O colorido do futebol ser levado da maneira mais prazerosa possível

Em entrevista exclusiva ao Mezzala, Josué Machado — Presidente da Liga Nacional de Futebol Gay — conta como funciona a Champions Ligay, as dificuldades de carregar esta bandeira e como o evento cresce desde sua criação

CaiN
Mezzala
8 min readNov 15, 2020

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Foto/Reprodução: LGNF — Ligay Nacional de Futebol

A realidade futebolística que vivemos — vou me limitar neste texto — no Brasil é dogmática. O futebol masculino não denota o verdadeiro significado da expressão. O homem futebolista segue um — ouso dizer — padrão comportamental pré-definido há muitos anos.

A palavra ‘masculino’, segundo o dicionário, significa: Próprio de ou relativo a macho.

A grande questão é que o futebol não é inclusivo, muito menos aberto a outros padrões comportamentais que não sigam o que já consta nas Tábuas dos Mandamentos do Futebol. O público os enxerga como algo brutalmente ofensivo ao atual sistema delimitado — talvez até indiretamente — pela enorme fundação futebolística.

O preço disso é a quantidade significativa de homens marginalizados enquanto outros andam livremente com seus vários processos correndo na justiça brasileira, ou até mesmo na justiça estrangeira como tivemos um caso recente.

O único modo da carreira de um jogador ser destroçada é se ele assume a homoafetividade.

Tentando driblar esta parede do preconceito, a Ligay Nacional de Futebol vem sendo referência na organização de campeonatos LGBT. Desde 2017 em atividade, o campeonato cresce cada vez mais.

Em entrevista especial ao Mezzala, Josué Machado, atual presidente da associação — contou um pouco de como funciona o evento e quais são as maiores dificuldades, modificações e detalhes deste campeonato tão importante para o atual cenário do futebol:

  • Josué, pode me contar um pouquinho como funciona a organização dos eventos? São — sem contar este ano pela pandemia — realizados com que frequência no ano?

Então, a organização funciona da seguinte forma: as equipes se candidatam para organizar o evento e tem o apoio institucional da Associação Ligay para criar o campeonato que é intitulado de Champions Ligay. As equipes se candidatam em suas respectivas cidades, então, no início, nós optamos pelos grandes centros visando ter uma estrutura melhor para realizar a competição. Tivemos a primeira edição no Rio de Janeiro, depois fomos para Porto Alegre, posteriormente São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. A gente começou a pensar em sair desse eixo Sul-Sudeste e levar a competição para mais lugares, hoje que estamos mais estruturados. As competições eram realizadas, até 2019, em duas edições ao ano. Em 2021 nós estamos nos reestruturando e vamos ter somente um evento por ano, sendo que no primeiro semestre teremos eventos regionais, que serão as classificatórias para a Ligay. No segundo semestre nós vamos ter a edição nacional da Champions Ligay.

  • Desde a criação do evento você acredita que a adesão aumentou? Pergunto em relação não só aos participantes diretos, mas como também patrocinadores e pessoas que buscam saber mais e ajudar a realizar os eventos.

A gente vem num crescimento exponencial, tanto em participação de atletas quanto de visibilidade. Hoje a nossa competição tem muito mais visibilidade do que 2017. Hoje conseguimos mídia especializada. Em 2017 nós começamos a competição mais por curiosidade, saímos em vários meios de comunicação, mas em parte de curiosidades, né? De mídia em geral. Nós não tínhamos adesão de imprensa especializada em esportes. Hoje já vimos este acompanhamento de muitos canais de esporte, a gente aparece em programas esportivos, então a visibilidade aumentou. Nós temos este crescimento. Os patrocinadores têm vindo cada vez mais. Ainda achamos que há poucos patrocinadores e apoiadores, mas já vimos um crescimento bem grande desde a primeira edição, lá em 2017, para as que estão sendo realizadas até agora. Um crescimento no número de patrocinadores, número de atletas, telespectadores, movimentação financeira… Então o crescimento é bem grande desde a primeira edição.

  • Quais, na sua concepção, são os maiores empecilhos para a realização do evento?

Acho que o principal empecilho para que a gente realize esta competição é, realmente, a falta de apoiadores e patrocinadores. A gente tem visto uma melhora significativa em relação a isso. Tivemos a edição de BH e pela primeira vez o apoio de uma entidade pública, no caso a prefeitura de Belo Horizonte. A gente vê esse crescimento, mas sabemos que temos mais potencial. Outro empecilho que temos observado é a estrutura das cidades para receber a competição. A gente tem geralmente 2 ou 3 dias de competição, com 25 a 30 equipes, por volta de 560 atletas, as vezes até mais e este número tem só aumentado. A estrutura física dos locais que são realizados os eventos acabam deixando um pouco a desejar. Por isso que a gente tem, principalmente, colocado as edições da LIGAY em grandes centros, nas grandes metrópoles. Estes são os dois principais empecilhos até o momento.

  • Vi que, neste ano, foi realizada uma competição de E-sports, pelo ano pandêmico que passamos, o qual a equipe Bravus se sagrou campeã. Você pode contar um pouco de como ocorreu a realização do evento?

É, este evento de E-sports que realizamos foi com o objetivo de não ficar parado no período de pandemia. Com todo o calendário que tínhamos da Ligay só conseguimos realizar um evento, que foi a Copa Sul, em fevereiro. Não conseguimos realizar nenhum outro evento físico em 2020. Então fizemos uma parceria com a Super Liga Carioca de Fut7, eles entraram como organizador da competição porque eles também estavam parados no momento. Foi uma forma de movimentar as equipes da Ligay, e acabamos, junto com esta parceria, realizando este campeonato. Já temos uma segunda edição programada, talvez para final do ano ou início do ano que vem, porque foi um verdadeiro sucesso, sabe? A gente teve uma adesão muito grande das equipes, uma audiência muito legal nos jogos que foram transmitidos pelo youtube ou por outros canais de jogadores de E-sports. Acabamos tendo uma adesão bem bacana e pretendemos já realizar uma segunda edição.

  • Imagino que a luta contra o preconceito seja um dos principais objetivos da LGNF, cada vez mais nós vemos jogadores — com condenações jurídicas em muitas vezes casos de violência doméstica — ainda receberem uma segunda chance no futebol profissional, diferente de casos com jogadores gays. Vocês, como organização, acreditam que a segregação que existe hoje no futebol com a população LGBT+ está mudando? Ou ainda temos um longo caminho a percorrer?

A gente acredita que temos um longo caminho a percorrer. Já vemos algumas mudanças, principalmente no Brasil, né? Algumas mudanças um pouco tímidas ainda. Postagem das equipes, dia intercional contra a LGBTfobia, dia do orgulho LGBT, mês da diversidade… Vemos algumas postagens de alguns clubes, ainda assim ficam só nas postagens. Exceção disso é o Bahia, que tem feito um trabalho sensacional com a sua torcida. O slogan “clube do povo”, da equipe, faz com que tentem agregar todas as pessoas, de diferentes credos, etnias e gêneros, então eles tentam trazer isso para dentro do clube e o Bahia é uma exceção. O Internacional também tem feito um trabalho bacana em relação a isso, mas sabemos que há um caminho muito longo a percorrer. A gente precisa de mais iniciativa, falar mais sobre isso. A Ligay está aqui justamente para isso, para combater essa LGBTfobia no futebol, para demostrar que nós existimos, com as mesmas capacidades técnicas e físicas para jogar futebol também, e a gente tem botado o dedo na ferida. Outro ponto é, no mundo, vemos ações bem legais como o Rainbow Laces, que as equipes usam cadarços e tarjas de capitão com a cor de arco-íris. Bandeiras LGBT, a gente já tem torcidas LGBT lá fora. O Brasil está começando a criar estas organizadas. Outro lugar que observamos ser um protagonista é a Major League Soccer, nos Estados Unidos, que tem trabalho isso muito bem, né? Já vemos uma evolução no mundo, porém ainda há um longo caminho a percorrer.

  • Existe algum time profissional que apoiam a causa? Caso não: você, como atual presidente, acredita que seja por temerem a reação da torcida?

Olha, hoje não temos nenhum clube que apoie a Ligay. Temos feito trabalhos e visto reconhecimento por parte destes clubes. Um dos nossos clubes teve uma parceria com o América Mineiro para criar um uniforme. A gente vê, de forma bem tímida, um certo apoio, mas nada direto. Acreditamos sim que é por conta de torcida e por conta do preconceito. A gente sabe que muitos destes clubes e seus diretores temem a reação das torcidas. Temos visto cenas e cenas no Brasil de homofobia, LGBTfobia e machismo nas arquibancas. A reação deles é, muitas vezes, incompatível com o que pregamos, que é a igualdade e diversidade. A gente acredita que os clubes devem fazer uma trabalho de conscientização melhor.

  • Vi que existem times com uma grande quantidade de atletas, como é o caso do Beescats, que já é bicampeão do torneio. Você pode contar como funciona a “agremiação” de alguma equipe? E esse número tem crescido de maneira que agrade a administração da LGNF?

A gente tem visto o crescimento destes atletas, a gente tem chegado com clubes com até ex-atletas profissionais. Tem aumentado o nível técnico das competições, o que é muito bom e dá muito mais visibilidade do que já temos. A gente tem uma brincadeira que diz: “quanto mais, melhor!”. Quanto mais pessoas estiverem nas equipes, muito melhor para a comunidade LGBT no geral, para o evento e para a Ligay. Nós só apoiamos o crescimento dos times. Em relação ao Beescats, está numa das principais capitais do Brasil que é o Rio de Janeiro. Assim como temos outros times em São Paulo, tem um número enorme de jogadores. Porém ainda há lugares que sofremos com a quantidade de pessoas que chegam para os times. As vezes chegam times nos campeonatos precisando de jogadores emprestados porque algum jogador ou outro machucou e o time não tem número suficiente para participar de uma partida. Nós sabemos que, nos grandes centros, é muito mais aberto, né? As pessoas vão até esses times diretamente. Trabalhamos para que a gente chegue além destes grandes centros. Inclusive neste novo formato da Ligay, queremos alcançar outros estados e regiões, fortalecendo o esporte, especialmente o futebol, em outras regiões. Este é o principal objetivo para 2021: o crescimento da Ligay em outras regiões do Brasil.

A comunida futebolística precisa, em primeiro lugar, dar voz a pessoas como o Josué. A homofobia e o preconceito não devem ser discutidas por teóricos do futebol, e sim por essa parcela marginalizada que é impedida de participar de forma — arrisco dizer — livre o esporte que tanto amam.

A Ligay, acima de qualquer coisa, busca servir de abrigo. Lutam por uma causa que bate de frente com a segregação sexual imposta ao homen gay que é impedido de ser protagonista no esporte que já tem o perfil de atleta bem pré-determinado.

Aos poucos, como disse Josué, é vista uma melhora. Pequena, porém ela já serve de esperança para alimentar a perspectiva de que um dia esta barreira não existirá mais.

Paulo Freire dizia que todos nós somos orientados por uma base ideológica. Ou inclusiva, ou excludente.

O futebol, hoje, é cada vez menos excludente. O objetivo é lutar até que seja inclusivo por completo, e todos possam desfrutá-lo em sua forma mais livre e e prazerosa.

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CaiN
Mezzala

he's truly the worsest with enough rhymes to spread throughout the boundless universes