Quando o Santa Cruz sobreviveu a uma excursão suicida

Durante a Segunda Guerra Mundial, um dos grandes clubes do Nordeste decidiu fazer uma viagem pelo Norte do Brasil e o time quase não voltou pra casa

Luan Fontes
Mezzala
5 min readSep 12, 2020

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Arquivo Coral

O ano era 1943. O Santa Cruz, mesmo sendo um dos principais times nordestinos, passava por dificuldades financeiras e por isso, decidiu promover uma viagem pelo Norte do Brasil, visando arrecadar dinheiro para poder montar um elenco forte para a disputa do Campeonato Pernambucano. O grande problema, era que o clube decidiu se aventurar nessa excursão, por algumas capitais, justamente no meio da Segunda Guerra Mundial e o percurso durou quatro meses.

Já na saída de Pernambuco, o clima era tenso. A notícia de que submarinos alemães estavam planejando um ataque à costa brasileira, deixava todos em estado de alerta. Por conta disso, o Governo só permitiu que delegação saísse, se ela fosse junto com dois navios da Marinha, ainda assim, o trajeto não era nem um pouco seguro. Segundo o jogador Guaberinha, os atletas dormiam com os marinheiros. Ninguém ficava nos camarotes porque se o barco fosse bombardeado, todos ficariam presos na parte inferior do barco, como foi dito pelo ex-jogador do Santa em entrevista à TV Cultura em 1992.

Além disso, eles ficavam no escuro; toda a embarcação tinha que ficar apagada para não chamar atenção de possíveis inimigos. Mesmo assim, a equipe pernambucana chegou em segurança à primeira parada: Natal, onde disputariam um amistoso contra a Seleção Potiguar e a goleariam por 6 a 0, mostrando que toda a apreensão do navio tina ficado para atrás. Em seguida, o tricolor seguiu viagem para Belém, onde também venceria por goleada, o Transviário por 7 a 2.

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Arquivo Coral

Por causa dos resultados, o Santinha começou a chamar atenção. A imprensa da região destacava o futebol bonito e envolvente da equipe pernambucana, e o espetáculo que dava em campo. No dia seguinte ao segundo amistoso, o público lotou o estádio para ver o duelo contra o Remo, no qual sofreriam a primeira derrota, por 5 a 2. Além da derrota, foi revelado que alguns jogadores tiveram uma forte entoxicação, e mesmo assim, entraram em campo. A direção decidiu prosseguir e finalizar os dois jogos restantes no Pará, antes de voltar para Recife.

Com os dois jogos terminados em empate e sucesso de público, o clube foi convidado a estender a excursão até Manaus. Precisando do dinheiro e animado com as bilheterias, o clube aceitou, e foi aí que as coisas pioraram.

Na época, para ir de Belém para Manaus sem pagar tão caro por uma passagem aérea, era necessário cruzar o Rio Amazonas em um navio-gaiola, que tinha uma simples divisão; pessoas de um lado e animais do outro. “O pior era a sujeira. “Não limpavam bem e a gente tinha que ficar muito tempo lá, foram 10 dias subindo o Rio Amazonas”, contou Guaberinha. “De noite o time inteiro ia para a casa de máquina de vapor e tomava um memorável porre com a tripulação” escreveu Lenivaldo Aragão à Revista Placar.

Ao chegar em Manaus, com o time exausto, o Santa perdeu para o Olympico por 3 a 2. A equipe ainda fez mais quatro jogos no Amazonas e antes de retornar a Belém, o Santa foi convidado a esticar a excursão e jogar um amistoso no Peru, mas por conta da guerra, a CBD barrou e disse que se o clube aceitasse, seria suspenso por 90 dias.

Com os cofres abastecidos o Santa Cruz decidiu voltar pra casa, mas antes de entrarem no barco e subir o rio, alguns jogadores sentiram um mal estar, no meio do caminho os sintomas voltaram, e dois atletas foram diagnosticados com febre tifoide em estado grave. O plano era fazer uma parada em Belém e depois rumar para Recife de navio, mas em meio aos desdobramentos da Guerra, o governo proibiu as navegações marítimas.

Assim, a renda dos jogos estava praticamente comprometida. Pega de surpresa, a direção teve que mudar os planos. Sem dinheiro para pagar uma viagem de avião, o clube teve que voltar de ônibus. fazer paradas para jogarem mais alguns amistosos, para custear o transporte.

Para piorar a situação, o arqueiro King e o atacante Papeira foram internados em Belém. Mesmo assim, o Santa Cruz entrou em campo para enfrentar o Remo e venceu por 4 a 2, mas a alegria não durou muito; algumas horas após o jogo, o arqueiro King faleceu no hospital. Em meio a isso, França e Omar decidiram deixar o Santa Cruz e voltaram para Manaus para jogar em algum clube manauara. Continuara excursão era algo surreal, mas quem quisesse voltar pra casa teria que ajudar a levantar fundos. Três dias após a perda do goleiro, o santa disputou um amistoso contra o Paysandu e enquanto a bola rolava, o atacante Papeira também faleceu no hospital. Por ter que cobrir os gastos das internações e enterros, a delegação ficou sem dinheiro. Um jogo beneficente para ajudar as famílias das vítimas foi organizado pelo governo local, que se solidarizou com a história. Antes de deixar Belém, o Santa ainda teve que participar de um torneio, no qual jogou duas partidas no mesmo dia. Quando finalmente, deixou o Pará, rumou para Recife com 4 atletas a menos e mais algumas situações embaraçosas pela frente.

Ao deixar a capital paraense, o time seguiu de avião para São Luiz do Maranhão. Para economizar dinheiro, os atletas tiveram que trocar as passagens de primeira para terceira classe, e tiveram que viajar com 35 presos, sendo transportados, o que não foi nenhum problema, visto que as 15 taças que o Santa ganhou na excursão foram guardadas cuidadosamente, medida até desnecessária, visto que os atletas e presos se tornaram bons amigos. Isso foi relatado pela Revista Placar.

Ainda no caminho a Recife, para tentar encurtar o tempo de excursão, os jogadores seguiram de trem para o Piauí e durante o percurso, o trem saiu dos trilhos duas vezes. O azar parecia não acabar.

O Santa jogou um amistoso em Teresina e rumou para o Ceará, onde fez seu último jogo e viu que o responsável pela excursão, o presidente do clube, Aristófanes Trindade, deixou a comitiva e voltou sozinho para Recife. Depois de 117 dias longe de casa, uma sequência surreal de amistosos, no meio de um cenário conturbado, o time finalmente desembarcou em Recife, após sofrer com uma das turnês mais loucas e azaradas da história do futebol.

Em uma época na qual os vôos fretados e ônibus climatizados não eram uma realidade, o Santa Cruz FC se atreveu a desbravar a região Norte do Brasil e pouquíssimos conhecem essa jornada. O Santinha sobreviveu à loucura que o próprio criou, no meio da Segunda Guerra Mundial, entrando assim, para a história do futebol brasileiro.

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Luan Fontes
Mezzala
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Apenas um rapaz sul-americano que sonha em ser jornalista esportivo, quem sabe, narrador