Opinião: a discussão sobre o retorno do público nos estádios reflete o que é a nossa sociedade hoje

Enquanto o Brasil soma mais de 142 mil mortes por coronavírus, os cartolas do futebol, com seus inadequados protocolos de saúde, mostram que seus bolsos estão cheios, porém suas almas vazias

Danilo Jordão
Mezzala
5 min readSep 29, 2020

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(Foto: Lucas Merçon/ Fluminense FC)

Imagine um Maracanã lotado. Torcedor desce a rampa da UERJ, toma a sua cervejinha, passa o ingresso e sobe cantando até o túnel para as arquibancadas. Chegando lá, ele se encanta com o mar vermelho e preto, mar tricolor, mar alvinegro, o que for. Agora, multiplique esse oceano de gente por dois. Você chegará em um número próximo ao número de mortos por Covid-19 no país. Exatamente, já morreram mais de dois estádios lotados, mas a economia não pode parar, não é mesmo?

Durante o mês de setembro, os dirigentes dos clubes, juntamente com a Confederação Brasileira de Futebol, Ministério da Saúde e governos estaduais debateram sobre possível volta do público nos estádios em competições nacionais. A proposta, feita com base em estudo da CBF, seria permitir a entrada de 30% de torcedores de acordo com a capacidade pré-determinada da arena. Ou seja, em campos com mais de 60 mil cadeiras, teríamos cerca de 20 mil torcedores nas arquibancadas. O Ministério da Saúde disse ainda que o público poderia aumentar posteriormente, sinalizando que essa seria apenas uma medida provisória. Os torcedores ficariam longe uns dos outros, utilizando máscaras, com o intuito de evitar a propagação do vírus. Essa medida já é realizada nos países europeus que permitem torcedores nos campos, como a França. Porém, a capacidade do estádio diminuiu para apenas 5 mil.

Ainda relacionando o Brasil e a França, é válido ressaltar que os dois países vivem momentos distintos com relação à doença. Os brasileiros nunca fizeram uma quarentena rígida, visto que a maioria da população precisava sair rumo ao trabalho para colocar a comida na mesa. Os transportes públicos continuaram lotados, as grandes comunidades expostas e a contaminação crescia. No território francês, devido a boa infraestrutura econômica do país, os habitantes fecharam seus portões por um bom tempo, diminuindo exponencialmente o número de infectados e mortos pela doença. Lá, a onda já passou, sendo confirmados, atualmente, menos de 100 mortes por dia. Continuo discordando da volta do público no cenário europeu até a vacinação em massa da população, mas é necessário salientar que o nível de controle no Brasil é muito menor. “Não se compara”, como diriam meus amigos botafoguenses.

Torcedores do PSG respeitando o distanciamento social no estádio (Foto: REUTERS/Christian Hartmann)

A postura dos dirigentes é a que mais me impressiona. Desde o início da pandemia, o Flamengo, representado pelo presidente Rodolfo Landim, clamava pela volta dos treinos e campeonatos, com o objetivo de movimentar o fluxo do caixa. O clube afirmava ter criado uma bolha exemplar, de acordo com a infraestrutura “padrão europeu” que ele possui. Hoje, o Rubro-Negro vive um surto no elenco, comissão técnica e diretoria, sendo confirmados 41 casos desde o retorno das atividades. O Flamengo também perdeu o massagista Jorginho, funcionário do clube desde 1980. No último domingo, a equipe que entrou em campo contra o Palmeiras contava com apenas 4 jogadores considerados titulares ou que atuam a maioria dos jogos. O Flamengo pediu o adiamento do jogo, conseguiu a liminar, mas ela foi derrubada 20 minutos antes do horário previsto para a partida começar. O Palmeiras, adversário do dia, representado pelo presidente Maurício Gagliotte, mostrou indiferença com relação às possíveis contaminações dos seus próprios atletas, pois os especialistas em infectologia haviam deixado claro que a realização do jogo não era segura. O clube de Barra Funda entendia o adiamento como um desrespeito ao protocolo de saúde da CBF.

No fim das contas, as vidas são deixadas de lado cada vez mais. O que entra em debate são os interesses, sejam eles políticos, econômicos, esportivos dentre outros. Está claro que o Flamengo demitiu 62 funcionários, realizou treinamento sem autorização da prefeitura e hoje é o principal clube a favor do retorno das torcidas pelo interesse econômico. Também é óbvio que o Palmeiras quis a realização do jogo no fim de semana para obter certa vantagem esportiva, pois a média de idade dos jogadores rubro-negros era de apenas 21 anos, sem experiência no futebol profissional e com menos qualidade técnica que os contaminados. Com a vantagem esportiva, a chance de vencer é maior. Vencendo, o clube sobe de posição na tabela. Subindo de posição, o clube ganha dinheiro.

O descaso do governo em relação à pandemia contribui demais para a discussão sobre a volta do torcedor. No Brasil, parece que tudo voltou ao normal, como se a vacina para Covid-19 já tivesse chegado. Praias lotadas nos fins de semana, shoppings entupidos e bares cheios com nenhuma máscara na cara das pessoas. Mas, um erro -ou vários- não justificam outro. Essas situações são retrato de uma população que votou em um presidente que chama o vírus de “gripezinha”, faz churrasco e anda de lancha com mais de mil mortes diárias e propaga a cloroquina como remédio que ajuda no tratamento do novo coronavírus, sendo que estudos não provam nenhuma eficácia da droga. Além disso, o que vemos é uma elite despreocupada com a vida dos mais pobres, visto que, caso fique doente, terá sua cama no hospital particular, auxiliado dos melhores médicos, enquanto o mais pobre morre nas filas de atendimento, negligenciado pelo (des)governo do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.

O governo de São Paulo, corretamente, proibiu o retorno do público. O governo do Rio, no entanto, permitiu. Mesmo assim, o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, afastou a possibilidade de torcidas nas próximas semanas. Apenas o Flamengo, dentre os 20 clubes da Série A, se mostrou à favor. Contudo, a proibição no Estado paulista me leva a crer que clubes como Corinthians e Palmeiras teriam outra opinião se não fosse o decreto do governador João Dória. Andrés Sanchez, presidente do Corinthians, já dissera que se um Estado tivesse torcida, todos os outros precisariam ter. Ou seja, se fosse possível, o alvinegro colocaria torcedores na Neo Química Arena.

Desse modo, a luta pela volta ou não dos torcedores ao estádio é uma batalha travada por ambiciosos dirigentes que mancham o futebol brasileiro. Não é possível imaginar que alguém, em sã consciência, acha que o retorno do público não aumentaria a transmissão do vírus no país. Na verdade, todos sabem, mas ninguém se importa com o que acontece. No jogo da empatia, o Brasil já levou muito mais de sete gols.

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O que veio primeiro: o sorriso ou o mundo? Na felicidade tudo se cria.