A REVOLTA DOS DECIBÉIS

Macaco Vê, Macaco Faz

Joniel
Microphonia
Published in
4 min readMar 30, 2020

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Em geral a coisa começa assim. Você ouve um certo som que lhe atinge como um corisco! Antes era um groove contagiante, era um jogo de palavras engraçado, era um movimento pélvico que estabelecia um certo statement, uma certa atitude que lhe ajudava a ser aceito na turma. Era estar alinhado com a corrente. Mas dessa vez é diferente! Tudo parece fazer sentido de uma forma especial. Um reencontro. Uma imagem cristalina no espelho.

Aquela canção não sai de sua cabeça. Seu primo tem uma viola maltratada, abandonada num canto. Você desapropria as aranhas que ali habitam, procura uns tutoriais no Youtube (antes era a revista Acordes na banca de jornais). Você troca as cordas daquela megera.

Lá, Ré, Mi, Dó. As pontas dos dedos doloridas. Tem uma tal de pestana que é uma tortura que antecipa adaptações anatômicas irreversíveis. Mas você conseguiu! São dois, três acordes. Tem um certo padrão que se repete. Pra uns foi “Where the streets have no name”, pra outros, “Ainda é cedo”ou outra coisa mais chic. Aí você descobre que o vocalista da banda é, em geral, o principal letrista. Ele gosta de Fernando Pessoa, seu favorito! Ou era Paulo Leminski? Já não há distância entre vocês. Se ele pode, eu posso! Ele e você estão no mesmo esquema “do it yourself”. Passam uns dias e você nota que o solo daquela canção, que parecia um grande mistério, tem as mesmas notas do acorde daquele trecho da canção! O universo tem uma estrutura lógica, explicável! Toda uma uma arquitetura engendrada pelas divindades da física desde Pitágoras e suas séries harmônicas começa a formigar nas gemas seus dedos maltratados.

Tem um cara na sua rua ou na sua escola que gosta da mesma música. Puta-que-o-pariu! Os dois eufóricos: porque não montamos uma banda, caralho? Tudo parece tão fácil. Você toma coragem, vende sua coleção de quadrinhos (não sem uma lágrima de adeus), lava o carro do seu tio, pede dinheiro pra sua avó. Dias depois uma réplica nacional de alguma marca famosa se materializa na parte de cima do beliche. Passam mais uns dias e você, seu colega e mais dois chegados se encontram num estúdio, desses de aluguel. O baterista não aparece (FDP!). Vocês tentam mil coisas. Pouco acontece. O baterista chega (te amo, FDP!). Aquela música que motivou tudo parece tomar forma. G-l-ó-r-i-a! Nasce uma banda!

Passam umas semanas, meses, anos nadando contra a corrente e dentro de um nicho. Uns ficam no rigor minimalistico — poucos acordes, experimentalismo intuitivo. Outros entram mais fundo nos nuts and bolts da musicalidade — escalas, harmonizações, compassos compostos. Uns ficam satisfeitos em reproduzir precisamente o que fazem os ídolos — pra uma turma que vai olhar torto se você errar uma nota do solo— não é fácil executar direito, reproduzir o mesmo clima. Outros recriam o tema à sua maneira — louvável responsabilidade e risco. Outros, além disso, vão tentar seu próprio caminho heróico, autoral.

Os fãs de rock são exigentes. Interpretarão tudo segundo seu repertório e jargão. O rebento que você pariu com humilde soberba vai passar no moedor de carne — sempre vai parecer algo já existente. Sem a tal “influência”, nada se move. Diga-me quem te influencia e te tirei quem és. Pode que um dia você se pergunte: onde está a minha liberdade artística? Onde-estou-para-onde-vou? Existe algo que vem de dentro ou é tudo uma colagem? Uma adaptação do livro de receitas?

Cover ou autoral?

O que você está imitando? A canção específica, o modo de fazer? Autoral pode ser maneirismo. O que vai marcar a diferença é se a criação parte de uma necessidade de expressão de algo que não está lá. Algo tem que ser dito que a linguagem não dá conta. Pode usar os mesmos acordes, estruturas melódicas e harmônicas. Esse algo pode usar as mesmas canções — pode ser um cover. Se der certo, a turma consome garrafas e taças tentando explicar esse algo. Aquele “que-será-que-será“ que não tem juízo. Aquele último aforismo do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein:

“Do que não se pode falar, é preciso calar.”

Por sorte ninguém se cala e a gente se esbalda na certeza sobre as coisas incertas.

Joniel Franco da Silva para o Microphonia.

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