente, quem acompanha páginas sobre torcidas na internet já deve ter visto algumas imagens de torcidas em Marrocos, Tunísia, Argélia ou Egito, realizando festas absurdas com pirotecnias, coreografias, mosaicos e cantos fervorosos. Os ultras — torcedores organizados — da região não deixam de ser perigosos, mas no Egito, a iminência de seu perigo aos olhos do Estado, fez com que este proibisse torcidas no país. Uma tragédia na qual uma praça que a princípio era de futebol, tornou-se uma praça de guerra.

A cena ultra no Egito

O futebol movimenta muita paixão em terras egípcias e no Norte africano em geral. No geral, a cena ultra iniciou-se no meio da década de 2000. Já na virada do século XXI surgiram as primeiras torcidas organizadas, mas foi em 2007 que se iniciou uma revolução na arquibancada egípcia. Neste mesmo ano se fundaram os dois maiores grupos ultras do país, e possivelmente, da África: o Ultras Ahlawy do Al Ahly e o White Knights do Zamalek.

Desde o começo, o movimento ultra no Egito se mostrou muito forte, tornando do cenário egípcio um dos mais atrativos no futebol mundial, com o desenvolvimento de uma cultura de arquibancada incorporada pelo que se via na América do Sul e em algumas regiões da Europa — os Balcãs e a Grécia, com músicas, coreografias, pyroshows etc.

De certa forma, é possível dizer que a cultura de arquibancada no Egito já era uma realidade.

A primavera chegou

O ano de 2011 foi um grande marco na história do mundo árabe. Tudo começa na Tunísia, quando um vendedor ambulante de frutas queima seu próprio corpo após ter mais uma vez suas mercadorias apreendidas pela polícia. O ocorrido desencadeou em uma série de protestos contra o governo ditatorial no país, que estava no poder há 20 anos. Dessa forma, a onda de manifestações contra ditaduras se espalhou pelo Norte da África e Oriente Médio, chegando também no Egito. Diversos atos foram marcados por mensagens em redes sociais e milhares de pessoas foram às ruas para se manifestarem contra a ditadura de Hosni Mubarak. Os principais atos ocorreram na capital Cairo, mais precisamente na Praça Tahir. Entre os tantos manifestantes, estavam presentes ultras do Al Ahly, Zamalek e outros clubes, mesmo que de maneira indireta. Os atos tiveram repressões brutais, que deixaram dezenas de mortos e feridos.

As próprias torcidas não são órgãos necessariamente políticos, porém são politicamente e socialmente ativos — não só no Egito, mas também em outros países do Norte africano. Durante as manifestações, os ultras se mostraram claros com o seu posicionamento contra o governo de Mubarak, fazendo linha de frente nos confrontos contra as forças de segurança. A forte atividade desses grupos nas manifestações que derrubaram uma ditadura de 30 anos, fez com que eles se tornassem alvos de quem ainda estava no poder. O papel desses torcedores não foi esquecido e os ultras passaram a ser vistos como uma ameaça às autoridades.

Da tragédia à inimizade com o Estado

1 de fevereiro de 2012. Um ano após a queda de Mubarak, jogavam pelo Campeonato Egípcio, Al Masry e Al Ahly em Port Said. O mandante vencia por 2 a 1. No fim do jogo, torcedores do Al Masry invadiram o campo e atacaram violentamente a torcida visitante com facas, paus, pedras, bombas e fogos. Mesmo com a presença de policiais e forças armadas, 500 ferimentos e 75 mortes não puderam ser evitadas. De acordo com testemunhas e jornalistas locais, as forças de segurança fecharam os portões do estádio, deixando os torcedores do Al Ahly sem saída. Muito se especula que o massacre foi planejado.

Fato é que este foi foi o primeiro grande alerta no futebol egípcio. 10 pessoas foram condenadas à morte e outras 22 pessoas foram condenadas a dez anos de prisão. Pela primeira vez, os estádios no Egito estariam fechados.

Somente em 2015, houve uma segunda chance para as torcidas no Egito. O primeiro jogo com público foi entre Zamalek e Enppi, e os Ultras White Knights marcaram forte presença. Mas o que tinha tudo para ser uma festa, virou um novo desastre que foi o estopim para as torcidas no país. 28 pessoas morreram em um tumulto após um confronto com a polícia nos portões do estádio. As autoridades culparam, obviamente, os ultras. Do outro lado, a torcida culpou o presidente do clube, Mortada Mansour, por planejar o conflito, visto que foi ele quem pediu para que o público retornasse aos estádios. Mansour entrou com uma ação judicial contra as torcidas e o tribunal afirmou que os White Knights se juntaram ao partido Irmandade Muçulmana — que foi banido do Egito após a derrubada do presidente eleito Mohamed Morsi, em 2014 — para incitar a violência e os ultras foram estigmatizados como uma organização terrorista. O Estado repreendeu fortemente os grupos, prendendo mais de 3.000 torcedores por todo o país, incluindo todos os líderes.

Hoje, todos os jogos de competições nacionais no Egito são realizados sem público. As únicas exceções são os torneios internacionais, como Champions League Africana, e jogos da seleção nacional. Em 2019, o país sediou a Copa das Nações Africanas, o equivalente africano à Copa América (América do Sul) ou a Eurocopa (Europa).

O estádio Borg El Arab, em Alexandria esteve lotado, com mais de 80.000 pessoas, para o histórico jogo entre Egito e Congo., na qual, os donos da casa garantiram a vaga na Copa de 2018, com gol de pênalti de Salah no final (Foto: Reprodução/Wikipedia)

O que se pode entender através da relação Estado-futebol?

Estado e torcidas nunca entraram em um comum acordo — e dificilmente entrarão . Por isso, não é toda vez que vemos os estádios egípcios com alma. Mas o que vemos no futebol do Egito não passa apenas pela tragédia, senão é mais um caso no qual política e futebol andam lado a lado, como foi visto na relação dos ultras com a Primavera Árabe e a proibição/perseguição do Estado egípcio, que excluiu o que existe de mais bonito no esporte. É o futebol influenciando política e vice-versa.

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Luan Fontes
Mezzala

Apenas um rapaz sul-americano que sonha em ser jornalista esportivo, quem sabe, narrador