GINGER HEAD

O Homem Que Matava o Tempo

Rogerio Rios
Microphonia
Published in
2 min readMay 26, 2020

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The Arrival —fragmento, Christopher R. W. Nevinson 1913.

Essa é uma breve história de um assassino impiedoso e cruel. Ele não tinha ideia de seu próprio grau de periculosidade, embora isso não o fizesse menos letal. Exercia o seu ofício prazerosamente e de forma tão natural, tão orgânica que mal se dava conta do quanto estava impregnado pelo hábito.

Ele não se lembra muito bem como ou quando essa compulsão mórbida começou. Mas foi paulatina, discreta e gradual. Instalou-se intimamente em seu cotidiano e foi se alojando permanentemente em sua rotina.

As suas ferramentas de extermínio eram sofisticadas, contavam com tecnologia de ponta e estavam sempre à mão. Ou melhor, na ponta de seus dedos.

Supõe-se que a sua infame trajetória teve início nos já remotos anos de 2003, quando as teclas ainda faziam barulho. Ainda jovem, porém iniciado anteriormente em ferramentas hoje paleolíticas, como MIRC, que veio como um poderoso sucessor do Disque Amizade, a sua promissora carreira de assassino já dava os primeiros passos.

As armas foram ficando mais segmentadas e ele preferia não ter preferência: ICQ, salas de bate papo do UOL, MSN, Orkut. Tudo isso serviu como uma sólida base para a sua eficácia de exterminador.

Então, finalmente o Facebook, que veio seguido pelo Twitter, Instagram, Flickr, TumblR… as opções expandiam-se rapidamente!

E assim, o nosso personagem matava. Através de todas as horas aniquiladas em grupos de WhatsApp e outras milhares de discussões inócuas sobre qualquer que fosse o assunto do momento, em redes sociais, em redes de intriga.

A notícia do dia, a dica de um filme ou de um lugar que nunca seria assistido ou visitado, a foto editada, os milhares de clichês imagéticos, os vídeos idiossincráticos, as numerosas tretas ruidosas, a militância de sofá, os láiques, os disláiques, os pequenos artigos mais ou menos falsos, as matérias inventadas. Um turbilhão incessante de amenidades, ilusões paralelas e perpendiculares corroendo a sua maior commodity.

Um acúmulo infinito e de um monte de nada.

Em seus momentos finais, ele refletia muito sobre todas as suas vítimas, que foram ceifadas pela sua gana de preencher um buraco que não tem fundo.

Suspeitava que se houvesse uma outra vida depois daquela, seria ainda assombrado pelos minutos, pelas numerosas horas que matou. Seria cobrado pelo fantasma dos momentos perdidos cada vez que deixou de estar presente em sua própria existência.

Rogério Rios para o Microphonia.

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Rogerio Rios
Microphonia

Ilustrador Publicitário, Redator de HQ, Cantor do Kabessas de Gengibre, Cervejeiro Praticante, devoto à arte, adorador da cultura e adepto à consciência.