GINGER HEAD

Amanhã, Eu Ligo

Rogerio Rios
Microphonia
Published in
2 min readJun 21, 2020

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Desanimado. O cemitério descuidado de latinhas e garrafas vazias em seu quintal estava assombrado pelos mesmos fantasmas de sempre. Espíritos do tédio e do descaso, que se incorporam nele mesmo, assenhorando-se de sua vontade e de sua disposição.

Não há mais sextas-feiras e a sua feira, já era a de segunda. A música já pesa pouco e a arte se encerra numa timidez solitária e isolada. Em seu apartamento atrasado, em prestações ele vive.

Cada vez menos confiante, suas certezas se desvanecem em conceitos inacabados e imprecisos. Notícias de um amigo distante que se vai, cedo demais, seguidas por outras tantas incontáveis maledicências customizadas ao gosto do freguês.

Desliga a TV, mas não pode sair. O ar é perigoso agora. Lembra-se de como era menos grilado no ano passado.

Desinteresse, apatia. Sem vontade até pra indignar-se. A insônia hoje é o menor de seus males. Arrepende-se de ter dado cabo ao relacionamento de meses atrás. Afinal, é melhor brigar de vez em quando do que se embriagar dessa paz insuportável.

Inevitavelmente, ele realiza-se de que este estado é insustentável. E a saída é procurar por uma. Mas onde está a agenda? Ah, ela afogou-se com o seu aparelho móvel. Entretanto, a sua frágil memória o fez fotografar na retina apenas o número dela.

— Sim, que se foda o orgulho — ele pensou.

— Vou ligar e confessar os meus desatinos, aproveitar e pedir desculpas por todas as vezes em que bebi a água pelo gargalo — tristemente lembrou e sorriu.

Uma redenção patética e que apenas faria sentido se estivesse em seu leito de morte, assim acreditava.

É mesmo curioso como as pessoas agem quando estão em seu limite.

Apesar de seu niilismo excêntrico, ele cede ao que restava de sua esperança e enfrenta a sua provável humilhação com a coragem que só o descalabro pode proporcionar. Reflete mais uma vez sobre as consequências nefastas que essa atitude vai trazer ao seu amor próprio. Ainda assim, lentamente vê seus dedos teclando os dígitos que o reconectarão ao seu passado recente e agridoce com aquela que fora a fonte de suas angústias e de seus êxtases.

Mas algo o detém. Um lampejo de razão o acomete:

— Não é uma boa hora. Estou bêbado de novo. Ela não gostava de me ver assim. Amanhã eu faço isso. De cara limpa.

Amanhã, eu ligo.

Rogério Rios para o Microphonia.

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Rogerio Rios
Microphonia

Ilustrador Publicitário, Redator de HQ, Cantor do Kabessas de Gengibre, Cervejeiro Praticante, devoto à arte, adorador da cultura e adepto à consciência.