A REVOLTA DOS DECIBÉIS

Nada Será Como Antes

Joniel
Microphonia
Published in
3 min readMay 20, 2020

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Luft, Joniel Franco, 2014
Fuhlsbüttel Airport visto pela Janela — Joniel Franco, 2014

Mergulhados na tirania viral que nos mantem pegados ao chão, vamos nos perguntando o que é temporário, o que é definitivo. E me vai dando uma saudade de voar. Aqueles voos logo nas primeiras horas da manhã, sinônimo de noite perdida, uns tapinhas com água fria na testa e nos olhos e café preto pra reativar. Desmaiar de sono ouvindo um soporífero Robert Glasper (ou afim) enquanto a aeromoça procede o rito coreográfico de segurança de voo. Com movimentos canônicos dos braços, ela abre algum portal de onde saem santos, querubins e outras criaturas celestiais sixtinas, no ritmo sinfônico da melodia em crescendo que num rompante cessa. E acordo no meio das nuvens com o sol despontando no horizonte do algodoal. Exploro a revista de bordo da companhia aérea, as bugingangas no catálogo Duty Free, a cartela de emergência da aeronave. Desenho algum passageiro dormindo do outro lado do corredor no papel do saco de vômito. Avião é ócio criativo. Lugar de rabiscar poemas que nunca serão acabados. De morrer de tédio com o destino que não chega e ficar pensando como seria legal ter um violão ali pra dedilhar.

Houve um tempo em que fantasiei a ideia de que a vida era aquela coisa que acontecia entre voos. Cada pouso sendo um parto pra uma vida nova. Com alguns partos difíceis, dependendo da turbulência e das seguidas arremetidas devido ao mal tempo. E a despedida da aeromoça à porta da aeronave com um sorriso protocolar ardoroso de até breve. Aeromoças não tem existência material. São anjos protetores, vivem com seus pares, não se misturam com mortais. Gigantes como Angel-A de Luc Besson. São seres do ar. Aeromoças vão pro céu.

E já sinto falta dos atrasos. Vouchers pra consumir gordices nas lojas fechadas. Olheiras de passar múltiplas horas no limbo da existência dos territórios sem pátria. Como naquela madrugada em Schiphol, aeroporto interditado pelo nevoeiro. Camas de campanha cedidas pela administração. Peço um uísque num café no pé do portão de embarque — e o garçom premia minha simpatia de pobre Bukowski àquela hora da manhã com uma dose tripla e se recusa a cobrar — não questiono os desígnios divinos.

Eu que adoro voar e odeio turbulência. Não é odio. É pavor límbico dos câmbios gravitacionais bruscos. Ainda que eu já tenha lido tanto sobre aviação, como terapia, e falado tanto com gente da área — gente que não se altera com o chacoalhar mais desesperador. E já sonhei ser astronauta quando criança quando tocava a linda Planeta Sonho do 14bis — sonho frustrado com os enjôos nos brinquedos giratórios, montanhas russas e carrosséis. Queria que fosse como um daqueles sonhos de atravessar cumolonimbus descomunais sem nenhum aparelho, despertar na cama e ainda curtindo as sensações da gravidade zero e do vento no corpo— sensações que uns dizem ser de uma viagem astral.

Saudade de colar o nariz janelinha na noite clara, esticar o pescoço pra ver cor da treva do céu, difícil de ver lá em cima. De tentar adivinhar se era estrela ou planeta aquele ponto de luz cortejando a lua. Daquele desvio brutal repentino pra que a nave contornasse uma tormenta que mais parecia um cárcere imaginário de Piranesi. Daquele pouso de poeiras de mil cores no pôr-do-sol de Dubai. Do calafrio súbito de um touchdown em falso. E enquanto a porta não abre, com todos nervosos pra sair, ficar observando os veículos de proporções esdrúxulas, que mais parecem saídos de um desenho infantil.

Voar, imensidão atemporal, sem saída nem chegada. Sem nostalgia dos destinos, sinto o vazio das jornadas.

Joniel Franco para o Microphonia.

Groundless — Joniel Franco, 1014.

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