OUTROS TONS

Na Parede da Memória

Gilberto Filho
Microphonia
Published in
3 min readAug 31, 2020

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La Gloire de Mon Père —filme de Yves Robert, 1990.

estou, refém das lembranças, assaltado por uma saudade daquelas que não se dá jeito. Teimosa que só, aperta o peito e o nó na garganta. Mas não me é fiel, vem quando quer, pousa sem pressa. Daí se espalha, espaçosa que é, até me tomar cada segundo.

Se coração de gente é terra de ninguém, porque tanta coisa — e tanta gente — teima ficar? É só remoçar um pouco a terra desse latifúndio e lá estão: a casa antiga, a escola, o quintal gigante, o gatinho magrela adotado, o cheiro de talco da vó, o bolo da mãe, a palmada, o afago… melhor parar.

Mas cadê que se consegue? Na parede da memória cabe o caderno rabiscado de desenho e poemas. Acho a rebeldia e as letras das canções. Ah, as canções… Elas mudaram. De lugar até. Saíram dos discos e cedês para se embrenharem pelas praças e botecos, seguindo a vadiagem das bebedeiras. Isso sem contar as noites insones de pura boemia. Ihh… Para.

Também não vou mexer no obituário amoroso, coisa de coração acelerado. Era Jaqueline, né? Cabelo loiro, olhar distante, sorriso amarelo. Muro alto esse da timidez. Mil metros! Ela nunca soube. Sorte da Rosa, que soube e o beijo foi bom. “Os beijos”, claro. Ramayana nem me quis. Que vergonha! Essa aí faltou quando peguei a Ana Cláudia. Dessa vez, quase derrubo o muro. Para, que tá indecente.

E essa estrada, dá onde? Naquele lugar cheio de gente e problema. Dinheiro pouco e trabalho muito, num ciclo interminável de acordar e cedo sair pra matar o leão diário. Pé na bunda e volta por cima, muitas vezes. Fazer o quê? Filhinho quer bola, boneco e fast food; e então quer você longe do quarto dele e mais um ingresso pro show daquela banda insuportável. Como assim a chave do carro? Deixa quieto.

Vou parar de cavocar. Achei umas fotos de gente desaparecida e umas bugigangas de Morro de São Paulo (ou de Itacaré, sei lá!). Tem chaveiro do Cristo Redentor, postal de Gramado, renda de Maceió, o escambau. Tudo imantado de história, na tentativa esperançosa de se eternizar os momentos felizes. As conchinhas nem tem mais o cheiro do mar. Tudo perde o brilho e os troços lá se vão das estantes para as gavetas, até que, finalmente, somem. Deixa pra lá.

Vou para onde a vista e a memória alcançam, o que nem sempre é tão longe. A certa altura viver é um desfazimento progressivo. Vão-se os brinquedos, os significados, os amigos. Vão-se os pais. Sim, eles partem. E os filhos, embora estes voltem aos domingos. Também se vai aquele ritmo de atropelar o presente e contar moedas. De algum modo tudo se vai, e cada vez mais a gente assiste a vida. A nossa e a dos outros.

Aí um dia, como marola ou tsunami, vem a última onda. Afundo com o peso de todas as minhas memórias. Dessa vez não tem a mão do meu pai, nem o abraço apaixonado da mais amada. Os filhos e netos já sabem nadar, escapam, cada um em seu navegar.

Sou só eu e minhas memórias que se calam. Se vivo, sigo em outras memórias. Para os meus, espero, que eu seja somente uma linda história.

Gilberto Filho para o Microphonia.

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