Pelota em Prosa: Um gol já fez cinquenta anos

Pedro Bordinhão
Mezzala
Published in
3 min readDec 10, 2021
Ghiggia faz o gol mortal

Para começar de forma melodramática essa que pretende ser uma coluna de caráter quinzenal, e curta, sobre os livros mais conhecidos-e-desconhecidos do universo futebolístico, trago, em tom de felicidade cruel, para o escrutínio sagrado do leitor, a obra que canta (até o nosso 7x1 para os germanos) a maior tragédia brasileira: Barbosa: Um Gol Faz Cinquenta Anos, de Roberto Muylaert.

Bem, recapitulando, Barbosa foi o mais lendário dos goleiros brasileiros, tendo iniciado sua trajetória como goleiro no Ypiranga de São Paulo, cristalizado sua carreira no Vasco da Gama e finalizado no pequeno Campo Grande A.C., iguala-se apenas ao também mítico Gilmar, goleiro das copas de 1958 e 1962, redentor da fatídica Copa do Mundo de 1950, objeto do livro aqui resenhado. Atleta em tempos de elegância, Barbosa enquadrava-se naquele estilo de jogo em que o goleiro era também artista, dançarino e, mesmo ainda não existindo as tevês com transmissão “ao vivo”, preocupado em mostrar o esforço hercúleo para desviar, como quem desvia o chumbo de um canhão, uma bola certeira.

No entanto, Barbosa também foi, como se Deus o tivesse escolhido a dedo, vítima das mais diversas acusações e mentiras que se possa imaginar, desde que foi o responsável absoluto pela derrota na disputa com os uruguaios, ou orientais ou, como prefiro, charrúas, até, no campo da invenção em mundo onde não havia tevê, que teria sido vítima mortal de um chute do carrasco Ghiggia, perpetrador do gol súbito. O autor reforça e, por meio de variados relatos, comprova o caráter injurioso que a imprensa à época manteve com o calejado goleiro e que, mesmo com o tempo, não se modificou em nada, permanecendo como uma chaga em sua história.

É então, neste ponto, que a obra se diferencia do discurso convencional, permitindo levar o leitor até lugares incomuns ao assunto, pois, ainda que relate a tragédia barbosiana, permite-se também alçar voos por outros campos da história, seja em relatos passados no desesperançoso Uruguai do dia 16 de julho, seja em passagens de jornais eufóricos com a partida que já tinha, para os brasileiros, resultado dado, seja nos quartos de hotel da equipe oriental, seja na vida marcante de Barbosa, seja, e para cá este é o mais importante, na história de Obdúlio Varela, o capitão, o caudilho, o uruguaio de origem e vida humilde que comandou a equipe vencedora. Roberto Muylaert faz um trabalho primoroso ao recordar a história desse que, sem dúvida, deve entrar no panteão das grandes figuras do futebol latino. Mais que os goleadores Ghiggia e Schiaffino, foi o homem que bateu de frente com os cartolas uruguaios e retomou os ânimos do time para que se sucedesse o Maracanazzo. E assim, o autor não se centra unicamente na descrição factual da partida, como tampouco na exumação futebolística de Barbosa.

São muitos os relatos romanceados por Muylaert, e os que mais fazem o leitor se animar com a prosa são os envolvendo a mística que levou à derrota brasileira e a posterior sucessão de fatos decorrentes desta. O churrasco em Ramos, na casa de Barbosa, onde foram queimadas as traves da partida, o péssimo almoço que os jogadores brasileiros tiveram antes do jogo, a bandeira brasileira que foi hasteada de cabeça para baixo na hora do hino, a goleada de 6x1 na Espanha (cotadíssima para vencer o torneio), e tantos outros acontecimentos envolvendo o sobrenatural…e o subconsciente dos que viveram este dia.

Bigode, Zizinho, Friaça e Juvenal também são rememorados como importantes figuras da partida. São, não tanto quanto Barbosa, outros Cristos crucificados na memória brasileira, ainda que jogadores fantásticos em campanhas por seus times. Enfim, não há como relatar aqui cada história contada no livro, mas algo de importante pode ser apreendido da obra: a história está aí para que possamos a exumar, reler, reinterpretar e reinventar por meio do tempo e da verdade.

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