COZINHA DO CÃO

E Kurt Vonnegut Nos Pede Desculpas (divagando na estação da Lapa)

Gustavo Rios
Microphonia
Published in
5 min readOct 20, 2020

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Caminhava naquela tarde de outono, esbarrando nas pessoas e ouvindo barulho da rua, dos ambulantes, dos carros e da obra do futuro metrô. Eu tinha cigarros; cinco reais me sobravam nos bolsos.

Foi quando vi um livro, “Matadouro 5”. No velho Sebo da Lapa.

Eram poucos os motivos pra que eu pudesse me sentir mais ou menos sortudo e feliz. O fato de eu ainda procurar emprego, e o fato de que eu tava começando a dever mais do que meus futuros salários dariam conta, caso os recebesse, pareciam menos importantes que o simples fato de ter conseguido comprar o tal livro. A sete reais.

Sete mais cinco (que eu tinha nos bolsos das calças) resultam em doze. Doze reais. Devia ter alguma relação com minha data de nascimento, meu ascendente e minhas crenças mais ou menos confusas acerca da vida — isso se eu acreditasse em numerologia. Mas passo léguas dos números que dizem algo. Da combinação de estrelas a prometer dias melhores. Ou mesmo da água benta em cima de minha antiga TV, fluindo energia enquanto um pastor me pede grana. Enfim, não creio nessas coisinhas frágeis que nos trazem alguma falsa e amalucada crença. Eu tava feliz pelo livro, pura e simplesmente.

Dei uma lida ali mesmo, em pé. Vários livros do Kurt Vonnegut vêm com prefácios geniais. Geralmente são textos que explicam como e quando seus romances surgiram; ele age como se estivesse nos incomodando com seus parágrafos ágeis, suas histórias inesquecíveis — não à toa o “The New York Times” o chamou de “Um divertido profeta do caos”.

E ele nos pede desculpas.

O Kurt estava como prisioneiro de guerra quando aconteceu o bombardeio de Dresden. Pra quem nunca ouviu falar, foi um dos maiores ataques ocorridos na Segunda Guerra Mundial. E ele viu algumas coisas suficientemente fortes para que pudesse nos afirmar, ainda que de forma extremamente delicada e criativa, que ao visitar a mesma cidade anos depois, certamente o solo estaria tomado por uma espécie de “pó feito de ossos humanos”.

Sim, existe delicadeza na frase. A desgraça e a tragédia ficam por conta dos que pintaram o quadro. Com “Guernica” foi a mesma coisa: não podemos culpar o Picasso pela feiura da obra.

Kurt descreveu em seu livro “Matadouro 5”:”Dresden era uma grande chama. Essa chama devorou tudo o que era orgânico, tudo que poderia queimar”. Da experiência veio o livro. Fantasioso e belo. Original, meio louco, doce. Um clássico que poucos gostarão, certamente.

Pensei em minha situação, ali, em pé. Os doze reais nos meus bolsos, os meus cigarros de baixos teores. Tudo muito certinho e correto. Fiquei especulando minutos depois, aquilo seguia comigo, enquanto tomava um refresco de guaraná da Amazônia numa lojinha de produtos naturebas na velha Lapa. Pensava em como eu, apenas e tão somente um sujeito de bairro, poderia pensar em escrever um longo romance cheio de pretensão e fúria. Mais uma vez — igualando o sentimento que pintou quando conheci o Henry Miller anos antes dessa tarde -, me senti esmagado. Verdadeiramente esmagado.

Quem era o cara que optou por uma vida de cozinheiro na época e que agora traçava outro rumo menos inventivo e alegre? Quem afinal era eu pra poder acreditar em bobagens como literatura, quadrinhos, arte sincera e no poder restaurador dos longos cabelos, das viagens não concluídas e dos discos do “Jethro Tull”? Por que eu escrevo, finalmente? De onde posso tirar todo o universo que irá me converter num sujeito menos sacal e de alguma forma eterno?

Eu nunca vi uma guerra de fato. Eu nunca presenciei a morte fulminante de amigos em trincheiras frias, inóspitas, distantes de casa. Ainda durmo sem o uso de tranqüilizantes. E ainda perco o sono quando os desejos e os erros pesam às costas.

Devo respeito a esse cara, o Kurt. Morto em 2007 num dia onze, numeral perto do doze que gerou essa epifania. Devo agradecer a ele por ter escrito Um “Pássaro na Gaiola” (em minha opinião o melhor), “Barba Azul”, “Café da Manhã dos Campeões”. Devo também agradecer ao cara do antigo sebo Berinjela que há cerca de quinze anos atrás me apresentou ao Vonnegut. Numa tarde em que eu iria, equivocadamente, comprar mais algum livro “maldito”.

Enquanto o Kurt trilhou um caminho diverso — tinha um grande material em mãos, no caso as cenas da guerra, mas preferiu um livro carregado de fantasia, sem nenhuma vontade de glamourizar o que nós, tolinhos, adoramos ver em filmes e na TV — eu tento, na medida do “meu possível”, lembrar os fatos que me marcaram; uma reinvenção da vida. Pequenos atos que se tornam grandes, quando vistos por meus olhos.

Depois do dia em que fui apresentado ao Vonnegut, saquei que escrever seria primordial. Iria tirar leite de pedra. Iria inventar a pedra e o sumo. Contar a minha história do meu jeito — e isso acabou se convertendo numa reiterada promessa silenciosa, feita ali mesmo, naquele balcão de vidro entulhado de gente, na Estação da Lapa, nos idos de 2007. A mesma promessa feita em anos passados, também de forma silenciosa, quando esbarei no Kerouac, no Bukowski, no Hermilo e no Murilo Mendes. Eu vislumbrei um caminho mais amplo. Agora o único possível, apesar e além.

Naquela tarde fiquei olhando a lentidão dos ônibus enfumaçados, cheios de pessoas tão comuns. Tomei o refresco de guaraná — uma opção razoável que me custou as moedas restantes, os cinco reais que sacolejavam no bolso da camisa. Lembro que acendi outro cigarro e caminhei um bom pedaço até minha casa. O Dique com suas águas cinzentas; a avenida Bonocô com seus carros sempre apressados, como se a vida se limitasse à setenta por hora.

Eu enxergava um horizonte maior à minha frente. Maior do que aquele acima da velha e imponente estrutura metálica que sustentava a velha e suja Estação. Era o mesmo metal, o mesmo ferro escuro e frágil que segurava o chão sob meu pés. Tudo isso naquela tarde de outono. Na então destroçada Estação de Transbordo Clériston Andrade.

Obs: repost revisado e revisitado de um texto antigo. Mas ainda comovente. Ao menos, pra mim.

Gustavo Rios para o Microphonia.

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Gustavo Rios
Microphonia

Escritor baiano. Participou de coletâneas, sendo “Soteropolitanos” a mais recente. Também é autor do livro “Rapsódia Bruta”, entre outros.