SELF FISH

30 Anos Esta Noite.

Paulo Peixe
Microphonia
Published in
4 min readNov 24, 2020

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Era um sábado, dia 24 de novembro de 1990. Eu, no auge da juventude, ainda tinha a vida toda pela frente e todo o tempo do mundo.

Não me lembro de absolutamente nada do que fiz na véspera e as lembranças do dia seguinte, também são meio confusas. Mas naquele sábado, lembro de ter acordado tarde e de ter saído, um pouco depois do almoço, com um amigo, pra andar de bicicleta. Um programa banal, mas completamente diferente pra mim, que nem tinha bicicleta! Cheguei na casa de “Nariga”, esse é o apelido do meliante, no bairro da Graça, por volta das 14 horas, e peguei emprestada a bicicleta do irmão dele.

Saímos da Graça, descemos a Ladeira da Barra, com a ajuda de todos os santos e, pedalando pela orla marítima, lembro de termos ido até o Rio Vermelho, onde, por culpa exclusivamente minha e da minha imperícia, quase fui atropelado. Acho que fomos um pouco além, mas não tenho certeza. A única certeza que tenho é que estava exausto! Não que a distância percorrida tenha sido muito grande, mas a falta de costume e os excessos da noite anterior, provavelmente contribuíram com o cansaço que eu sentia. O fato de estar tentando acompanhar o ritmo de Nariga, que, além de estar acostumado ao programa, estava com uma bicicleta mais leve e mais rápida, certamente, não me ajudou muito. Só na volta, já perto do destino final, quase desmaiando de cansaço, ao tentar subir uma outra ladeira, descobri que a bicicleta dele tinha mais de 20 marchas, enquanto a “minha” nem marcha tinha. Foi a desculpa que eu precisava pra desistir de lutar contra a gravidade, saltar da bike e continuar a pé, até o topo da ladeira, enquanto o sacana se afastava e ria da minha cara!

Quando, finalmente, consegui voltar ao ponto de partida, devolvi a bicicleta, agradeci ao dono pelo empréstimo, bebi um copo d’água e fui embora, exausto e torcendo para o velho Uno a álcool não me deixar na mão, no caminho de volta pra casa, como era de costume. Felizmente, sem intercorrências, cheguei em casa, no número 5, da Rua Jardim Santo Antônio (uma transversal sem saída da Av. D. João VI), no bairro de Brotas.

Ao chegar, já no final da tarde, notei que meu pai estava organizando alguns dos seus escritos, no consultório médico-odontológico que ele e minha mãe dividiam e que ficava no andar térreo, da casa onde morávamos desde meados dos anos 70. Aproveitei a porta aberta, pra beber uma água, ali mesmo, no consultório, pois a sede continuava grande. Conversamos um pouco sobre as coisas que ele escrevia; brinquei sobre o seu estilo de escrever “catando milho”, numa velha remington portátil, cor de chocolate(ou de cocô, como queiram); contei sobre a minha roubada em duas rodas; demos algumas risadas e fui tomar banho. E descansar.

Pouco depois, no início daquela noite, jantamos em família, na cozinha, na companhia ruidosa da TV Semp Toshiba 10 polegadas, branca (àquela altura, já bem amarelada), sintonizada na novela das sete, “Mico Preto”, que meu pai assistia, rindo despretensiosamente, feito criança, contagiando todos à mesa, que acabávamos rindo também, mais das suas risadas do que da própria graça da estória.

Após o café, tomei outro banho e pus uma roupa um pouco mais arrumada do que o meu uniforme diário (tênis e jeans surrados e camiseta), pois iria para um aniversário “chic”. Na saída, fui me despedir de meus pais, que estavam na sala, com um casal de tios que nos visitava com frequência.

A partir daí, não lembro de maiores detalhes, mas jamais irei me esquecer do olhar e do sorriso de meu pai, ao me ver com uma roupa “decente”, e da frase que ele me disse, com uma emoção que só o amor (e um pouco de uísque) pode justificar: “VOCÊ ESTÁ LINDO, MEU FILHO!” Não foi, certamente, a última coisa que ele me disse, mas essa é a última coisa que eu me lembro de ter ouvido em sua voz.

Mais tarde, quando já estava no aniversário, fui surpreendido pela chegada, na casa da aniversariante, de um outro tio, que foi até lá pra me buscar e me avisar que meu pai tinha sofrido um infarto (o quarto!) e estava hospitalizado. Quando cheguei ao hospital, meu irmão me deu um abraço e disse que nosso pai já havia chegado lá sem vida.

Eram as últimas horas do dia 24 de novembro de 1990. 10 dias antes, ele havia completado 61 anos de idade. Poucas horas antes, ele havia me dito que eu estava lindo. E, apesar de toda a tristeza, eu percebi que foi um privilégio enorme ter recebido aquele último e emocionado carinho.

Hoje, 24 de novembro de 2020 (esse ano completamente louco!), já não tenho mais toda a vida pela frente, nem mais todo o tempo do mundo. Mas, 30 anos depois, ainda tenho a lembrança nítida daquelas 4 palavras “VOCÊ ESTÁ LINDO, MEU FILHO!” e, mais ainda, tenho a certeza de que elas foram sinceras. Afinal, o amor é cego.

Que as minhas filhas (que não o conheceram) tenham sempre a mesma certeza do amor que sinto por elas.

Valeu, Zé! Te amo. Ainda e pra sempre!

É isso.

Paulo Peixe para o Microphonia.

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Paulo Peixe
Microphonia

Um peixe fora d’água, tentando aprender a respirar