ON THE ROCKS

Entre o Hoje e o Ontem

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
3 min readMay 4, 2020

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Sem título — Iberê Camargo, 1993 (Fundação Iberê Camargo)

Texto passado escrevi como estamos espremidos, comprimidos, entre o ontem e o amanhã nessa temporalidade efêmera do hoje que contraditoriamente nunca acaba num eterno dia da marmota.

Por enquanto a provocação do Sex Pistols parece ser a única verdade: No Future. Não sabemos não só o que será o amanhã, mas também quando será. Não há previsões e nem horizontes que possam ser traçados.

A mim cabe pensar, então, sobre “os ontens” e sobre como esses nos trouxeram até aqui. Seria preciso um Mediterrâneo para explicar, mas como não tenho essa competência, vou largar uns pensamentos por aqui mesmo.

Não sei se a História ensina, tenho cá para mim que não, mas sei que ela explica àqueles dispostos a ouví-la.

Pois bem, essa crise que estamos passando, nessa perfeita tempestade de crise política, institucional, econômica e pandêmica, é talvez o momento ideal para refletirmos os caminhos que nos conduziram até aqui. O que temos que evitar, a todo custo, é justamente o que sempre fizemos: naturalizá-los.

As mortes de COVID-19 já chegam a mais de 7.000 por aqui, e estimam que o número real seja no mínimo 200% maior. A doença, que chegou por aviões vindos das férias européias (e um da FAB vindo da Flórida), durante algum tempo ficou restrita à classe A.

Já não é mais verdade; os contágios e as mortes aumentam drasticamente nas periferias das cidades brasileiras, e a explicação é mais que óbvia: densidade populacional, pouca ventilação, falta de saneamento e muitas pessoas morando na mesma casa. As periferias têm taxas de letalidade de COVID até dez vezes mais que as áreas nobres.

Nossas cidades são uma ode à exclusão e as achamos normais.

Além disso, o isolamento social não tem sido tão obedecido assim nas periferias. Claro, porra, eles precisam trabalhar, sair às ruas, até mesmo ter algo para respirar além das condições de moradia. O trabalho, e seu desespero, é para não morrer de FOME. Há alternativas a isso, mas precisaríamos de uma rede de bem-estar que foi destruída nos últimos anos. Agora tem seus reflexos no adoecimento e morte.

Mesmo o auxílio emergencial, conseguido à forceps, não teve sua implementação de modo decente, erros, filas quilométricas. Não se enganem, não é incompetência, é projeto. A ideia é tensionar ao máximo para que, sem outra possibilidade, justamente os mais vulneráveis peçam o fim do isolamento, nas ruas, como apoio tácito ao governo.

Nossa economia é uma ode à exclusão, e a achamos normal.

Os casos de violência contra mulheres teve aumento exponencial, e vejam que deve estar MUITO SUBNOTIFICADO. É impossível não chorar ao saber dos relatos, do terrorismo de ter que ficar 24 horas com seu agressor dentro do mesmo ambiente, confinados. A qualquer momento pode vir a porrada ou mesmo o golpe fatal. Ninguém sobrevive mentalmente a isso.

Além de tudo isso, as mortes também são negras. Sim, está morrendo muito mais negro que branco no Brasil. Reflexo de uma pobreza que é em boa medida fruto do racismo estrutural, de falta de reparação e de problemas nas políticas públicas.

Nossa sociedade é uma ode à exclusão, e a achamos normal.

Em síntese, e teria muito mais a falar, mostrar e debater, mas ficaria enfadonho e creio já ter indicado o caminho que trilhamos: O inaceitável é justamente o que vivemos e naturalizamos. Nossa sociedade, nossos valores, nossa história é inaceitável.

Mas a aceitamos. Pior, legitimamos. Ou pior ainda, naturalizamos.

Os ontens estão hoje cobrando a fatura e, por enquanto, o hoje é eterno. Não há horizonte. Urge desenhá-lo.

Walter Hupsel para o Microphonia.

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Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!