OUTROS TONS

De Sangue e Lágrimas

Gilberto Filho
Microphonia
Published in
3 min readAug 1, 2020

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Fotograma do jogo The Walking Dead Season 2.

Acordei novamente desse pesadelo. O suor escorre e o estômago parece atravessado por espinhos. Ainda assim levo as mãos ao rosto, tentativa angustiante de me livrar desse cheiro de pólvora e carne queimada.

É esse inferno que habito há meses, cheio de noites assombradas pelo mesmo sorriso de escárnio. Ele sangra e ri. Miro em sua testa e atiro. Uma, duas, três vezes, mas ele não morre. Ri, o miserável, e ri porque as balas cravejam todas em mim. Então desperto atormentado por sua risada infame.

Procuro e me pergunto onde guardei a porra do remédio. Mania de merda da Luíza de guardar tudo. Bota essa merda na cabeceira. Merda. Merda!

Saio do quarto cambaleando à procura, arma em punho. É só um remédio, eu sei, mas o hábito é incorrigível. Polícia não dorme, cochila. Ainda mais quando deve. Aí desconfia até da sombra. Acho a caixa, enfim, engulo a seco um e dois, a água que venha depois.

Não foi a primeira e nem a última morte em minhas costas. Era só um moleque, um vagabundo já baleado no estômago. Dava pra ver o sangue jorrando pelo buraco. Ia morrer de qualquer jeito. Andrade e Matias discutiam quem o acertou. Com a mira deste e a lerdeza daquele ficava difícil concluir. Apontei bem na cara. Só então percebi o seu sorriso vermelho. Era um trapo caído que me olhava e sorria.

— Vai melar o uniforme, Sargento. Distancia aí. — Falou o mira de merda, crente de ter ganho a discussão sobre quem acertou o vagabundo.

Já vi muito marmanjo se mijar no último instante. Vi traficante clamar por Deus e ladrão chamar pela mãe. Mas sorrir, ainda mais quando se tem um fuzil apontado pra cara, é muita ousadia. Esse moleque não tem mais culhões que eu, pensei. Então puxei a trava e sentei o dedo. Foi sorriso pra todo lado, pra puta que o pariu.

No outro dia tava lá o sorriso estampado no noticiário, posando de herói: “trabalhador, líder comunitário, pai de dois filhos”. E tava fazendo o que na porra da boca? Isso o jornal não disse. Nem no dia seguinte; e nem no outro. Só jornalista falando merda, promotor querendo aparecer, a turma dos direitos humanos, o caralho. Sobrou foi um beó pra gente.

Mas, porque diabos, não sei, seu fantasma volta assombrando minhas noites. Me inquieta, tira o sono, a saúde, o juízo. Não posso matar o moleque outra vez, tampouco posso fugir do medo. Sinto ele na pele.

A dor se expande apesar do remédio e o coração parece bater no abdômen. Com uma mão na barriga e outra na arma, encosto as costas na parede e lhe roço até o chão. Voltou o suor frio, o cheiro insuportável, aquela sensação horrorosa. Ele está aqui e quer me pegar. Não vai. Não deixo.

Gota a gota o medo transborda pela pele, boca e olhos. Esse maldito me persegue, inclemente. Seu espectro se aproxima através do corredor escuro. Estou aterrorizado. O coração explode suas batidas sem caber em mim. Ouço meu nome. Não posso esperar esse diabo me sorrir. Tensiono até a última fibra e disparo. Um corpo desaba, mas o choro me paralisa e cega. Então a luz foi acesa e os gritos me trouxeram de volta à realidade.

— Mãe! Mãe! Mãe!

Nos braços de minha filha estremece Luíza, ensanguentada. Busco com urgência o seu olhar, que não me procura mais. Só um sorriso encarnado ri da minha miséria.

Gilberto Filho para o Microphonia.

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