ON THE ROCKS

O Amor e Suas Dores

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
3 min readMay 24, 2020

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brincando de deus

Sempre houve música em minha vida. Desde os almoços de domingo, regado aos jazz standards que meu pai ouvia, até as clássicas músicas infantis. Me recordo, isolado em minha casa hoje, de minha mãe estragando qualquer música “brega” ao tentar cantá-la, meu tio dedilhando uma bossa-nova ao violão, meu pai levantando ao ouvir Sinatra.

Descobri meu gosto musical, e comecei a formá-lo, a partir do skate. Ali circulavam as informações, as fitas cassetes com várias bandas, etc. O skate me fez anarquista e punk. O skate me deu amigos de uma vida, que separados por distâncias e temporalidades, ainda são AMIGOS.

Com um deles, Ricardo, a relação era engraçada. Andávamos de skate juntos e depois iámos a sua casa ouvir discos (uma forma arcaica de fruir a música). Eu, autointitulado punk, botava Dead Kennedys, Black Flag, Ramones, Clash e tudo aquilo que se convencionou rotular dessa maneira.

Ricardo tentava me convencer ao gosto dele, mais pós-punk inglês, com Smiths, The Cure, Joy Division…. mas minha adolescencia era radical, como deve ser. Não conseguia entender aquelas músicas de amor, dor, sofrimento e lirismo. PORRA, essa temática é coisa de velho, das músicas que minha mãe estragava ao cantar!

E foram assim, muitas e muitas tardes. Ricardo reclamando do meu barulho, eu reclamando daquela coisa lírica, mimimi, blablabla. Realmente não sei como nos aturávamos!

Com o avançar da idade, 16, 17 anos, a coisa começou a fazer sentido para mim. Já não era tão radical e ouvir Bob Smith cantar sobre Elise e sobre suas dores começava a me tocar. Barulho e lirismo, a combinação perefeita.

Pois bem, foi mais ou menos nessa época que uma nova leva de bandas comecaram a aparecer aqui em Salvador, com o destaque para duas delas: Dead Billies e brincando de deus.

A primeira alcunhei de “The Cramps movido a sarapatel”. Um Psychobilly que poderia ter nascido em qualquer cidade dos EUA.

Mas escrevo esse texto pela segunda banda, brincando de deus. Na época que apareceu, Salvador já tinha se tornado a “capital da alegria”, louvada em todas as letras da Axé Music. Podem reparar, não há uma música nesse gênero que seja densa, íntima, raivosa ou triste. Todas enaltecem a alegria, a dancinha disso ou daquilo, a tal “baianidade”. O axé é a ditadura da felicidade.

Pois a brincando de deus vinha nos mostrar uma outra Bahia possível, densa e subjetiva. Era uma batalha do sol escaldante com aquela chuva do fim de tarde.

Meus mundos foram sendo descortinados pela música. Se Pixies me aprensentou Buñuel (até hoje meu cineasta favorito), se The Cure me fez ler Camus, se a Bauhaus me levou ao neo-expressionismo alemão, a brincando me mostrou Baudelaire, Wilde dentre outros.

Foi a brincando também que me mostrou o sofrimento, o amor que chega, o que se vai ou aquele que godotianamente nunca chegará. Nada disso fazia parte de mim naqueles tempos.

Me mostrou que a guitarra não precisa ser raivosa pra ter o que dizer, que existe poesia no barulho e que a microfonia tem seu lugar. Que camadas de timbres podem hipnotizar e te fazer transcender.

Hoje acordei com a notícia da morte de Cézar, o guitarrista da brincando. Fiz meu café, acendi meu cigarro na varanda e chorei. Lembrei dos shows que fui, lembrei dos amigos que fiz na cena, das noitadas homéricas de um pequeno grupo de roqueiros de salvador.

Lembrei das minhas dores e da minha Salvador. Lembrei que com a brincando aprendi também a saber sofrer, e não só a ter raiva.

Lembrei de Ricardo. Lembrei de Cézar.

Pus brincando de deus no youtube. Ouvindo pela enésima vez Better When You Love (me)… de uma beleza, singeleza que não consigo alcançar com as minhas palavras.

Acendi outro cigarro.

Chorei mais um pouco.

Só me resta agradecer aos mundos apresentados. Obrigado, Ricardo.

Obrigado, Cézar.

Walter Hupsel para o Microphonia.

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Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!