O CAMINHO DAS PEDRAS

De Batom e Coturnos

Angela Cristina
Microphonia
Published in
5 min readApr 24, 2020

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Yoko Ono, pintura caligráfica.

“O homem é definido como ser humano e a mulher é definida como fêmea. Quando ela comporta-se como um ser humano ela é acusada de imitar o macho.” (Simone de Beauvoir)

Empáfia minha, iniciar uma crônica em um universo denominado instintivamente masculino com uma citação dessas. Mas, é inegável que o papel da mulher na música (ainda que no rock’roll, que foi criado dentro da ideologia de dilacerar com os padrões convencionais da sociedade) sempre foi e continua sendo secundário e rotulado como “de Mulher”.

O negócio é tão sério que certa vez o cantor de uma certa banda, que produzi em um evento, me disse “na lata” que eu e a Mariana Brazil, a então esposa de Cândido Sotto (Dr. Cascadura), éramos groups que deram certo. Pasmem!

É irrefutável que temos inúmeras “heroínas” na música. Na maioria, cantoras de vozes belíssimas e doses cavalares de insolência e petulância para romper os paradigmas e as barreiras do machismo até chegarem ao mainstream. Vide Cármen Miranda, Aretha Franklin, Dalva de Oliveira, Maysa Mattarazzo, Elis Regina, Janis Joplin, Tina Turner, Rita Lee, Joan Jett, Piaf e tantas outras. Mulheres que pagaram um custo altíssimo e tiveram que dar a cara a tapa para seguir em frente. A maior partes destas biografias são sobrecarregadas de discriminação, abusos sexuais, morais e violência física — por parte de maridos, empresários, pais, produtores, colegas de trabalho e etc.

O instrumental das bandas geralmente é composto por músicos (homens) e quando alguma mulher é uma boa instrumentista ou musicista (alías, muitas pessoas nem usa o termo musicista, as chamam de músicas), sempre ressalvam-se que para uma mulher “ela toca bem” ou então “toca como um homem”. Porém, não somente na música ou nas artes, as mulheres sempre foram subjugadas e quando chegam a fazer um mesmo serviço recebem salários inferiores, a exemplo das áreas da construção civil, automotiva, metalurgia, motoristas e muitas outras profissões.

Contudo, no próprio domínio, estigmatizado como feminino, permite-se ser capitaneado por homens, como: a gastronomia/culinária (Os Chefes de Cozinha), Alta Costura (Os Estilistas) e cuidados domésticos (serviços gerais). A mulher tem que batalhar até pelo espaço que de alguma forma lhes fora impetrado.

Sandra de Cássia — Um Capítulo à parte.

No rock não é muito diferente, principalmente em nosso estado. E não deveria, porquê o mais importante e longevo FESTIVAL DE ROCK da Bahia é fomentado, administrado e gerido por uma mulher, que desde 1991 luta pelo projeto, conseguindo realizá-lo apenas três anos após, em 1994, a sua primeira edição. Agora, em 2020, o PDR completou 26 anos.

Além do PALCO DO ROCK, a Sandra também realizou 10 edições do Festival ROCK DE BATOM, evento voltado para bandas femininas, algumas delas formadas exclusivamente por garotas como: LOU, LOLITA, LILLIT, GAROTAS DE LIVERPOOL, ENDOMETRIOSE E LISBETH. Sandra de Cássia sempre teve uma marca forte e desbravadora no rock, sendo a primeira cantora Punk Hard Core Crossover do estado e lamenta que no período não teve condições de montar uma banda exclusiva de garotas por conta da falta de material humano. E de quebra ainda sobra energia para agitar o Canal REAÇÃO onde convida personagens do rock baiano para um bate-papo. É pouco?

Tatiana Lima — A Militância

Ainda garota, num período onde fervilhavam bandas e festivais no panorama nacional e junto a ele o baiano, gerados pelo “boom” do ROCK OITENTISTA, Tati já estava engajada em ações pró-rock e antenada com os bastidores do “cenário”. Como jornalista e editora de importantes jornais do estado, sempre abriu espaço para o rock, evidenciando a importância do papel da mulher dentro desse contexto. Colecionadora de um acervo invejável de fotos, livros, discos, artigos e muito conhecimento sobre as várias vertentes do rock’roll como um todo. Mergulhou fundo na música em todas as suas formas, hoje atua como professora de Cursos de Produção Musical do Bacharelado Interdisciplinar de Cultura da Faculdade Federal do Recôncavo é licenciada em música popular brasileira e Doutora em comunicação e cultura contemporâneas, desenvolve atualmente estágio pós doutoral na Universidade Nova lisboa.

Curadora e organizadora do projeto Clube da Radiola, do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT-URFB) e do Festival Paisagem Sonora — Mostra Internacional de Arte eletrônica do Recôncavo Bahia. Tatiana Lima sempre teve uma militância efetiva e “fervorosa” com o espaço da mulher na sociedade, sendo uma importante porta-voz feminina e de grande relevância, ouso a dizer que pouquíssimos “caras” do nosso métier (rock’roll) tenham tamanha propriedade para falar sobre o tema como ela. MAMITA (como nos chamamos) você é minha ídola!

Advogando em causa própria

Confesso que nunca me senti preterida ou intimidada em trafegar por esse universo recheado de testosterona, não me intimido com isso. Inclusive, me acostumei com o universo “mal criado”, em ouvir as piadas grosseiras, as confissões de infidelidades, palavrões, farras em camarins, troca de roupas, egos exaltados, bebedeiras e toda uma série de comportamentos e padrões que são muito particulares ao universo “machão”. Não existe uma zona de conforto específica para mim. Nem eu preciso! Se estou no inferno abraço o capeta, mesmo.

Compreendi que para mulher atuar com rock ele precisar ser um “homem”, criar uma couraça e calçar um coturrno também. O que de fato me incomoda é essa rotulação “do rock de mulher”, “banda mulher”, “mulher que toca bem”. Não estou aqui para levantar bandeiras como forma de pedir uma mea-culpa pelos danos causados pela toxidade que tais categorização nos causa, mas por um reconhecimento de que nossa participação é legítima e deveras importante em todas as esferas da sociedade, bem como, na música e sobre tudo no rock. Gostamos disso, estamos aqui e queremos fazer parte do fluxo como um igual e não como um “a parte”. Não precisamos de permissão, aval ou de reconhecimento algum para estarmos por trás ou em cima de um palco fazendo o que nós queremos, não estamos pedindo consentimento. “Nós não vamos pagar nada! (Raul Seixas)”.

Acredito no “pussy power” que Janis Joplin e Rita Lee defenderam tanto. O Rock’roll é coisa de mulher, sim! Guitarras distorcidas, baterias groovadas, linhas de baixos “gordas”, vozes melódicas ou graves são nossos atributos também. Também temos punch, glam, rebeldia e atitude.

Não podemos ser um apêndice rascunhado nessa história, somos também “a história”. Vamos olhar o panorama com a mente aberta e imparcial e não do que é feito por quem. Não precisamos mais disso. Virou démodé e lugar comum. Não cabe mais identificação de um profissional pelo seu sexo. A vaga que está aberta, cabe aos bons.

A menstruação não tira o talento e habilidade de ninguém, muito menos o batom.

Não sou atriz, modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima.

(Rita Lee — “Pagu”)

Ângela Cristina para o Microphonia.

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