ON THE ROCKS

Estou Levemente Alcoolizado Assistindo ao Jornal Nacional

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
2 min readMay 13, 2020

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Infelizmente tem sido uma constante nesses tempos bizarros que vivemos, e não tenho NENHUM orgulho disso. Nunca tive uma fase Bukowski, não seria velho que viveria Chalesanamente.

Tem quatro dias que não falo com minha filha, que mora com a mãe em São Paulo, onde morei por mais de duas décadas. Não consigo falar com ela, ora não quer falar por tristeza ou algo que uma criança de oito anos não consegue nomear, ou por mim, que também não me reconheço ao me recusar, pelo meu estado de espírito, falar com minha filha.

Era uma constante como a gravidade newtoniana. Todos, absolutamente todos os dias, às 19:00, ligava pra ela. Nos falávamos, com a dor imensa da distância, mas estávamos ali, perto pela tecnologia.

Quatro dias. Quatro, dezesseis, trinta e dois choros. Não consigo. Quero disfarçar, quero mandar whatsapp e perguntar se ela está disponível. Mando, pergunto à sua mãe, posso falar?

Mas o que vem daí, o “pode” ou “ela não quer”, nos destrõem. Ela quer, eu não consigo. Eu quero, ela manda áudio dizendo estar triste, sem conseguir dar nomes ao que sente, e que por isso não quer conversar comigo.

Ou o contrário. Clarice perguntava se eu poderia falar. Corroído em meus sentimentos, respondo que estou trabalhando. Mentira. Apenas não consigo, não agora.

Não era assim. Eu era um ogro, indignado, solidário (acho eu), mas um ogro, escondido em meus sentimentos, inacessível. Clarice também não era assim, disponível, ansiando falar com o distante pai, mesmo que essa distância, por vezes, causasse dores recíprocas.

Agora estamos eu e ela tateando, tentando que nossas mãos se encontrem no escuro. Não sei quando ela está bem, e ela também não sabe quando eu estou tranquilo, conversando, sem precisar esconder minhas lágrimas num esforço quase inumano para protegê-la das verdades que lá fora estão.

Em 2018 havia tragicamente brincado, ainda durante um idílico primeiro turno, que não perdoaria nunca Bolsonaro por ter me forçado a votar pela primeira vez. Eu, um anarquista, enfrentei o dilema de votar. Não imaginava o que estaria por vir.

Em 2020 não perdoo, e nunca perdoarei, todos aqueles que contribuiram com a absoluta barbárie, com o sadismo extremo. Não perdoarei, NUNCA, aqueles que hoje me fazem chorar.

Não perdoarei, NUNCA, aqueles que fazem minha filha chorar. Aqueles que, conscientes ou não, me afastaram de Clarice. Quatro dias que seja.

Quatro eternos dias.

Não posso, nunca, perdoar quem afasta pais e filhas. Me resta o choro e a indignação.

Walter Hupsel para o Microphonia.

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Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!