Margaret Thatcher: a responsável pelo assassinato do futebol britânico

A falecida primeira-ministra do Reino Unido foi fundamental para a modernização do futebol no país, e por consequência, sua elitização

Luan Fontes
Mezzala
8 min readNov 5, 2020

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(Foto: Getty)

Estádios modernos, gramados que parecem um tapete, jogos disputados, futebol de altíssimo nível. Tudo parece ser perfeito, menos a atmosfera nos estádios. Em uma liga onde os ingressos estão entre os mais caros, os estádios são literalmente um teatro ou um biblioteca. Querendo ou não, estamos acostumados a ver o futebol inglês dessa forma, mas o que muitos não sabem, é que isso é um fruto de uma mudança drástica na cultura do futebol da terra da rainha, e tem tudo a ver com o governo de uma das chefes-de-estado mais controversas da história.

Sim. O futebol inglês já teve atmosferas bem mais vibrantes e seus estádios já foram bastante temidos. Lugares como Anfield, Old Trafford, Elland Road , The Den etc. já foram praças de futebol onde se tinha medo de pisar. Havia cantoria, vibração e muitas bandeiras que davam vida e cor às arquibancadas inglesas. Eram um lugar de confraternização por m amor comum, e onde a maior entidade do jogo, junto ao gol, mostrava o seu mais puro estado espiritual. Porém, o ambiente se tornou um pouco mais hostil nos anos 80, quando a paixão pelo clube para uma minoria de pessoas se traduziria em estar disposto a brigar e matar em nome das suas cores. Crescia o hooliganismo.

Torcida do Manchester United nos anos 80 (Foto: Reprodução)

A violência tinha se tornado algo constante, afastando os torcedores dos estádios. Os públicos na época chegaram a ser os mais baixos da história do futebol inglês. Havia uma sensação de que os estádios eram lugares onde se corria ris co de morrer, com torcedores altamente bêbados e loucos, alguns deles atirando dardos (jogo comum nos pubs), fora as condições precárias de alguns estádios.

O cenário era perfeito para uma possível intervenção do governo de Margaret Thatcher sobre o cenário futebolístico, combatendo a violência na marra. Pessoas poderosas no Reino Unido diziam que os torcedores eram vistos como nada além de hooligans, que deviam ser policiados de forma altamente rígida.

O futebol e os torcedores também eram problematizados, visto que as torcidas organizadas inglesas (que lá são chamadas de firmas) tinham bastante influência dos sindicatos, portanto, a inimizade com o governo britânico conservador não era mera obra do acaso, sem contar que muitos dos clubes britânicos são oriundos de sindicatos, entre eles, grandes clubes como Manchester United e Arsenal, por exemplo. O governo via na violência dos hooligans, a brecha perfeita para diminuir a influência destes grupos.

Foi em meados dos anos 80, que trágicos episódios de violência ligaram o alerta das autoridades, dando início a uma perseguição mais severa. Em 1985 vieram os primeiros grandes incidentes: o primeiro foi com o incêndio no estádio do Bradford City durante um jogo, que matou 56 torcedores, e a tragédia no estádio de Heysel, em Bruxelas, na qual 93 torcedores da Juventus morreram, na final da Champions League entre a equipe italiana e o Liverpool. os torcedores dos Reds foram considerados culpados. Como o problema eram os hooligans, a Uefa puniu os clubes ingleses com uma suspensão de cinco temporadas sem jogar competições europeias e seis anos para o Liverpool. Vale destacar que o estádio apresentava péssimas condições, além da má distribuição de ingressos e a superlotação do local. Ou seja, por mais que os estádios estivessem velhos e caindo aos pedaços, o governo de Thatcher só tinha olhos para uma coisa: os hooligans. O alerta já estava ligado, mas o estopim ainda estava por vir.

A confusão entre italianos e ingleses na final da Champions de 85 que terminou na morte de 56 juventinos (Foto: Reprodução)

Em 1989, o governo tentou implantar um sistema de identificação para permitir o ingresso ao estádio, no qual era obrigatório que os torcedores tivessem um cartão de identificação. Já houveram tentativas de implantar sistemas como esse aqui no Brasil, mas não deram certo e na Inglaterra não foi diferente. Mas a medida também foi abortada porque no dia 15 de abril de 1989 aconteceu o maior desastre já visto em arquibancadas inglesas. No estádio de Hillsborough em Sheffield, a semifinal da FA Cup entre Liverpool e Nottingham Forest se eternizou por razões das mais tristes possíveis.

O estádio de Hillsborough era frequentemente usado para sediar grande eventos futebolísticos como semifinais de FA Cup. Mas desde o início da década de 80, o local já não apresentava condições adequadas para receber grandes jogos, visto que não apresentava condições de segurança adequadas para tal. Já haviam ocorrido incidentes no estádio envolvendo aglomeração, um deles foi no jogo entre os mesmos times, Liverpool e Forest no ano anterior, o que dava a todos um alerta de que algo trágico poderia acontecer, menos para o governo Thatcher, é claro.

O setor reservado para a torcida do Liverpool na partida contra o Forest tinha capacidade para 14.000 pessoas, mas naquele dia tinha 3.000 scousers só no anel inferior, onde cabiam 1.600. O alambrado da arquibancada criava um limite (naquela época eram bem comuns as invasões de campo, por isso haviam alambrados nos estádios), fora que 5.000 torcedores estavam do lado de fora. O setor já estava abarrotado e qual foi a “brilhante” solução da polícia? Abrir os portões para liberar a entrada dos torcedores do lado de fora. Começava ali o caos, a arquibancada virou um curral sem saída.

Torcedores do Liverpool imprensados na arquibancada (Foto: Getty)

Como se não fosse o bastante errar na logística, a polícia sequer percebeu que havia superlotação e tentou dispersar os torcedores, visto que achavam que era confusão arrumada por hooligans. Ao invés de salvar vidas, a polícia quis conter hooligans, o que não condizia nem um pouco com o que acontecia. O resultado foi trágico: 96 torcedores do Liverpool morreram pisoteados e tanto a polícia, quanto o governo Thatcher e os grandes veículos de imprensa (sobretudo o tabloide The Sun) colocaram a culpa nos próprios torcedores. Só em 2012 que as autoridades foram culpadas após a derrubada do antigo relatório oficial.

Capa do The Sun no dia após a tragédia. Nela é dito que torcedores roubaram objetos das vítimas e urinaram nos policiais (Foto: Reprodução)

Por apresentarem versões absurdamente mentirosas, tanto o periódico The Sun quanto a primeira-ministra não são bem vistos na cidade de Liverpool. O periódico sensacionalista, inclusive foi boicotado e sequer é vendido em Merseyside. E a relação entre torcedores do Liverpool e Thatcher nunca foi lá tão boa, pelas mesmas razões. Aliás, há um canto da torcida do Liverpool que expressa bem essa relação de desgosto:

“Quando Margareth Thatcher morrer, nós vamos fazer festa”

Torcedores do Liverpool estendem uma faixa com os dizeres: “Você não se importou quando mentiu. Nós não nos importamos se você morreu”

Após a tragédia, foi elaborado o documento que matou de vez o futebol na Inglaterra, o Relatório Taylor. Nele foram elaboradas algumas das bases que formariam a Premier League, como extinção de fossos e alambrados, cobertura em todos os estádios, aumento dos preços dos ingressos, obrigatoriedade a assistir aos jogos sentado, além do fim do subsídio estatal e a profissionalização de todos os clubes. As soluções de modernização por parte do governo de certa forma trouxeram mais segurança aos estádios ingleses, mas arrancou a essência do torcedor inglês. O aumento do preço dos ingressos tirou dos estádios os torcedores com condição financeira mais baixa, que tende a ser mais fanático e verdadeiro. O filtro generalizado feito com base na classe social, distanciou o apaixonado e atraiu quem quer ter uma experiência de consumidor. O jornalista Paul Maclness destacou em um dossiê no The Guardian que “quando as pessoas pagam mais dinheiro, querem ser entretidas”.

Torcedores do Tottenham sentados no White Hart Lane (Foto: Reprodução)

Um tipo de ingresso, bastante comum e criticado no futebol inglês, que é adotado por todos os clubes, é o carnê de temporada, o famoso “season ticket”. Por mais que esse tipo de ingresso fidelize o torcedor, acaba mantendo as mesmas pessoas no estádio, não dando chance para que outros apaixonados possam cantar mais alto. Ou seja, no futebol inglês há mais consumo do que paixão, visto que quem quer cantar e incentivar, não pode fazer isso, porque o preço do ingresso o tira do estádio, graças a uma elaboração de um sistema, que confunde o pobre como um hooligan, feito por pessoas que sequer tiveram ligação com o futebol. Essas rígidas e exageradas limitações ao torcedor inglês acabaram destruindo a atmosfera.

Não para tanto que é até mais normal ouvir a torcida visitante , geralmente formada por torcedores mais apaixonados, cantar mais alto, senão calar a mandante. Um dos cantos mais comuns nas bancadas inglesas trata esse silêncio fúnebre com certo tom de ironia:

Is this a Library? (Isto é uma biblioteca?)

Conhecidas por serem as mais fanáticas da Inglaterra, as torcidas de Liverpool e Crystal Palace resistem bravamente a esse fenômeno no futebol inglês. É bem comum passar em Anfield Road e Selhurst Park(estádios que ainda pssuem uma boa atmosfera) e ver faixas de protesto e um pouco da preservação à cultura do torcedor

À esquerda, vemos a torcida do Liverpool estendendo uma faixa que diz “O futebol sem os torcedores não é nada” e na direita torcida do Palace fazendo festa com bandeiras e adereços (Fotos: Reprodução)

Margaret Thatcher disse uma vez que “não existe sociedade”. Com essa declaração é possível compreender que além de não entender sobre o que é uma sociedade, Thatcher não entende o futebol como um fenômeno social e o que ele realmente provoca nas pessoas e como ele faz parte da vida social de tanta gente. É certo que a violência diminuiu muito, mas essa erradicação envolveu mais praticidade do que senso.

A Inglaterra foi uma das pioneiras na elitização do futebol e já fazem trinta anos que o que é para ser um local de confraternização, na verdade é um teatro onde não há torcedores, mas espectadores de um recital caro.

E nisso sim, há a quem culpar…

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Luan Fontes
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Apenas um rapaz sul-americano que sonha em ser jornalista esportivo, quem sabe, narrador