BANDA DESENHADA

Elegias em 15 Segundos

André Lissonger
Microphonia
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7 min readJul 3, 2020

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Sabará/MG, 2015

Novamente em Sabará, encerrando minha terceira viagem de estudos sobre o barroco mineiro. Dessa vez, chegando tarde da noite, achei melhor me hospedar logo. A pousada adaptada no antiquíssimo Solar Sepúlveda foi a melhor alternativa diante do horário avançado.

Depois de descarregar a bagagem, a última taça de vinho e as mantas arrumadas me pareceram suficientes para atenuar o cansaço. Mas a madrugada, no enorme e estranho quarto colonial, reservou-me uma grande surpresa… fui acordado por uma conversa inquieta.

— Você só tem quinze segundos!
— Preciso me desculpar, é muito pouco, Emanuel.
— Nada mais que isso! Já viu quem está te olhando?
— Essa cobrança não ajuda em nada!
— Nem devíamos mais ter voltado aqui.

Meu torpor foi subitamente rompido por um susto. A visão do vão interno foi se acentuando. Um homem e uma mulher trajados de figurino antigo e claro, relativamente informal, discutiam apressadamente.

— André, preciso te pedir desculpas! — direcionou-me voz e olhar, a ansiosa balzaquiana.

Quase tive um infarto de tanto medo. A respiração acelerada lembrou-me as antigas crises de asma da minha irmã mais velha. Esfreguei, pisquei e marejei os olhos. Mas não! Continuavam lá. E ainda acompanhados de outros seres menores, sentados pelo chão, feitos de alguma substância imaterial, etérea, tipo uma fumaça branca — formas de crianças meio que se desmanchavam ou reapareciam em algum espaço mais próximo ao muxarabi de um balcão patinado.

— Vamos, querida? Não há mais tempo!

— André, vá ao coro da igreja! Guardei lá tuas canções. Menti quando disse que haviam se perdido na nossa última viagem. Desculpe-me! Por favor, me perdoe? — O tom era melancólico, breve e sincero.

— Maria Eduarda, seu tempo está acabando! Exclamou novamente o outro.

— Não! Preciso de mais tempo para as últimas palavras — Emanuel puxou-a subitamente pelo antebraço e atravessaram a grossa alvenaria caiada que limitava o vão. E os pequeninos seres desmancharam-se de vez.

Um leve e sutil aroma de lavanda penetrou naquele ambiente meio mofado… e ajudou-me a atenuar, aos poucos, o impacto causado por aquela visão. Levantei, descortinei os tules da janela e abri as duas folhas em caixilhos de venezianas de madeira. A gélida baforada de ar invadiu o quarto, sem timidez, intensificando a atmosfera de lavanda.

Quase não dormi mais. Um turbilhão de perguntas se fazia de rendez-vous na minha mente atordoada. Quem é ela? São espíritos? O que eu fiz de errado? Por que as desculpas? Até que um velho e conhecido koan zen-budista começou a latejar no meu cérebro: quem foi você nas suas outras vidas? Mas o cansaço, o silêncio da noite fria e a centenária cama aconchegante do leito fizeram-me as honras de Morfeu.

Após o típico café da manhã mineiro, repleto de queijos, desisti do meu roteiro anteriormente programado e decidi primeiramente visitar a “igreja”. Coisa de gente impressionada com “sonhos”. É claro que aquilo tinha sido somente um sonho.

A “igreja” citada por Maria Eduarda era a Igreja de Nossa Senhora do Ó¹. Lá estava eu, mais uma vez e cedinho, diante daquela “arquiteturazinha” que parece ter sido feita para caber no bolso de qualquer pessoa.

Mágica! Na sua ambiência em meio àquelas casinhas alinhadas e da textura harmônica dos morros neblinados ao redor. Humilde e sublime, na sua escala, ritmo, e proporção estrutural… corporificando uma canção barroca.

Nesse dia, abandonei a câmera fotográfica e o celular apenas tocava baixinho uma belíssima peça, em cravo, de Scarlatti.

Sob uma vista em escorço, da capelinha, investi ali um pouco da minha rotina de desenhista de rua. Após um breve croqui aquarelado externo da charmosa edificação, ouvi suas portas maciças se abrirem.

Que majestoso é o seu interior! Um dos meus “teatrinhos” barrocos prediletos. Um dos mais preciosos monumentos do barroco brasileiro.

Adentrei a pequenina nave, mas, dessa vez, percorri observando cada detalhe das suas pinturas e sua incrível marchetaria. Algumas músicas barrocas percorriam minha mente que também se inebriava pelo acúmulo de tantas rubras e douradas chinesices visuais.

Nesse ínterim, um novo choque de “realidade” e da inquietante lembrança da noite passada me pôs de joelhos, ao perceber o insinuante olhar de Maria (do Ó) na imagem do altar.

Disfarcei e logo me esquivei daqueles olhos que lembravam o de outra Maria. Seduzido, rapidamente bebi o último gole de água mineral engarrafada que me sobrou após tê-la utilizado nas últimas aquarelas. Evitando encará-la novamente, fugi pela sacristia azulejada e encontrei a escadinha de acesso ao coro. Respiro de alívio.

Chegando ao mezanino assoalhado, de um lado, era só a paisagem vista pela espessa parede da fachada ou, ao contrário, do outro, a vista privilegiada para o altar e a nave abaixo, banhados em rubro e dourado.

Enfim, um momento de paz.

Na penumbra do coro, fechei os olhos e iniciei um conjunto de reflexões. Um misto de orações e agradecimentos às pessoas queridas.

Porém, o silêncio divino ia, aos poucos, sutilmente sendo interrompido pelo som de um cravo sendo tocado ao meu lado. Era Emanuel, modulando volutas e (contra) volutas de notas barrocas que ressoavam baixinho, só que preenchendo insistentemente o ambiente.

Anjos com feições orientais começaram a se despregar das paredes, das pinturas, dos retábulos. O meu medo se reinstalara.

Do meu outro lado, uma mão delicadamente tocou o meu ombro e uma voz feminina me fez gelar:

— Preciso me desculpar! Essas músicas e letras são suas e de seus companheiros em vida. Estou te devolvendo para que não pense que as roubei. — Era Maria Eduarda, com algumas dezenas de fólios manuscritos e amarelados pendendo no outro braço.

— São as músicas que você compôs e não consegue mais se lembrar. Por favor, preciso que me desculpe, tome-as de volta! Dê-me seu perdão e poderei partir sem essa culpa!

— Duda, seus quinze segundos chegaram ao final! — Assim, Emanuel insistiu, após interromper o seu sacro micro concerto.

Pasmo, folheei as páginas… estava tudo ali! Todas as minhas cartas de amor com poesias juvenis e as tentativas de poemas da adolescência; as canções esquecidas dos tempos da Utopia (e que só Ordep Lemos poderá se lembrar) e todas as músicas do Dejavù (incluindo um velho autógrafo de Cássia Eller); dezenas de composições com acordes desenhados à mão por Joniel Franco… todavia, de nossas harmonias e melodias que não consigo mais recordar. Músicas e letras de tempos futuros… estava tudo ali! Senti, desconcertado, até uma certa saudade do futuro.

Porém, o que mais me impressionou, após folhear meus velhos alfarrábios, foi (re)encontrar o caderno perdido das letras de Peu Sousa.

Peu, muito jovem e antes de montar uma banda, havia me emprestado um caderno inteiro de letras inéditas… e convidou-me para montar um grupo de rock. Naquele período, meio dos anos 90, eu estava iniciando uma outra nova banda, a Dejavù… e, infelizmente, não fiquei muito convencido da sua performance. O azar foi o meu! Peu Sousa, depois, teve uma carreira brilhante!

Lembrei-me que tinha esquecido de devolver seu velho Tilibra pautado e repleto de sonhos. Nunca mais os encontrei… Nem Peu, nem seu caderno e tampouco os seus sonhos.

Naquele absurdo átimo de tempo recordei-me, ali mesmo no coro, da sua trágica morte. Nesse momento, imediatamente, suas frases começaram a formar palimpsestos sobre os meus fólios empoeirados e se desmaterializaram nas linhas das minhas mãos.

Em lágrimas, virei-me lentamente em direção à Maria Eduarda, e fui dizendo: — Não precisa se desculpar! Se alguém precisa pedir desculpas, sou eu. Mas, se for necessário, sinta-se perdoada.

Sem chances, minhas palavras perderam-se no ar. Ela já voltara ao olhar de Maria, lá abaixo no rebuscado e distante altar.

Como eu gostaria de ter composto uma Elegia à Peu Sousa.

Sinos tocaram dez badaladas. A fumaça e o cheiro do sacro incenso inundaram a ambiência. Fustigados adentrando a nave, fiéis e turistas começavam a se misturar.

Adiei meu retorno ao lar, na Salvador da Bahia, e ao mar. Ao contrário, tomei o trem que leva a Vitória do Espírito Santo. A encantadora repetição geográfica da paisagem dos morros das Minas Gerais e o sacolejo rítmico das ferragens da composição da Vale do Rio Doce me conduziram ao sono e novamente aos sonhos…

— Duda, querida musa, está satisfeita?
— Sim! Era necessário, Emanuel.
— E por que esse olhar melancólico?
— Escondi dele, além de outras coisas, as oportunidades que teve de ouvir as canções do Clube da Esquina!
— E então?
— Estou tranquila, só com saudades! Mas isso ele merece… pelos seus descuidos em vida, além desse de tê-las inicialmente desprezado. Ele deve o seu eterno retorno ao que realmente importa.
— Como assim?

E como se tivessem passado apenas quinze segundos, acordei com a música ambiente do trem.

Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar

Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça

(……………)

Nota: “Nossa Senhora do Ó é um nome alternativo para Nossa Senhora da Expectação do Parto ou do Bom Parto. O nome “do Ó” surgiu do hábito de se cantar antífonas na véspera da comemoração do seu dia festivo, que iniciavam com uma exclamação ou suspiro, Oh!”. A Igreja de Nossa Senhora do Ó é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, juntamente com o Centro Histórico de Sabará e os conjuntos da Rua Direita.

André Lissonger para o Microphonia.

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André Lissonger
Microphonia

Microphonia editor and reporter . Architecture . Urban planning Professor . Rock music . Urban sketchers . Art