Ficou marcado na história

Há um ano, finalista da América. Com o espírito de Zico, o Urubu alçava voo. Festa na favela, festa no mundo inteiro

Danilo Jordão
Mezzala
7 min readOct 23, 2020

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(Foto: Twitter/ Flamengo)

Não escrever como torcedor é a tarefa mais difícil que já me foi dada. O sonho de ser um jornalista esportivo coloca na minha cabeça que em algum momento eu tenho de me separar da minha maior qualidade, isto é, amar. A paixão por uma instituição -como um Clube- pode parecer, para quem não sente, um completo exagero. Até pra mim, um apaixonado pelo esporte bretão e ainda mais pelo Clube de Regatas do Flamengo, sofro com a expectativa de, em algum período da minha vida, parar de entender como o simples toque de um objeto esférico na rede representa tanto para o meu dia a dia. Ocupa meu tempo de uma maneira…Difícil até lembrar um dia que não vivi futebol. Pelo fato de que esse dia nunca existiu. Mas, quando você aproveita ao máximo, todo esse tempo ganha uma razão. Ele não atrapalha sua vida, mas lhe oferece uma. É assim para mim, para o meu vizinho que grita gol do Fluminense na janela, é assim para milhões, estimulados por uma paixão jamais explicada. Creio que o significado da vida são as experiências que ela proporciona, porque as paixões fazem da vida o que ela é. Dentre as maiores paixões, o “Meeengoo” entoado por um Maracanã abarrotado de gente, as bandeiras carregadas por nobres guerreiros em mais um dia de batalha vencem qualquer outra. Mas dentro desse sentimento único está o dia 23 de outubro de 2019. O dia que a favela cantou ao mundo inteiro a alegria de ser Rubro-Negro. O dia que o Flamengo voltou a decisão da Libertadores da América.

As expectativas em cima da partida começaram logo quando Gabriel Barbosa recebeu de Bruno Henrique, em um dos contra ataques mais letais da história do clube. As passadas largas do camisa 27, com o pedido certeiro de Galvão para o passe, imortalizaram o lance. 35 anos fora de uma semifinal, o Urubu voltava para batalhar contra, justamente, o Imortal. O Grêmio vinha de uma derrota amarga para o River Plate na edição anterior e, dois anos antes, havia conquistado o continente pela terceira vez. Desafio difícil. O vermelho e preto desfilava bom futebol, líder disparado do campeonato nacional e -o mais importante- os jogadores ressucitaram o espírito Rubro-Negro. A Raça, elemento fundamental para um Flamengo vitorioso, aliado à técnica, do futebol vistoso, ofensivo, avassalador, englobavam o que estava pronto para se consagrar como “o segundo melhor Flamengo de todos os tempos”.

Foto: Reprodução

No primeiro jogo, um show. Arena lotada, festa gaúcha com direito à sinalizadores, bobinas de papel e muita música no mais famoso estilo barra brava. A cantoria aos poucos diminuiu do lado esquerdo da visão das cabines. O Grêmio via o Flamengo jogar, a Nação não parava e, entusiasmada, vibrou com o gol do maestro Éverton Ribeiro, logo no ínicio. O árbitro de vídeo, o olho que tudo vê, anula o gol, para o alívio dos azulados. Nada mudou. Flamengo afronta e marca, desta vez com Gabi, frango do Garoto do Ninho Paulo Victor. A Nação comemora e, mais uma vez, do alto das arquibancadas, reclama de outra anulação. Impedimento milimétrico. Pra mim, tomado pelo nervosismo de um torcedor barulhento em casa, mesma linha. Os gremistas suspiram, mas temem o que pode acontecer mais para frente.

No segundo tempo, as passadas largas de Bruno Henrique lhe dão a oportunidade de decolar, como um Urubu-Rei, para toda a eternidade. O perfeccionismo de Arrascaeta permite tudo, menos o erro. A cabeçada do Speed Wonder é inevitável. Dessa vez, sem revisões externas. Deveria ser crime invalidar um tento de Bruno em 2019, o melhor ano de um jogador vermelho e preto no século. 1 a 0 Flamengo. Já cansado de falar sobre, fizemos mais um. Perfeitamente anulado, para variar. O placar era magro, apesar do espetáculo apresentado. Neste momento, o torcedor sente uma dor na camada mais profunda do estômago, pensando que algo não está certo, porque o espírito Rubro-Negro também ataca contra. Não deu outra. Grêmio empata, esperançoso. O Flamengo abala? No Maraca a história é diferente.

Chega o tão esperado 23 de outubro. Sabe aquele dia que você acorda estranho, exaltado, nervoso, feliz, tudo junto? Coisas que só o amor faz, era dia de Maracanã. Para garantir meu lugar, foi preciso ir três dias à Gávea. Burocracias à parte, equipei-me para o tão sagrado jogo, o mais importante -até o momento- dos meus 17 anos de vida. Bebia água constantemente para nada me impedir de fazer presença no espetáculo. Cinco horas antes da partida, peguei o “Manto da sorte” — camisa número dez de Zico, de 1987, arrumei o boné, pochete com o Rio Card e o ingresso, e saí em busca da classificação.

Movimentação cheia no metrô. Hora do rush, cidadãos saindo do trabalho. Alguns já expressavam seu amor vestindo a armadura, mesmo os que não estariam presentes. No Maracanã antigo, caberia todo mundo. Passei todo o trajeto imaginando como seria o jogo, se eu veria a história acontecer diante dos meus olhos e sairia emocionado, feliz. Só tinha uma certeza: a Nação jogaria junto, até por eles, se fosse preciso. O apoio do torcedor, muitas vezes, vale mais que um time repleto de craques. Por sorte e competência, tinhamos os dois. Na rampa da Uerj, o mar rubro-negro. Os diversos gritos de “camisa! chapéu! bandeira!” dos conhecidos comerciantes aumentavam o clima de final. Todo ser vivo fã de futebol tem de viver os arredores do Maracanã em dia de jogo do Flamengo.

Arquibancada lotada 3 horas antes do jogo. Torcida rival com seus trapos e a gente com surdos de primeira, segunda, terceira. A festa crescia, a Nação comandava. Saiu a escalação, loucura. Cada atleta foi endeusado pelo povo. Diego Alves; Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Mari e Filipe Luís; Arão, Gerson e Arrascaeta; Éverton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol; Técnico: Jorge Jesus. Escalação de campeão, todos conheciam “do goleiro ao ponta esquerda”.

Os sons de “Meeengoo” na entrada dos gladiadores ditavam o ritmo que teria o jogaço. Logo foram substituídos por “Vai pra cima deles Mengo”, cultura ofensiva da torcida rubro-negra. A partida iniciou truncada, com a primeira oportunidade clara de gol para os visitantes. Diego Alves salvou o que poderia ser um começo de jogo extremamente preocupante. Lisonjeado com a Nação, às vezes parava de olhar para o campo e notava as diferentes expressões das pessoas ao meu redor. A maioria nervosa, outros maltratavam suas cordas vocais, outros faziam como eu, admirando a experiência. Válido ressaltar que em momento nenhum deixei de gastar todas as minhas energias. Possuo uma ideologia parecida de alguns torcedores organizados: o time pode até contagiar a torcida, mas a torcida tem a obrigação de contagiar o time. Não estamos lá para presenciar, estamos para fazer acontecer. E aconteceu.

Aos 41 minutos, Éverton Ribeiro rouba a bola na ala esquerda de defesa. O maestro entrega para Bruno Henrique, que carrega a bola. Tal velocidade merece destaque, mas ainda mais importante é a movimentação de Gabriel. O centroavante recebe passe açucarado que Kannemann não conseguiu interceptar: segundos preciosos lembram o período de tempo que dura o infinito, essa é a situação do torcedor entre o chute de direita de Gabi, o rebote de Paulo Victor e a explosão da bola nas redes arrematada pelo meu ídolo, Bruno Henrique. As lágrimas derramadas por meros mortais no Mário Filho transbordariam uma caixa d’água com litros de ocupação naquele exato momento. Nada estava decidido, mas fomos para o intervalo com a sensação de quero mais.

Os craques voltaram a todo o vapor. Aos 2 minutos, Gabigol marcou o gol mais bonito da competição. O menino nem sabia o que o futuro lhe reservara, mas o espírito rubro-negro sempre foi forte nele. Pouco depois, o terceiro. Bruno Henrique sofreu pênalti, Gabi converteu com categoria.

Gabigol comemora seu primeiro gol (Foto: Flamengo/ Twitter)

Classificação assegurada, sonho realizado. Meu time estava na final da Libertadores da América e ainda faltavam 30 minutos de jogo. Cabia mais. Pablo Mari- melhor zagueiro que vi in loco- e Rodrigo Caio, fizeram um cada. CINCO para o Flamengo, ZERO para o Grêmio. Na minha opinião, a terceira melhor exibição da história do clube, atrás dos jogos contra o Liverpool e Botafogo, em 1981. Na saída do Templo, a ficha caiu para os torcedores. Alguns em lágrimas, outros vibrando, abraçando desconhecidos…Nessa hora todos são melhores amigos.

Clubismos à parte, desejo que todas as pessoas do mundo tenham uma experiência parecida com a minha, com a do torcedor rubro-negro, em 2019. O ano dos impossíveis, onde pude me encontrar em cada coração no Centro da cidade, na comemoração do título. O apaixonado sentiu que todo o sacrifício valeu a pena, cada derrota no campo, na vida, fez com que ele valorizasse as pequenas e, se possível, grandes vitórias. Esse 5 a 0 vai para galeria dos momentos eternos, assim como a Glória conquistada 1 mês depois.

Festa na Favela (Transmissão: Rede Globo)

“E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.” — Nelson Rodrigues

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Danilo Jordão
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O que veio primeiro: o sorriso ou o mundo? Na felicidade tudo se cria.