OUTROS TONS

A História de um Homem Invisível

Gilberto Filho
Microphonia
Published in
2 min readMay 24, 2020

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L’Heureux donateur — René Magritte, 1966 (montagem).

Um mal parido, quase cuspido. Nem se sabe como vingou. Sem nome, sem pátria ou posses, cresceu entre espinhos e tornou-se um. Vivendo sempre à margem, abrigava-se na escuridão, que ao menos lhe dava o alento do pertencimento. E, mergulhado, virou sombra. Mais. Atravessava as noites, invisível. Não tinha outro dom.

A cidade era um grande espinhal também, projetando suas pontas por cima dos muros e por baixo das marquises. Seus prédios furavam o céu e os seres que lá habitavam atiravam flechas através dos olhos.

Tudo nela lhe parecia hostil, mas ainda sim vivia de suas sobras, esgueirando seu corpo macilento numa eterna busca através da penumbra onipresente.

O mundo urbano era previsível com seus fluxos e refluxos, tal qual a maré. Seguir esse ritmo era imperativo para sobreviver: há um momento onde as lixeiras estão cheias; há outro para que os sacos pretos se acumulem em frente aos prédios.

A vida não lhe dói mais, o frio não provoca, tampouco a fome lhe devora. Daí porque mais uma dose de qualquer coisa é sempre bem-vinda. Despertando os sentidos o coração acelera ou retarda, os olhos reviram, o corpo contorce. Com sorte, sai um sorriso esfumaçado da boca banguela.

Sucedeu que algum dia a vida não se repetisse. As ruas e lixeiras estavam vazias. Havia um silêncio ensurdecedor tomando a cidade, que pela primeira vez lhe pareceu estranha. Percorreu os quarteirões desocupados sem resposta. Teria aquela gente ficado invisível também?

E assim se deu, noite após noite até que, entocado sob o vão de uma ponte, sentiu como se espinhos lhe perfurassem o estômago. Em seguida o suor escorreu pela crosta da pele o seu orvalho gélido. Da boca, uma espuma sanguinolenta vertia seu gosto de fel. O corpo abrasado se contraía.

Levantou-se com esforço, tateando sem equilíbrio o concreto úmido até subir à rua. Uma multidão passava apressada pela calçada sem lhe ver. A misericórdia não tem pernas. Febril, lamentou ser invisível. Deu meia dúzia de passos vacilantes pelo asfalto até ser acertado em cheio.

Do chão ensanguentado, mirou um céu profundamente anil, como jamais o vira antes. O Sol cintilava um lindo rosário de cores. Logo o povo se aproximou e finalmente lhe viu. Em plena contramão, sorriu e morreu maravilhado.

Gilberto Filho para o Microphonia.

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