ON THE ROCKS

Caminhos

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
3 min readMay 19, 2020

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Vague 1,2 — Antoni Tàpies, 1982.

O meu processo de escrita é um vento, indeterminado, incalculável fora do caos. Às vezes escrevo algo que julgo ter ficado bom em poucos minutos, outras tantas empaco em algo que simplesmente não flui, como o mormaço do fim da manhã.

Tem dois textos que estacionaram, que volto a tentar burilar por achar que tenho algo a dizer ou a expurgar de mim. Mas estão lá, sem mover um milímetro, pesados como uma scania.

Aí vou me caminhando para outros textos e outras ideias (acho horrível escrever ideia sem o acento agudo. Deve ser sinal da velhice, certeza que minha avó reclamava da troca do PH de Microphonia pelo insosso F de farmácia. Mas aqui resistiremos, pelo menos no PH. Já ideia fica assim mesmo, ou o editor reclamaria que eu escrevi errado).

Falei tanto de se perguntar os Porquês, de examinar o que é essencial a nós, de que temos um mundo novo pela frente que acabei caindo, claro, na música.

Raul diria não saber para onde estava indo, mas que fazia o seu caminho. Típico hippie que era, pensava e penava para dentro de si.

Para mim é o contrário, preciso saber para onde vou e para onde vamos, infelizmente. O cotidiano puro, não indagado, é simplesmente aceitar o destino que não traçamos. Preferia mil vezes ligar o foda-se e viver assim como Raul, mas não consigo. Meus anseios só se realizam coletivamente. Eu não me basto.

Isso traz muitos questionamentos e angústias, a ignorância seria mesmo uma benção.

Aí, pensando justamente em caminhos, me vieram algumas músicas na cabeça, uma já citada.

Começo pelo primeiro disco que comprei na vida, na Mesbla do shopping Iguatemi, ali na pré-adolescencia. ROAD TO RUIN, até hoje considero o melhor disco do Ramones. Era a Nova York cinza, desiludida, depauperada e sem futuro. A capa, brilhante, mostra justamente isso, e aquelas músicas trafegavam entre o escapismo do amor no Burguer King até o disco fechar numa melancolia absurda numa letra minimalista: É um longo caminho de volta a Alemanha.

Um pouco antes do Ramones e sua NY sombria, Chico Buarque também escrevia sobre caminhos, ou pelo menos é assim que a ouço. Construção foi lançada durante a pior época da ditadura civil-militar e, além da proparoxítona genialidade, as metáforas ali desenhadas me fazem refletir sobre possibilidades e, logo, caminhos.

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público.

A música é um soco no estômago, como 1971 exigia. A morte ronda a todo momento, apesar das breves epifanias da dança, da gargalhada, do flutuar, do príncipe. E na ironia final agradece ao mesmo tempo que deseja uma vingança: DEUS LHE PAGUE por tudo isso. Um dia há de pagar.

Mas não quero ser derrotista, negativo, queria só ser ignorante para não me consumir nos caminhos tortuosos da minha mente e do nosso futuro.

Então, para terminar essa breve reflexão quase filosófica, mais uma música, mais um momento.

Meu caminho é de pedra, Milton, mas eu posso sim sonhar. E SONHO.

Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver

Contra tudo, contra todos, permanecerei vivo.

Contra a morte, a vida.

Contra a dor, a dança.

Contra o tédio, a vodka.

Walter Hupsel para o Microphonia.

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Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!