“A Maravilhosa História de Peter Schlemihl”, de Adelbert von Chamisso

Mônica Colacique
micromegas
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11 min readSep 16, 2020

Otto Maria Carpeaux (1900–1978) destaca a importância de definir, sem nenhum preciosismo, a Literatura Alemã como sendo a Literatura de Língua Alemã. No caso germânico, questões geográficas, históricas e políticas de uma região permanentemente agitada fermentaram uma literatura heterogênea e fragmentada, gerando uma singularidade não apenas na produção literária em si, mas também na sua classificação. A língua funciona, portanto, como um guia pelo emaranhado de expressões e variações de uma literatura que as disputas não conseguiram suprimir e as fronteiras não puderam abarcar.

Quatro décadas após a tardia unificação da Alemanha, o escritor Thomas Mann (1875–1955) já percebia o preponderante e distorcido papel que a raça passara a ter em seus país e como isso respingava na cultura da qual o próprio Mann foi elemento essencial. Ao escrever o prefácio de A Maravilhosa História de Peter Schlemihl (Peter Schlemihls Wundersame Geschichte, 1814), uma notória novela alemã que fizera parte de seus anos escolares, destaca-se sua fala nostálgica sobre a obra e seu autor. O olhar orgulhoso, que enxerga méritos menos óbvios e vê a narrativa como mais do que um peculiar conto de fadas, transparece o incômodo do escritor com seus contemporâneos. Mann acreditava que a “superstição” com sangue e raça inibia histórias como a do próprio autor de Peter Schlemihl: Adelbert von Chamisso (1781–1838) era, na verdade, um refugiado de terras inimigas.

Adelbert von Chamisso [1]

Nascido Louis Charles Adélaïde de Chamissot, em 1781, vindo de uma família aristocrática da região de Champagne, emigra com seus familiares aos nove anos, em decorrência da Revolução Francesa. Depois de passar por atribulações em territórios belgas, holandeses e prussianos, se estabelece em Berlim em 1796, tornando-se tenente quatro anos depois. Nessa época, começa a se aventurar nos versos em francês e em alemão, encontra afinidades com outras jovens mentes e inicia-se timidamente no movimento romântico, o qual reverbera os ideais da revolução que o tornara expatriado. De 1804 a 1806, colabora com o “Almanaque das Musas”, sua primeira publicação. As guerras napoleônicas, das quais participa pelo lado prussiano, interrompem seus estudos e sua produção artística. Depois da derrota na campanha de Weser, é feito prisioneiro de guerra; volta à Berlim órfão, desiludido e desorientado.

Madame de Staël [2]

Depois de alguns anos de inatividade, retorna à França e acaba se juntando ao círculo da intelectual Madame de Staël, partindo com o grupo para a Suíça. Nesse período, começa seus estudos com Ciências Naturais, os quais retoma ao voltar para Berlim em 1812. No ano seguinte, como forma de se distrair e agradar os filhos de seu amigo Julius Eduard Hitzig (1780–1849), começa a escrever A Maravilhosa História de Peter Schlemihl, que narra os acontecimentos da vida de um homem que vende sua sombra ao diabo. Conta-se que uma série de episódios com o escritor Friedrich de la Motte-Fouqué (1777–1843) contribuiu para o esboço de sua narrativa: a troça por Chamisso ser distraído a ponto de perder tudo menos a sombra; a leitura de uma fábula de Lafontaine sobre um homem que retirava do bolso tudo que pediam; e um passeio no qual a sombra do pequenino Motte-Fouqué se equiparava à do alongado Chamisso. Dessa sequência de acontecimentos despretensiosos, começa a surgir a novela sobre Schlemihl, conforme apontado por Mann

“Necessidade de distração, bonomia de tio com algumas crianças, azar durante uma viagem, uma observação solta a respeito de um livro, uma brincadeira entre amigos, ócio e enfado — são motivos extremamente modestos para o nascimento de uma criação que se pode dizer imortal. E é assim, de fato, que nascem as histórias. Mas a história que nasceu aqui ganhou, sob as mãos do poeta, atributos para deleitar todo um mundo.” Thomas Mann

A novela é introduzida por um poema de Chamisso e três cartas (entre ele, Hitzig e Motte-Fouqué) que tentam dar um ar de veracidade aos acontecimentos fantásticos que se seguem. A história a qual eles se referem é contada em primeira pessoa pelo próprio Schlemihl, que se endereça a Chamisso; este, por sua vez, a recebe das mãos de um estranho homem “com uma longa barba grisalha, vestindo uma Kurtka negra”, a mesma icônica vestimenta do protagonista.

A jornada de Peter Schlemihl começa com sua chegada no porto de Hamburgo. Ansioso e com uma carta de recomendação, ele vai ao encontro de Thomas John, um esbanjador novo rico, que pega a carta e o convida para a festa em seu jardim. Muito alheio e focado em si, Schlemihl vai direcionando sua atenção a uma figura peculiar, “um homem de meia idade, calado, magro, ressequido e alto” que começa a tirar do próprio bolso estranhos e improváveis pedidos dos demais convidados. A medida que eles vão ficando mais absurdos (luneta, tapete, barraca, três cavalos!), intensifica-se o espanto de Schlemihl, que passa a ficar inquieto por ser o único a ver os acontecimentos como extraordinários; irritado e confuso, decide se retirar. Já confabulando sobre a próxima tentativa de se aproximar de John, Schlemihl percebe-se sendo seguido. Tímido e muito educado, o estranho homem que passara o dia atendendo aos desejos mais inimagináveis queria pedir um pra si.

“Durante o pouco tempo em que tive a felicidade de ficar ao seu lado, eu pude, meu senhor — permita-me dizê-lo — pude contemplar algumas vezes, com uma admiração realmente indescritível, a belíssima sombra que o senhor, com um certo ar de nobre desprezo e de pouco caso, projeta ao sol — esta magnífica sombra aí a seus pés. Perdoe-me a pretensão realmente ousada: Será que o senhor não estaria talvez inclinado a ceder-me sua sombra?” (p. 22)

Schlemihl e a bolsa de Fortunato. Na edição, as ilustrações contrapõem o ouro das moedas e o negro da sombra

Em meio a inúmeras alternativas fantásticas referentes ao imaginário popular alemão, é oferecida a Schlemihl a bolsa de Fortunato — personagem do século XV, em destaque pelo romance de cavalaria O Anel Mágico (Der Zauberring, 1813), de Motte-Fouqué. A bolsa da fortuna, fonte inesgotável de dinheiro, tira de Schlemihl qualquer hesitação possível, e o que parecia ser um ótimo negócio se concretiza.

Não demora muito, porém, para que Schlemihl — e o leitor — perceba que a ausência da sombra traz para si reações intensas e inusitadas. De uma maneira ou de outra, sua falta não causa apenas estranheza, mas sim desprezo e repulsa inexplicáveis. Schlemihl torna-se marginalizado e, encastelado em sua infinita fortuna, percebe que ela não é suficiente para comprar a aceitação. Questionado, ridicularizado e alvo de pena, descobre do pior jeito que existe um valor na aparentemente dispensável sombra que acabara de trocar. Se o desafio do protagonista é encontrar, ao lado do seu ajudante Bendel, uma forma de emulá-la, o do leitor é entender o que a sombra pode representar.

Em meio a inúmeras interpretações, a sombra na narrativa de Peter Schlemihl está frequentemente associada ao próprio Chamisso e à sua história de vida. Como muitos, Carpeaux — ele próprio um refugiado— creditava à novela uma representação de um homem sem pátria. A interpretação de Thomas Mann, por outro lado, mostra-se mais completa ao buscar uma visão menos superficial. As palavras do próprio Chamisso mostra aos leitores uma interpretação mais aprofundada. No prefácio da edição francesa, como forma de responder sarcasticamente aos muitos que perguntavam o significado da sombra, o autor cita sua definição física como sendo a projeção de um corpo opaco em um sólido quando sobre ele incide um corpo luminoso, e acrescenta

“É deste sólido que se trata na história maravilhosa de Pierre Schlémhl. A ciência das finanças instrui-nos suficientemente sobre a importância do dinheiro; a da sombra é menos reconhecida no geral. Meu imprudente amigo cobiçou o dinheiro, cujo valor ele conhecia, e não pensou no sólido. A lição — que pagou caro — ele quer que nós a aproveitemos e sua experiência nos conclama: pensai no sólido!” Adelbert von Chamisso

O poeta pede atenção ao sólido; não à luz ou ao próprio objeto, mas a como e onde ele se projeta. Mais do que unicamente a pátria, acredito que a sombra torna-se símbolo de vínculo — dos vários vínculos dos quais Chamisso carecia. Expatriado e andarilho quando criança, nobre sem terra ou status, órfão em busca de estabilidade, poeta entre duas línguas, soldado inimigo e estrangeiro em seu próprio país, Chamisso passou a juventude sem ter condições e tempo necessários para firmar suas raízes e reforçar sua identidade através de laços familiares, classe social, ofício, língua ou nação. Em concordância com seu próprio personagem, faltava a Chamisso pertencimento.

ALÉRGICOS: CONTÉM SPOILER

Mesmo tentando evitar a sociedade, Schlemihl se apaixona e é correspondido. Seus planos são frustrados quando os pais da moça descobrem seu segredo. O estranho homem do início da narrativa volta a aparecer deixando Schlemihl novamente com uma escolha: ele pode reaver sua sombra caso dê “ao pobre diabo” sua alma em troca.

A ideia do pacto fáustico é então retomada, desta vez de uma forma mais típica e direta. O diabo, antes tímido e educado, aparece a Schlemihl com aspecto mais sinistro e mostra a ele o que seria a alma de Thomas John. É neste momento, porém, que acontece a grande subversão de Chamisso às histórias fáusticas: vendo-se novamente na situação inicial, depois de sua primeira escolha ter-se mostrado equivocada, Peter Schlemihl se recusa a vender sua alma, não sacrifica o futuro de sua “margarida” e aceita viver com seu fardo.

Abrindo mão de sua sombra, fortuna e amor, Schlemihl vira andarilho. Uma vez mais, encontra um artefato mágico presente no folclore alemão: a bota de sete léguas, que percorre esta distância a cada passo. Pronto a se dedicar às Ciências Naturais, Schlemihl passa por lugares como Tibete, Egito, Estreito de Gibraltar, Groelândia, Américas do Norte e do Sul, Sumatra, Java e Bali. Mais tarde, já imaginando deixar seus textos científicos à Universidade de Berlim, leva pessoalmente seus escritos biográficos aos cuidados de Chamisso.

“E você, meu caro Chamisso, eu o escolhi como depositário de minha história maravilhosa, de forma que ela possa, talvez, quando eu tiver desaparecido da Terra, servir como útil ensinamento a alguns de seus habitantes. Mas você, meu amigo, se deseja viver entre os homens, aprenda a respeitar em primeiro lugar a sombra — somente então o dinheiro. Mas, se quiser viver apenas para você e para o que há de melhor em seu interior, então não precisa de nenhum conselho.”
(p. 87)

A novela foge dos contos de fadas ao não entregar um final plenamente feliz, ao mesmo tempo em que não permite que seu heroi encontre uma danação completa. A terceira via agridoce pune Schlemihl mas permite concessões; encontrar um sentido nas expedições e na busca científica longe dos homens é a solução terrena tão feliz quanto possível. Alienado e sem vínculo, Schlemihl renuncia à vida em sociedade, que inevitavelmente seria penosa e inviável, para viver as paixões que estão a seu alcance.

“Excluído da sociedade humana por um erro da juventude, fui, como compensação, destinado à natureza que eu sempre amei; a terra foi-me dada como um rico jardim, o estudo como direção e força de minha vida e, como meta, a ciência. Não foi uma decisão tomada por mim.” (p. 79)

Ao contrário de seu personagem, Chamisso toma para si essa escolha. Dois anos após escrever Peter Schlemihl, desnorteado pelas consequências das derrotas definitivas de Napoleão, decide partir em uma expedição pelo mundo, um antigo sonho que realiza sob os comandos de Otto von Kotzebue. São três anos de viagens passando pelos continentes Europeu, Americano, Africano e Asiático que propiciam ao poeta-botânico — ou ao botânico-poeta — material para dois ramos: um literário, com Viagem ao Redor do Mundo; e um científico, com Observações e Opiniões Durante uma Viagem Exploratória sob o Comando de Kotzebue, o primeiro registro narrativo em alemão de viagem com fins científicos.

À esquerda, Ilha Chamisso, no Alaska (EUA), onde ele chegou em 1816 [3]. À direita, Vanilla chamissonis, uma espécie de orquídea encontrada na América do Sul, que foi batizada em homenagem ao botânico-poeta [4]

Para Thomas Mann, a consequência mais importante foi ainda de outra natureza. Em sua peregrinação, houve tempo e distanciamento para que Chamisso pudesse encontrar em si a resposta da pergunta que o rondara até então. Das Heimweh (“saudade de casa”) tinha endereço germânico: contrariando “raça e sangue”, o coração do poeta era alemão.

Depois de seu retorno, Chamisso é nomeado diretor do Jardim Botânico de Berlim, entra para a Academia de Ciências e publica trabalhos científicos, principalmente voltados à Botânica. Concomitantemente, participa do Die Serapionsbrüder, círculo de E. T. A. Hoffmann (1776–1822). Admirado por contemporâneos e gerações mais novas, é lido, traduzido e musicado.

Síntese das contradições intrínsecas do movimento romântico, Chamisso teve seu destino profundamente marcado pelas disputas e rupturas de seu tempo e espaço. Com um pé no realismo e outro no fantástico, Peter Schlemihl nasce da necessidade do autor de lidar e organizar conflitos internos, também decorrentes de sua vida e época atribuladas. O francês — que nunca perdeu o sotaque ou conseguiu contar os números em alemão — intrometeu-se no movimento mais germânico de todos para fazer parte, através da língua alemã, da construção da identidade de uma nação que existia sem ainda ser.

No poema Ao Meu Velho Amigo Peter Schlemihl (An meinen alten Freund Peter Schlemihl), que antecede a novela em sua terceira edição, Chamisso acolhe seu querido personagem ao mesmo tempo em que rejeita a comparação consigo mesmo. Dezoito anos e uma volta ao mundo depois, isso já não fazia mais sentido.

“[…] Meu pobre, pobre amigo: comigo o Tinhoso
não agiu com a maldade que reservou para você;
Sonhei tanto, acalentei imensas esperanças.
Ao fim, porém, alcancei
muito pouco.
Mas dificilmente aquele ser cinzento irá se vangloriar
De ter-me alguma vez mantido preso pela sombra.
Tenho a sombra que me é inata,
Não a perdi por um instante sequer

Embora inocente como uma criança, atingiu-me
O escárnio que eles tiveram por sua nudez. —
Será que somos assim tão semelhantes?!
Eles gritavam atrás de mim: Schlemihl, onde está sua sombra?
E quando a mostrava, faziam-se de cegos
E jamais se cansavam de rir.
O que fazer então? Suportar tudo isso com paciência
E deixar que a inocência nos traga a felicidade. […]”

O poeta que tinha orgulho de ter sua sombra, na verdade, como afirma Hitzig em um poema, havia conquistado três: um amor, um ofício e uma nação. Se Schlemihl foi privado de um final feliz, seu autor foi mais bem-sucedido. Com tempo e oportunidade, viveu para superar seu personagem e traçar um caminho próprio distante da obra que criara. Depois de todas as angústias e desventuras, Chamisso encontrou sua solidez sem precisar vender sua alma.

Título original: Peter Schlemihls Wundersame Geschichte
Idioma original: Alemão
Tradução: Marcus Vinicius Mazzari
Posfácio: Thomas Mann
Ilustrações: Emil Pretorius
País: Atual Alemanha
Ano de publicação: 1814
Ano da edição lida: 1989*
Gênero: Ficção, Novela
Editora: Estação Liberdade
Páginas: 111
Nota: 9/10

*Há uma edição mais nova e ainda disponível.

Referências:
BLAMIRES, D. Adelbert von Chamisso’s Peter Schlemihl. In: Telling tales: the impact of Germany on english children’s books 1780–1918. Cambridge: Open Book Publishers, 2009. p. 135–146.
CADERNOS ENTRELIVROS: panorama da literatura alemã. São Paulo: Duetto Editorial, 2007.
CARPEAUX, Otto Maria. História concisa da literatura alemã. 1ª ed. Barueri: Faro Editorial, 2013.
FITZELL, H. J. The hermit and society. In: FITZELL, H. J. The hermit in german literature: from Lessing to Eichendorff. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1961. p. 10–53.
MANN, Thomas. Chamisso. In: CHAMISSO, Adelbert von. A história maravilhosa de Peter Schlemihl. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
PAVLYSHYN, M. Gold, guilt and scholarship Adelbert von Chamisso’s Peter Schlemihl. The German Quaterly, vol. 55, n. 1, p. 49–63, 1982.
WEINRICH, H.; BROWN, M.; BROWN, J. K. Chamisso, Chamisso authors, and globalization. PMLA, vol. 119, n. 5, p. 1336–1346, 2004.

Créditos das imagens:
[1] Wikipedia
[2] Great Thoughts Treasury
[3] Wikipedia
[4] Wikipedia

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