ON THE ROCKS

A chuva que móia

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
2 min readNov 9, 2022

--

Gal Costa: capa da edição manifesto de abril de 2022 Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã/CLAUDIA

Estava tudo leve demais. Um ponto muito fora da curva da nossa montanha russa com alçapões. Pela primeira vez em muito tempo o tempo parecia, ele mesmo, calmo. Derrotamos o fascismo (nas urnas), meu Bahea voltou ao seu lugar de direito e a música ensejava um belo pas de deux entre o tempo e a razão. Não durou muito. A leveza me foi tragada pela notícia da morte de Gal Costa.

[2002, Butantã, São Paulo] República de baianos, eu e um amigo éramos mestrandos em Ciência Política e um terceiro integrante, 05 (o chamávamos assim — e hoje soa especialmente bizarro —por conta do NPOR e por assim o chamarei para não revelar o nome do hoje distinto jornalista Christiano Caldeira).

Fazíamos algumas festas lá, de convescote até aquelas que algum desconhecido acorda na sala de sua casa e pergunta que horas são e ao ouvir que são 11:00, de janela escancarada e com o suor viscoso do corpo expelindo excessos, pergunta: do dia ou da noite?

Pois bem, essas festas, todas elas, quando começavam a acabar, o circulo de amigos diminuir drasticamente, ele, o 05, levantava e punha o disco favorito da casa, FA-TAL. Não só isso, de posse de seu indefectível copo verde, DELE e AÍ de ti se usar, entoava a capela Eu sou uma fruta gogóia… eu sou uma moça…

Pronto, só o petit comité, ouvindo Gal, procurando o baralho para jogar truco, escornado no chão, dormindo.. amigos amigando numa época de esperanças e promessas.

[Lisboa, 2022] A serenidade momentânea foi interrompida pela dor da morte de Gal, que se vai quando nossas esperanças começam a voltar. Parece ser proposital para nos puxar de volta à realidade. Ela, vanguardista desde sempre, que se criou derramando o leite na cara dos caretas, se vai no apagar das luzes de um governo que representava justamente aquilo que ela combateu por toda a vida com suas experimentações éticas e estéticas.

Ela fecha, assim, outro ciclo, o das pessoas brilhantes, únicas, que perdemos nos últimos anos, que representavam muito do que somos. Foi-se Moraes Moreira, o poeta da avenida, Paulo Gustavo, Aldir Blanc, Elza Soares e muitos outros. Artistas, mímesis e sínteses dos Brasis, não receberam uma nota oficial do perverso Presidente da República. Ainda bem, o homúnculo que por dentro se corrói na alvorada não está à altura da arte.

Gal Costa pegou aquele velho navio. Minha HoneyBaby partiu cheia de anéis.

A serenidade se foi quando, pela primeira vez em muitos anos, preferia o tédio à vodka. Queria uma casa no campo com uma piscina de água azul.

De Amaralina.

Walter Hupsel para o Microphonia.

--

--

Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!